A esfera pública
"A esfera pública é o espaço dessa disputa decisiva sobre o futuro das nossas sociedades", escreve Emir Sader
A primeira forma de existência do público e da esfera pública nos remete à democracia ateniense. Para os gregos, a política era a arte de decidir através da discussão pública. O caráter direto e não delegativo da democracia grega repousava em dois aspectos: o comparecimento à Assembleia era aberto a todo cidadão e não havia burocracia ou funcionários públicos.
Governo e Assembleia se identificavam, detendo o poder de decisão sobre as questões fundamentais – era o comício ao ar livre, com a participação de todos que quisessem comparecer, reunindo, ao longo de todo o ano, por pelo menos 40 vezes. O sinônimo de democracia era o direito universal a falar na Assembleia, chamado de isegoria. A construção do consenso – definido finalmente pelo voto majoritário – era democrática, porque fundada na possibilidade de acesso igualitário à palavra. Daí também a importância do acesso ao conhecimento e à instrução do cidadão médio como condições da expressão de todos e de realização da democracia.
E daí também a importância da retórica, não no sentido de um discurso esvaziado de conteúdo, mas no de articulação de ideias para expressar um conteúdo. Trata-se de um encadeamento de ideias que busca encontrar um consenso racional presente na razão de cada um.
O debate tinha também um sentido ético, de construção moral, de elevação, de construção coletiva e individual de valores. A construção coletiva e democrática da opinião pública, em Atenas, desembocava na Assembleia, mas era precedida por um período de intensa discussão, nas lojas e tavernas, na praça da cidade, na mesa de jantar.
Daí que a educação fosse entendida não no sentido contemporâneo, restrito, de educação formal, mas no de paideia, com o significado de criação, de formação (no sentido alemão de bildung), de desenvolvimento de virtudes morais, de responsabilidade cívica, de identificação com os interesses da comunidade. Um jovem se educava comparecendo à Assembleia, onde ele aprenderia as questões políticas que Atenas enfrentava, as escolhas, os debates, e aprendia a avaliar os homens que se apresentavam como políticos atuantes, como líderes.
As discussões na Assembleia não se reduziam a um embate na busca da vitória em uma decisão, mas na discussão constitutiva de uma opinião pública, da qual todos partilhavam. Todo homem está umbilicalmente ligado à polis, seu destino, mas também sua subjetividade. Não faz sentido, portanto, a política como profissão, pela sua identidade imediata com a cidadania, sem nenhuma forma de delegação política, que mais tarde constituiu a política e os políticos.
Trata-se de uma concepção situada nas antípodas da visão liberal. E da visão que se tem da constituição e reprodução do processo social decorrem concepções distintas e até mesmo contraditórias da formação da opinião pública. Constituía-se democraticamente uma forma de opinião pública, um consenso, que, com fundamento, se poderia chamar de democrático.
No mundo contemporâneo, a ideia de esfera pública passou a estar ligada diretamente à afirmação dos direitos de todos, à construção da esfera pública, do cidadão, como sujeito de direitos. A política que mais implementou os direitos dos cidadãos foi a do bem-estar social, nascida nos anos 1930, como reação à crise de 1929. Mas a garantia dos direitos da cidadania vinha de antes. O governo de Bismarck, na Alemanha, foi um primeiro grande exemplo de assunção pelo Estado da garantia dos direitos, com a pressão de um forte e emergente movimento operário, resultado da acelerada industrialização do país.
Foram as políticas de bem estar social que criaram e fortaleceram a esfera pública, em contraposição à esfera mercantil, porque a universalização dos direitos é o que caracteriza a esfera pública, o que a faz se identificar com a esfera democrática.
Uma das características mais importantes dos governos antineoliberais da América Latina neste século foi a extensão dos direitos, constituindo os indivíduos em cidadãos e fortalecendo a esfera pública às custas da esfera mercantil. É possível medir os avanços na superação do neoliberalismo pelos avanços na esfera pública e no dos direitos de todos. Da mesma forma que se pode medir os avanços do neoliberalismo, pelos avanços dos processos de mercantilização da sociedade. A esfera pública é o espaço dessa disputa decisiva sobre o futuro das nossas sociedades.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: