A Revolução Canarinho
A escolha da camiseta da CBF diz muito sobre o golpe e os golpistas. Eles optaram por lutar contra a corrupção adotando como símbolo a camiseta de uma instituição que coleciona irregularidades e denúncias por... corrupção
“Fala-se em espontaneidade, mas o desenvolvimento espontâneo do movimento operário aponta justamente para a subordinação deste à ideologia burguesa” (Lenin)
Tunísia, dezembro de 2010. Sem licença para vender os alimentos que estavam na sua banca de camelô e recusando-se a pagar a propina que os policiais exigiram para fazer vista grossa, Mohamed Bouazizi teve suas mercadorias apreendidas. Desesperado, o jovem de 26 anos ateou fogo no próprio corpo.
Além de decantar a revolta acumulada contra um regime, o enterro, carregado de simbolismo, marca o início da Revolução Jasmim. Claro que seria simplório creditar exclusivamente ao suicídio de Bouazizi o estouro do movimento – e, por extensão, de toda a dita ‘Primavera Árabe’. Contudo, em que pese reconhecer que a Revolução Jasmim contou com muito mais combustível que a imolação daquele jovem, seria igualmente simplório acreditar que os eventos que o seguiram teriam sido algo espontâneo. Afinal, os métodos de uma revolução colorida incluem a reverberação exagerada de um evento, de forma a desencadear uma ‘manifestação espontânea’, que de espontânea não tem nada. Tal qual aconteceu no Brasil em junho de 2013.
As manifestações brasileiras daquele período começaram com uma bandeira de esquerda: evitar o aumento da passagem de ônibus. Vale lembrar que os primeiros daqueles protestos foram convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL), que é um grupo de esquerda. Porém o MPL rapidamente perdeu o controle sobre as manifestações – inclusive porque nunca pretendeu tê-lo, autonomista que é.
Acontece que isso rapidamente se alterou. A primeira rodada de manifestações teve início numa quinta-feira, dia 6 de junho e terminou no dia 13. Foram quatro manifestações em oito dias. Estima-se algo como cinco mil manifestantes nas maiores manifestações, à época, praticamente restritas à capital paulista. Duas coisas, porém, ocorreram no dia 13 e marcaram uma inflexão: a repressão policial foi desproporcional; a luta contra a PEC 37, até então – e talvez depois também – desconhecida da população em geral, foi enxertada na pauta. A repercussão das imagens da violência policial foi sistemática no fim de semana, inclusive na mídia oligárquica, algo extremamente atípico. A PEC 37 visava a restringir a atividade investigativa às polícias, limitando o Ministério Público à formalização ou não da denúncia em processos. Isso não dialogava nem de longe com o mote das manifestações. No entanto, mostrava que era possível impor outra agenda às manifestações, especialmente uma agenda: o moralismo, mesmo que de fachada. A cruzada moralista, com destaque para a luta contra a corrupção, funcionaria (como sempre funcionou) como amalgama e toque de ordem unida para classe média reacionária. Finalmente, no fim de semana subsequente ao dia 13, já o segundo fim de semana, a mídia oligárquica iniciou a mudança do discurso, passando a dizer que havia que se ter alguma compreensão para com os manifestantes.
Na segunda rodada (terceira semana de protestos) houve a virada de chave. Em que pese alguns setores da esquerda estarem lá disputando as ruas, já era possível perceber que havia algo por trás, organizando e insuflando. Quem já participou da organização e da convocação de manifestações sabe da dificuldade que é colocar gente na rua. Mesmo que sejam pautas corporativas ou de fácil apelo, como a luta contra a reforma da Previdência, não possuem o condão de mobilizar sem um forte trabalho de convocação. A dificuldade aumenta exponencialmente se o dia da manifestação for uma segunda-feira. Coordenar isso para que ocorram manifestações em várias cidades requer um altíssimo nível de organização. Convocar um ato multitudinário, numa segunda-feira, em várias cidades, em diversos estados da federação, então, só com uma estrutura extremamente profissional. Mas houve quem insistisse e acreditasse que se tratava de espontaneidade.
Segunda-feira, 17 de junho de 2013, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas nas principais cidades do país. O contingente só cresceu, até que no dia 20, o número de cidades onde houve manifestações contava-se por dezenas e o número de manifestantes, nas principais cidades, já era da ordem de centenas de milhares. Estamos falando de quatro manifestações multitudinárias em quatro dias nas principais cidades e em todas as regiões metropolitanas. Isso não pode ser espontâneo.
Aquela semana foi crucial, porque muitas das transformações que moldariam o Brasil se processaram naqueles dias. Já no dia 17, a mídia oligárquica opera uma inflexão decisiva no seu discurso e passa a chamar as manifestações de demonstrações da pujança da democracia brasileira, afinal, o gigante havia acordado. A classe média reacionária passava a ser chamada de povo. A pauta dos protestos foi federalizada e cada dia novas demandas eram adicionadas. No dia 20, a pauta era contra tudo e contra todos. Além disso, nos dias 19 e 20, houve os primeiros registros significativos de ataques contra os partidos e movimentos sociais: o povo unido, aqui é sem partido! A antipolítica e o apartidarismo tomavam conta, embalada principalmente por uma seletiva luta contra a corrupção. No lugar das bandeiras de partidos, das camisas do Che ou de temáticas de esquerda, surgem as bandeiras nacionais e as camisetas da CBF.
A escolha da camiseta da CBF diz muito sobre o golpe e os golpistas. Primeiramente, denuncia a predileção do privado ante o público, típico da ideologia neoliberal, subjacente em todas as revoluções coloridas. Em segundo lugar, demonstra um nacionalismo sazonal e oportunista. Sazonal, porque só se manifesta a cada quatro anos nas Copas (masculinas). Oportunista porque muitos daqueles não perdem a oportunidade por demonstrar sua devoção às culturas estadunidense e europeia e ojeriza à cultura nacional. Oportunista, também, porque não vê nenhum problema na venda do patrimônio natural às companhias estrangeiras.
Mas, sobretudo, expõe o quanto de hipocrisia houve no processo. Os golpistas optaram por lutar contra a corrupção adotando como símbolo a camiseta de uma instituição que coleciona irregularidades e denúncias por... corrupção. Por tudo isso, a revolução colorida brasileira não poderia ter outro nome que não Revolução Canarinho.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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