Diga “Oi” ao ouro russo e ao petroyuan chinês
"União econômica liderada pela Rússia e a China recém acordou em criar um sistema monetário que passe por cima das transações em dólares", diz Pepe Escobar
Por Pepe Escobar
(Publicado no website The Cradle, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247)
Já era tempo, mas finalmente alguns contornos-chaves das novas bases do mundo multipolar estão sendo revelados.
Na sexta-feira passada, após uma reunião em videoconferência, a União Econômica Eurasiana (EAEU – Eurasian Economic Union) e a China acordaram em fazer um projeto de mecanismo para criar um sistema financeiro e monetário internacional independente. A EAEU é formada pela Rússia, o Cazaquistão, o Kyrguistão, a Bielorrússia e a Armênia; a mesma está estabelecendo acordos de livre comércio com outras nações eurasianas e está interconectando-se progressivamente com a Nova Rota da Seda (BRI – Belt and Road Initiative) da China.
Para efeitos práticos, a ideia vem de Sergei Glazyev – o principal economista independente da Rússia, um ex-conselheiro do presidente Vladimir Putin e do Ministro para a Integração e Macroeconomia da Comissão Econômica da Eurásia (Eurásia Economic Commission, que é a autoridade regulatória da EAEU.
O papel central de Glazyev na ideação da nova estratégia econômico-financeira russa e eurasiana foi examinado aqui (https://www.strategic-culture.org/news/2022/03/04/how-russia-will-counterpunch-the-us-eu-declaration-of-war/ https://www.brasil247.com/blog/como-a-russia-contra-golpeara-a-declaracao-de-guerra-dos-eua-e-da-uniao-europeia). Ele previu a espremida financeira ocidental sobre Moscou anos-luz antes que outros o fizessem.
De maneira bastante diplomática, Glazyev atribuiu a materialização da ideia “aos desafios e riscos comuns associados com a desaceleração econômica global e às medidas restritivas contra os estados da EAEU e a China”.
Traduzindo: já que a China é uma potência eurasiana tanto quanto a Rússia, estas precisam coordenar as suas estratégias para evitar o sistema unipolar dos EUA.
O sistema eurasiano será baseado numa “nova moeda internacional” - muito provavelmente tendo o yuan chinês como referência e calculada como um índice das moedas nacionais dos países participantes, bem como dos preços das commodities. O primeiro rascunho desta moeda será discutido já no final deste mês.
O sistema eurasiano está destinado a tornar-se uma alternativa seria ao dólar estadunidense, já que a EAEU poderá atrair não somente as nações que entraram na BRI (o Cazaquistão, por exemplo, é membro de ambas), mas também os principais membros da Organização de Cooperação de Shanghai (SCO – Shanghai Cooperation Organization), bem como os da ASEAN. Países do oeste da Ásia – como o Irã, o Iraque, a Síria e o Líbano – inevitavelmente se interessarão.
À médio-longo prazo, a expansão do novo sistema se traduzirá no enfraquecimento do sistema de Bretton Woods – o qual até mesmo operadores/estrategistas sérios do mercado nos EUA admite que está podre por dentro. O dólar e a hegemonia estadunidense estão enfrentando mares tormentosos.
Mostre-me aquele ouro congelado
Neste ínterim, a Rússia tem sérios problemas a enfrentar. Neste último fim de semana, o Ministro das Finanças, Anton Siluanov, confirmou que metade das reservas de ouro e moedas estrangeiras da Rússia foram congeladas por sanções unilaterais. Causa confusão mental o fato de que os especialistas financeiros russos tenham colocado uma grande parte da riqueza da nação onde esta mesma pode ser facilmente acessada – e até confiscada – pelo “Império das Mentiras” (copyright Putin).
No início, não ficou exatamente claro o quê Siluanov quis dizer. Como é que a chefe do Banco Central da Rússia, Elvira Nabiulina, e a sua equipe permitiram que metade das reservas em moedas estrangeiras e até do ouro russo fossem depositados em bancos e/ou cofres ocidentais? Ou será que esta é uma tática sorrateira de diversionismo de Siluanov?
Ninguém está melhor equipado para responder estas perguntas do que o inestimável Michael Hudson, autor da recentemente revisada edição de 'Super Imperialismo: A Estratégia Econômica do Império Estadunidense'.
Hudson foi bastante franco: “Quando ouvi pela primeira vez a palavra 'congelado', pensei que isto significasse que a Rússia não estaria gastando as suas preciosas reservas em ouro para sustentar o valor do rublo, tentando lutar contra um assalto estilo-Soros do ocidente. Mas agora a palavra 'congelado' parece significar que a Rússia enviou estes ativos para o estrangeiro, fora do seu controle.”
“Pelo menos até junho passado, parecia que todo o ouro russo estivesse guardado na própria Rússia. Ao mesmo tempo, seria natural guardar títulos financeiros e depósitos bancários nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha – porque é ali onde ocorre a maior intervenção no mercado mundial de moedas estrangeiras”, adicionou Hudson.
Essencialmente, ainda está tudo suspenso no ar: “Minha primeira leitura presumiu que a Rússia devia estar fazendo alguma coisa esperta. Se fosse esperteza mandar o ouro ao estrangeiro, talvez a Rússia estivesse fazendo aquilo que outros bancos centrais fazem: 'emprestar' aos especuladores, em troca de um pagamento ou uma taxa de juros. Até que a Rússia diga ao mundo onde colocou o ouro – e porque – não podemos imaginá-lo. Foi no Banco da Inglaterra – mesmo depois que a Inglaterra confiscou o ouro da Venezuela? Foi no New York Fed (Banco Federal do Estado de New York) – mesmo depois que o Fed confiscou as reservas do Afeganistão?”
Até agora não foram dados esclarecimentos adicionais da parte de Siluanov, nem de Nabiulina. Os cenários giram sobre uma série de deportações para o norte da Sibéria por traição nacional. Hudson adiciona elementos importantes ao quebra-cabeças:
Se as reservas estão congeladas, por que a Rússia está pagando juros sobre a sua dívida externa vencida? Ela pode direcionar o seu 'congelador' para pagar, transferindo a culpa para a inadimplência. Ela pode falar que o congelamento da conta bancária iraniana feito pelo Chase Manhattan – com o qual o Irã procurou pagar os juros da sua dívida em dólares. Ou ela pode desembarcar paraquedistas no Banco da Inglaterra e recuperar o ouro – uma espécie de operação tipo Goldfinger em Fort Knox. O que importa é que a Rússia explique o quê ocorreu e como ela foi atacada, como um aviso para outros países.”
Dando um gancho, Hudson não conseguiria evitar de dar uma piscada para Glazyev: “Talvez a Rússia devesse nomear um não-pró-ocidental para o Banco Central”.
O petrodólar que muda o jogo
É tentador ler nas palavras do Ministro das Relações Exteriores da Rússia, na cúpula diplomática em Antalya na última quinta-feira, uma admissão velada de que Moscou poderia não estar preparada para o pesado ataque de artilharia financeira usado pelos estadunidenses:
“Nós resolveremos o problema – e a solução não dependerá mais dos nossos parceiros ocidentais, sejam governos ou empresas que agem como instrumentos da agressão política ocidental contra a Rússia, ao invés de zelar pelos interesses dos seus negócios. Garantiremos que jamais nos encontraremos novamente em uma situação similar e que nenhum Tio Sam ou outra pessoa possa tomar decisões que visem destruir a nossa economia. Encontraremos uma maneira de eliminar esta dependência. Deveríamos ter feito isso há muito tempo.”
Portanto, o “há muito tempo” começa agora. E um dos seus fundamentos será o sistema financeiro eurasiano. Neste ínterim, “o mercado” (leia-se, o cassino especulativo dos EUA) “julgou” (segundo os seus oráculos “self-made”) que as reservas de ouro russas – aquelas que ficaram na Rússia – não podem sustentar o rublo.
A questão não é essa – em vários níveis. Os oráculos “self-made”, com seus cérebros lavados há décadas, acreditam que o Hegemon dita aquilo que “o mercado” faz. Isso é mera propaganda. O fato crucial é que, no novo paradigma emergente, as nações da OTAN representam no máximo 15% da população mundial. A Rússia não será forçada a praticar a autarquia, porque ela não precisa fazê-lo: a maior parte do mundo – como vimos ser representada na robusta lista de nações que não aplicam sanções – está pronta para fazer negócios com Moscou.
O Irã demonstrou como se faz isso. Os comerciantes do Golfo pérsico confirmaram ao The Cradle que, mesmo agora, o Irã está vendendo nada menos do que 3 milhões de barris de petróleo por dia para países não-signatários do JCPOA – Joint Comprehensive Plan of Action (Plano Conjunto de Ação Compreensiva) – o qual está sendo negociado em Viena. A origem do petróleo é renomeada, este é contrabandeado e transferido de/para navios-tanque na escuridão da noite.
Um outro exemplo: um enorme refinador de petróleo, a Corporação Indiana de Petróleo (IOC – Indian Oil Corporation), acabou de comprar 3 milhões de barris de petróleo dos Urais russos da empresa Vitol para entrega em maio. Pelo menos até agora, não há sanções contra o petróleo russo.
O plano reducionista Mackinderesco é de manipular a Ucrânia como um peão descartável para arrasar a Rússia e, depois, para golpear a China. Basicamente, é a estratégia de dividir-e-reinar para esmagar não somente um, mas dois concorrentes iguais na Eurásia que avançam em passo cerrado como parceiros estratégicos compreensivos.
Hudson o entende assim: “A China está na mira e o que ocorreu na Rússia é uma ensaio-geral para aquilo que pode ocorrer com a China. Nestas condições, é melhor romper mais cedo do que depois. Porque a maior vantagem é fazê-lo agora.
Toda a tagarelice sobre “esmagar os mercados russos”, acabar com os investimentos estrangeiros, destruir o rublo, um “embargo comercial completo”, expulsar a Rússia da “comunidade das nações” e assim por diante – isto é para as galerias zumbificadas. O Irã tem lidado com a mesma coisa por quatro décadas e sobreviveu.
Justiça poética histórica, como intimou Lavrov, agora parece indicar que a Rússia e o Irã estão por assinar um acordo muito importante – o qual parece ser o equivalente da parceria estratégica Irã-China. Os três nós mais importantes da integração da Eurásia estão aperfeiçoando a sua interação enquanto andam e, mais cedo do que tarde, poderão estar utilizando um novo e independente sistema monetário e financeiro.
Porém há mais justiça poética a caminho, concernente à derradeira mudança de regras do jogo. E isto veio muito mais cedo do que todos pensávamos.
A Arábia Saudita está considerando aceitar o yuan chinês – e não os dólares dos EUA – para vender petróleo para a China. Tradução: Beijing disse à Riyadh que este é o novo encaixe. O fim do petrodólar está à mão – e este é o prego final no caixão do Hegemon indispensável.
Neste meio tempo, há um mistério a resolver: onde está aquele ouro russo congelado?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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