Falta alguém em Nuremberg
"Desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres", afirma a jornalista Denise Assis ao responsabilizar Jair Bolsonaro pela devastação provocada pela pandemia
Por Denise Assis, para o Jornalistas pela Democracia
O jornalista David Nasser, um dos expoentes da revista O Cruzeiro nas décadas de 1940 e 1950, destaque dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, publicou uma série de denúncias contra Filinto Müller, o chefe da Polícia de Vargas -, que barbarizava na ditadura do Estado Novo (1937-1945) -, sob o título: de “Falta Alguém em Nuremberg”.
Filinto, ex-tenente, participou da Coluna Prestes, mas tentou desertar e foi expulso com desonra, pelo seu líder, quando combatia o Governo de Arthur Bernardes (1922-1926). Pela atitude, tomou-se de ressentimento contra Prestes e teve papel destacado nas negociações para a entrega de sua mulher, Olga Benário, grávida, para a Alemanha nazista, onde morreria no campo de concentração de Bernburg.
Müller ficava baseado no Rio de Janeiro, então a capital, e seu cargo tinha grande importância política, como costumam ter, em tempos de opressão. Morreu em 1975, na queda de um avião da Varig nas proximidades do aeroporto de Orly, em Paris.
Durante mais de um ano, David Nasser lembrou os crimes de Müller, chegando a indicar seu nome para um pretenso novo julgamento na cidade de Nuremberg, na Alemanha, onde em 1945, representantes das potências vencedoras da Segunda Guerra se reuniram, para julgar e condenar os 24 criminosos de guerra, do nazismo. O processo durou praticamente um ano e terminou com penas de morte para 12 dos acusados, três à prisão perpétua, três a penas que variavam de 10 a 30 anos de prisão, enquanto outros três foram absolvidos.
Agora, quando o mundo vive a pandemia por coronavírus e Bolsonaro é apontado internacionalmente como responsável por mais de 205 mil mortes, no Brasil, sem que nem sequer se condoa pelas perdas, o título da série de Nasser vem a calhar: “Falta Alguém em Nuremberg”. Jair Bolsonaro merece ser julgado internacionalmente por todas as suas omissões, que nos levaram a assistir a vítimas da Covid-19 morrendo afogadas no seco. Isto, porque o seu “gordinho preferido”, o ministro Eduardo Pazuello, esteve em Manaus, palco da tragédia, não para anunciar o fim da alíquota de importação dos cilindros de oxigênio, tampouco para tomar providências quanto à falta iminente, do produto, mas para divulgar e exigir que médicos receitassem o estoque de cloroquina encalhado, produzido sob as ordens de Bolsonaro, pelo Exército.
Em 22 de julho de 2020, numa entrevista à jornalista do jornal El País, Eliane Brum, a jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional, disse haver “todos os elementos necessários à tipificação de crimes contra a humanidade na resposta do Governo brasileiro à covid-19: intenção, plano e ataque sistemático”. Na ocasião, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, ligou a palavra “genocídio” ao nome de Bolsonaro e alertou ao Comando do Exército que ou desembarcavam todos os oficiais da Força, do governo, ou a imagem do Exército Brasileiro seria contaminada com a pecha, em sua opinião, já de uso justificável, nesse caso.
“Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, é atribuir a responsabilidade a Estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”, avaliou o ministro.
O Comando acusou o golpe, emitiu nota, alegando que a política não entraria nos quartéis, mas na prática o que se viu foi um estreitamento de relações, quando o responsável pela pasta da Saúde manteve-se como general da ativa, enquanto dava show de incompetência país a fora. Deixou que sete milhões de testes da Covid-19 perdessem a validade em um galpão em Guarulhos, não se preparou para a segunda onda da doença e tampouco para uma campanha eficiente de imunização da população. Pior, uniu-se ao negacionismo do chefe, para combater as vacinas e fazer corpo mole quanto à aprovação e produção delas, no país, referência mundial em planos de vacinação.
Na entrevista à jornalista do El País, Deisy Ventura explicou por que há elementos suficientes para investigar Bolsonaro, “assim como outras autoridades do Governo”, por “crimes contra a humanidade, tanto no Tribunal Penal Internacional como na Justiça brasileira”. E, na ocasião, a jurista ainda esclareceu “por que é essencial para o futuro do Brasil que esse debate aconteça”.
E alertou: “existe uma banalização da palavra genocídio, mas não é o caso agora. O ministro Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um genocídio, referindo-se à resposta brasileira à pandemia. Naquele momento, o número de mortes já estava em 70.000 pessoas. É muito importante que um membro do STF, que é conhecido como alguém politicamente conservador, utilize essa palavra, porque ele certamente não usou essa palavra por acaso. É alguém que conhece o conceito de genocídio, conhece o direito e não é novato nem no mundo jurídico nem no mundo político. É importante não só por ser ministro, mas também pela percepção internacional dessa fala”.
Para reforçar as declarações, na época, quando nem tínhamos chegado ao trágico quadro atual, Ventura apontou que “desde o início da pandemia, o Governo federal assumiu o comportamento que tem até hoje: de um lado o negacionismo em relação à doença e, de outro, uma ação objetiva contra os governos locais que tentam dar uma resposta efetiva à doença, contra aqueles que tentam controlar a propagação e o avanço da covid-19. E desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres, são os mais vulneráveis, entre eles também os idosos e os que têm comorbidades. E, infelizmente, o que prevíamos aconteceu”, concluiu.
Que reabram, pois, o julgamento em Nuremberg. Os nomes de Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello precisam constar da lista.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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