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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

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Parasita e o cheiro fétido do sistema capitalista

Parasita (2019) fez história como primeiro filme coreano a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O que o torna ainda mais interessante é que se constitua como uma crítica à naturalização da divisão entre classes sociais e, portanto, ao sistema capitalista

(Foto: Divulgação)
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Parasita (2019) fez história como primeiro filme coreano a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O que o torna ainda mais interessante é que se constitua como uma crítica à naturalização da divisão entre classes sociais e, portanto, ao sistema capitalista. O diretor Bong Joon Ho, sul-coreano, tem entre suas obras anteriores Memórias de um Assassino (2003), O Hospedeiro (2006), Tokyo -em parceria com outros dois diretores (2008) , Mãe- A Busca pela Verdade (2009),  e já havia trabalhado bem o tema da luta de classes em Expresso do Amanhã (Snowpiercer), de 2013. O filme de ficção científica, baseado em uma graphic novel francesa, mostra um grande cataclismo climático que baixa a temperatura do planeta a ponto de extinguir a vida sobre a Terra. Os sobreviventes estão a bordo de um trem, onde cada vagão representa uma classe social...  

Em Parasita, de maneira similar, as habitações de cada um dos núcleos de personagens podem ser consideradas representantes dos mesmos. Mas o espaço mais importante é o jardim da casa dos ricos, o palco especial aonde tudo fica às claras. A ambição dos que transitam na trama – e pela casa – é conquistar o direito de desfrutá-lo e, com ele, a luz e o calor do sol, que parecem pertencer a família Park...

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O roteiro, também da autoria do diretor, traz uma história original, contemporânea, que se passa na Coréia do Sul mas é um retrato universal do convívio conflituoso entre diferentes classes sociais no capitalismo. Vale observar que o país já foi considerado um exemplo de resistência à crise econômica para o Brasil. Hoje, tem a maior taxa de suicídios do mundo desenvolvido. Os idosos se suicidam por dificuldades econômicas (não há uma política governamental de aposentadoria) e os jovens por não suportarem a pressão social, que inclui um ensino voltado a exacerbar a competitividade.  Quanto ao desemprego, no ano de 2018 chegou ao recorde de 290 mil jovens coreanos desempregados, sem perspectiva de vida (Statistics Korea).   

Não é por acaso, portanto, que a família Kim, pai, mãe, filho e filha, estão desempregados, e vivem de forma precária até conquistarem, um a um, empregos junto aos Park. Eles serão, respectivamente, o motorista, a governanta, o professor de inglês da filha adolescente e a professora de arte do menino traumatizado. Para chegar lá, porém, os Kim usam muitas mentiras e dissimulações, constroem para si personagens, com atuações que os transformam nos empregados ideais dos Park.

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Falando sobre o filme, em depoimento enviado à imprensa, o diretor expressa  seu sentimento de tristeza por um mundo em que um grupo é empurrado a viver um relacionamento parasitário com outro, sem dúvida uma motivação para sua obra: “Na névoa deste mundo, quem pode apontar o dedo para uma família em dificuldades, lutando para sobreviver, e chamá-los de parasitas? Não é como se eles fossem parasitas desde o começo. Eles são nossos vizinhos, amigos e colegas, que estão apenas sendo empurrados para o limite de um precipício. Como um retrato de gente comum que cai em uma inevitável tormenta, este filme é: uma comédia sem palhaços, uma tragédia sem vilões, tudo levando a um enredo violento e uma queda desabalada escada abaixo...” 

Duas grandes qualidades de Parasita são justamente ter um roteiro que evolui de forma surpreendente e passar de um gênero a outro com naturalidade. O humor dá lugar ao suspense, ao drama e ao terror. A “tensão social” cresce significativamente no momento em que a família Park está em viagem e os Kim revelam seu lado mais abusado. A chuva torrencial anuncia a mudança de tom, uma trovoada serve de oráculo para o destino e o suspense pouco a pouco vai criando cara de terror...

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O humor, no início, é evidente nas manobras feitas pelos Kim para sobreviver (e conseguir um sinal de wi fi), que lembram o famoso “jeitinho brasileiro”. As novas tecnologias da comunicação contribuem muito com o tom cômico, mesmo quando a tragédia já  iniciou a avançar e a jovem adolescente, alheia a tudo, ainda tenta comunicar-se com o namorado.    

Há que se ressaltar também a ausência de maniqueísmo, tão comum no cinema estadunidense. Nenhum personagem é caracterizado como mau. Em alguns trechos do diálogo isso vem à tona, até com questionamentos significativos. Em conversa dos Kim sobre os Park, há a polêmica de que “mesmo sendo ricos, eles são bons”, ou seriam bons apenas por ser ricos?

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A pedra que “persegue” o protagonista como uma ideia obsessiva é um dos personagens principais e fonte da maior ironia: inicialmente recebida como amuleto, ela se torna decisiva no desfecho trágico. O rumo natural das coisas precisará ser reestabelecido, para a pedra e para a vida do jovem da família Kim, inevitavelmente entrelaçadas.  

A chuva revela o grande fosso (ou fossa) entre as classes, destacado depois na festa de aniversário, em que os ricos e seus convidados parecem tão leves e felizes (a diferença de patamar econômico é determinante de felicidade?), mas não há como fugir da tragédia social em que todos serão envolvidos, que não inicia, como se poderia supor, com a revolta contra os mais abastados.  

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O pai da família rica tenta evitar que seus empregados passem a “invadir” suas vidas, colocando limites na aproximação. Quando o motorista faz um comentário sensível, elogiando o cuidado do patrão para com a esposa, é respondido com a observação de que irá receber horas extras pela ajuda (o equivalente a um “mantenha-se no seu lugar”). Porém, a suposta ausência de envolvimento afetivo entra em derrocada com os jovens (a influência dos “professores”?),  e a invasão acontece mais decisiva ainda com um simples detalhe (ou não tão simples): o cheiro. O cheiro é a manifestação inconsciente do preconceito e de todas as injustiças. É através dele que vem à tona, em uma fração de segundo, a violência da distinção entre as classes, a desumanização que faz a vida de alguns mais importantes que a de outros e cria até seres invisíveis, meros fantasmas. O problema é que não se pode matar fantasmas, eles nunca deixarão de existir, serão, no máximo, substituídos por outros.

A tragédia é inevitável devido à interdependência entre as classes. A classe mais rica precisa dos mais pobres tanto quanto os mesmos precisam dela (quem é parasita de quem, afinal?). Neste sentido, deixo uma dica: Um dia Sem Mexicanos (2004), de Sergio Arau, que usa uma estética de documentário para mostrar como seria a Califórnia sem mexicanos, pois um estranho fenômeno climático tem o efeito fantástico de fazer desaparecer com todos os “cucarachas”.  – O filme pode ser assistido no youtube https://youtu.be/exAtch5mdGE 

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Por último, precisamos observar que tal atrito máximo entre classes sociais nunca ocorreria em uma novela da Globo, claro. Nestas, as diferenças - e dificuldades de vida decorrente delas- são dissolvidas, são parte menos importante da trama. Muitas vezes, pobres e ricos até moram no mesmo prédio ou bairro, o que muda é só a mesa – e o enfeite sobre ela. Por décadas assistimos a histórias assim, que alimentaram no brasileiro uma cultura estranha, em que ninguém se considera pobre e muitos têm vergonha até de se reconhecer como  “trabalhadores”. Hoje, com as mudanças nas relações de trabalho, o dilema foi resolvido, somos todos uber!

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