Privatização e crescimento
A evolução da tarifa de energia elétrica brasileira mostra um encarecimento que ultrapassa o dobro da inflação desde 1995
É um desafio tratar de algumas questões num país com tantos problemas de desigualdades sociais que já se manifestam em casos de criminalidade e violência extrema. Medidas que enfrentem estruturalmente a pobreza, a carência de educação e saúde, organização urbana e transporte público, entre outros, são imprescindíveis. Outros temas ficam parecendo desconectados da grave realidade, mas, na verdade, são parte de um todo, onde impera um enorme deficit de informação.
A palavra “deficit” tem sido praticamente sequestrada pela narrativa financeira, onde as contas públicas permanecem sob o emblemático teto de gastos. Contudo, traduzida em custo, a carência de políticas públicas forma uma soma assustadora.
Algum sinal positivo só pode vir através do crescimento da economia, que, além dos empregos criados, diminuiria o deficit público com redução nas taxas de juros, assunto do momento.
Nas discussões sobre soluções, as privatizações se destacam nas pautas da grande mídia. Certas críticas são classificadas como posições ideológicas, mas quem frequentemente coloca o tema na berlinda é a própria imprensa. O discurso tem sido mantido por mais de trinta anos, sem reconhecer que, de 1990 até 2022, o Brasil privatizou 150 empresas, sendo o recordista no mundo. Se há realmente um cuidado com os destinos do país, o mínimo que se pode fazer é examinar os resultados dessa longa experiência. É essa análise que se apresenta aqui.
No governo Sarney (1985 – 1990) as privatizações são classificadas como tímidas em comparação aos outros períodos iniciados a partir da década de 90, mas, segundo dados do BNDES, 18 estatais foram privatizadas, entre elas, Aracruz Celulose, Sibra, Caraíbas Metais e a Companhia Brasileira de Cobre (CBC).
O governo Collor (1990 – 1992) focou a venda em três setores: siderurgia, petroquímica e fertilizantes: Usiminas, Piratini, CST, Acesita, Petroflex, Copesul, Álcalis, Nitriflex, Fosfertil são alguns exemplos. E qual foi a performance da economia brasileira nesse período? Segundo dados do FMI ou do Banco Mundial, o PIB brasileiro caiu 3,7% enquanto a média mundial se expandia com 4,7%.
O governo Itamar Franco (1992 – 1994) vendeu a Embraer e a Companhia Siderúrgica Nacional e, nesse período o Brasil cresceu 6,14% em relação a 1990, mas o mundo já crescia 12,5%.
O governo Fernando Henrique (1994 – 2002) privatizou 80 empresas de muitos setores. Vale, Telebras, Embratel, bancos, diversos portos, muitas distribuidoras estaduais de energia e a Gerasul da Eletrobras. Nesses oito anos, o PIB do Brasil aumentou cerca de 20%, mas o PIB médio mundial cresceu 32%.
O governo Lula (2003 – 2010) fez uma mudança na forma das privatizações, através do formato de concessões. As usinas do Rio Madeira (Jirau e Santo Antônio) e Teles Pires foram concessionadas com a participação minoritária da Eletrobras. Diversas concessões de trechos rodoviários foram implementadas. O mesmo processo foi feito para alguns aeroportos, tais como os do Galeão e Viracopos. Nesses oito anos, o PIB brasileiro cresceu cerca de 43% e o mundo cresceu 34%. Entretanto, esses 9% a mais não foram suficientes para compensar as perdas anteriores.
O governo Dilma (2011 – 2016) manteve a política de concessões de transporte rodoviário e linhas de transmissão, mas privatizou o IRB-Brasil Resseguros e continuou a concessão de aeroportos existentes, como Guarulhos, Cofins e Brasília. Nesse período, o PIB brasileiro praticamente não cresceu enquanto o mundo cresceu 25%.
O governo Temer (2016 – 2018) retomou privatizações nos moldes da década de 90. Usinas, portos, aeroportos e rodovias, mas não conseguiu concluir a maioria dos projetos em sua administração. Foram vendidas a Eletro Acre e a Ceron. O Brasil cresceu seu PIB em menos de 1%, enquanto o mundo cresceu 8,8%.
Finalmente o governo Bolsonaro (2018 – 2022), sob um discurso totalmente privatista, vendeu Eletrobras, Companhia Docas do Espírito Santo, BR Distribuidora e Liquigás. O Brasil cresceu 2,6% e o mundo 13%.
Se esses dados não são suficientes para nos advertir que algo de muito errado se deu nesse processo, certamente não deciframos o acesso de entidades públicas para o capital privado. Na verdade, esses resultados nem deveriam nos surpreender, pois a venda de ativos prontos não implica necessariamente em crescimento. Se novos investimentos não forem exigidos, o capital se retrai. Afinal, os recursos financeiros não são ilimitados e, se parte do capital é usado apenas para transferência de propriedade, nada novo é construído.
Dentre todos esses exemplos, alguns setores deveriam ser privatizados mesmo. Por muitas razões, o estado foi obrigado a atuar em muitos setores que, se não existissem, comprometeriam a economia gravemente.
Todavia, alguns outros envolvem questões da geografia, da água, da ocupação territorial, do transporte, e outras demandas. O caso da Eletrobras é ponto extremo desse descaminho, pois até o planeta tenta nos ensinar. Nenhum país de significativa participação de hidroelétricas privatizou totalmente seu setor elétrico. Estados Unidos, Canadá, Rússia, Índia, China, Suécia e Noruega são os membros desse seleto clube de privilégio geográfico que o Brasil acaba de se desligar.
A Eletrobras privada é uma incoerência com a própria história, pois apenas 8% das nossas usinas hidráulicas nasceram de iniciativas privadas. A grande maioria foi adquirida de empresas estatais.
Em termos de valor, uma comparação com a Duke Energy nos Estados Unidos, que tem a mesma capacidade instalada, revela uma grande perda, pois a Duke vale US$ 82 bilhões e a privatização da Eletrobras custou R$ 33 bilhões, menos de um décimo do valor da Duke.
Desde a adoção do sistema mercantil que impôs um grande mimetismo de sistemas de predominância térmica, a evolução da tarifa de energia elétrica brasileira mostra um encarecimento que ultrapassa o dobro da inflação desde 1995.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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