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    Daniele Barbosa Bezerra

    Doutora em Educação (UFC), professora, pesquisadora de gêneros biográficos e memorialísticos, contista e cronista.

    35 artigos

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    Ressuscita-me!

    Havia me permitido um tempo de silêncio, pois estava doente de Brasil

    (Foto: Alex Robinson/Unsplash/Divulgação)

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    Voltei. Voltei a escrever por aqui. Havia me permitido um tempo de silêncio, pois estava doente de Brasil. De 2020 para cá, muitas perdas se entrelaçaram à minha existência, seja por morte de pessoas próximas, vítimas da Covid 19 e do Covard 22, perdas de ordem afetiva, de ordem material, e da esperança num Brasil sequestrado pela barbárie. Foi uma verdadeira devastação no meu ser. 

    Como consequência disso tudo, meu psiquismo reagiu negativamente a qualquer contato. Todas as vezes em que o meu celular tocava, seja por chamada ou mensagem, meu coração palpitava e meu estômago pulava em susto, afinal as notícias  nesse período, quase sempre, eram pouco alvissareiras, mas “ressuscitei lutando contra as misérias do cotidiano”.

    Então prometi a mim mesma que a hora de voltar por aqui, e mesmo no meu canal, Vermelho Pimenta, seria quando o Lula ganhasse a eleição, porque assim, pelo menos a esperança de dias melhores para o povo brasileiro, aí me incluo, seria a força motriz para que cada um continuasse  a sua senda pessoal. 

    Percebo que os ares no país já são outros, mesmo que alguns fascistas insistam em cometer seus crimes contra a democracia pelas ruas, avenidas e estradas da nação. Por aqui, no Ceará, o movimento desses seres abjetos existe, mas não tem a potência do que estamos assistindo no sul do país, o que me deixa ainda confortável em circular com o carro adesivado, lembrando a todos que fui uma eleitora do presidente Lula. Vez por outra sou alvo de alguma cara feia, mas ignoro solenemente e continuo a dirigir o meu carro pelas ruas da cidade. 

    Entretanto a vida nunca segue como planejamos ou queremos, as boas e más surpresas no exercício do viver são diárias, e ontem não foi diferente. Estava no intervalo do trabalho quando soube da morte da Gal, acreditei num primeiro momento que poderia ser mais uma fake news propagada por algum bolsonarista no afã de se vingar dela, afinal a cantora apoiou incondicionalmente a eleição do ex-metalúrgico e ex-presidente, pois mesmo que discreta, sempre esteve ao lado da democracia.  Após escrutinar as redes sociais confirmei a trágica notícia. As lágrimas invadiram o meu rosto, sem cerimônia, e algumas pessoas quiseram saber o que estava acontecendo. A perplexidade com a notícia arrebatou a todos, mesmo aos que não compreendem a grandiosidade da tropicalista no cenário cultural brasileiro. Assim, quase instantaneamente, parei o que estava fazendo e olhando para o infinito, rememorei algumas passagens da Gracinha na minha vida. 

    Desde muito pequenina, escutava em casa os grandes nomes da música popular brasileira: Gil, Caetano, Milton, Gal, Betânia, Chico, Ney, dentre outros. Colecionávamos os discos dessas estrelas. A trilha sonora da minha infância e adolescência era o que havia de melhor da música brasileira. Quando esses ídolos apareciam na televisão, ficava estática e extática diante da qualidade estética desses grandes artistas. Os Doces Bárbaros, como também os Secos e Molhados eram os meus preferidos, e à nova estética introduziram uma ousadia que remexia meu coração de menina que desabrochava.  Minha mãe, D. Socorro, era fã incondicional desses grupos e da Gal, e a morte da baiana,  de alguma forma, foi como perder minha mãe novamente.   

    Quando criança emoldurava meus cabelos negros e lisos em cachos feitos por minha mãe, impunha um microfone estilizado na mão esquerda, colocava na vitrola a voz da Gal e a dublava. Para ficar parecida com aquela mulher desbundada e deslumbrante, fui ao cabeleireiro escondido da minha mãe para fazer um permanente nos cabelos, querendo uma juba esvoaçante, encaracolada e selvagem daquela mulher icônica.  D. Socorro resistia ao procedimento, porque além de ser feito com produtos químicos muito fortes - eu era uma criança muito alérgica- ela tinha medo que eu passasse mal e além disso estragasse os cabelos pretos, lustrosos, que ela cuidava com máscaras caseiras de abacate, azeite de oliva e outros ingredientes naturais. Mas não teve jeito, pus em prática o meu plano de ser Gal.  

    Para tal intento contei com a colaboração financeira de uma tia, falecida há pouco mais de dois meses, que se chamava também Maria das Graças, como a cantora baiana. Saí escondida da minha mãe e fui ao cabeleireiro no mesmo quarteirão da minha casa. A alegria era tanta! Eu iria me transformar em uma Doce Bárbara aos doze anos!  Disse animada ao cabeleireiro o que queria, ele deveria aparar os meus cabelos e fazer o tal permanente apenas nas pontas.

    O profissional se animou com tanto cabelo, e de boa qualidade que cortou, sem dó, nem piedade. A cada tic tic da tesoura , eu o alertava que estava ficando muito curto e que eu queria que fosse no comprimento dos ombros, igual ao da Gal. Para as minhas observações, o sujeito sempre tinha uma justificativa. Resolvi parar de reclamar e não mais me olhar no espelho durante o procedimento, mesmo desconfiando que talvez ele estivesse no caminho errado. Após o corte, foi a hora de colocar aquele produto com cheiro de fossa aberta e os rolinhos, nas madeixas. Que animação! Será que eu ficaria tão bonita e selvagem como minha musa? Ledo engano.

    Quando o cabeleireiro tirou os rolinhos da minha cabeça, os caracóis dos meus cabelos não estavam soltos e ferozes como os dela, pelo contrário, ficaram tímidos, grudadinhos no couro cabeludo. Chorei lá mesmo. O profissional da tesoura (literalmente), constrangido, tentava me consolar, mas não havia jeito, nem ninguém que fizesse o meu pranto cessar. A contragosto, paguei o mau serviço e fui para a casa chorando copiosamente. O mais duro foi encontrar os meus colegas no meio do caminho, que espantados com a mudança tão abrupta perguntavam: Por que você fez isso no teu cabelo?  Ao que eu respondia dissimuladamente, sem dar o braço a torcer: Ué? Porque eu quis. Me acho melhor assim!   

    Quando cheguei em casa, minha tia já havia confessado o “crime” e estava com a minha mãe me aguardando. Quando me viram chorando, tia Graça constrangida e minha mãe surpresa foram me consolar, meus irmãos tiraram um sarro da minha nova cabeleira, como os meus colegas do colégio. Foi um martírio ir à escola naquele momento, pois o bullying era prática tão recorrente como comum nas escolas e mesmo nas famílias.

    Entretanto como nenhuma tristeza é para sempre, passados alguns meses, os cabelos cresceram e os cachos foram ficando exatamente como os da Gal Fatal, graúdos e marcantes, e assim eu fui me metamorfoseando numa mulher, nem sempre doce e nem sempre bárbara, mas sempre grata à Gal por tudo o que ela representou para as mulheres e cultura brasileira. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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