O caso das joias das Arábias exige punição exemplar a Bolsonaro
A Justiça, o Congresso e o TCU devem se debruçar sobre este caso e conferir-lhe caráter pedagógico
A cada dia surgem novas revelações a respeito da tentativa de entrada ilegal de joias, no valor de 16,5 milhões de reais, recebidas de presente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro dos governantes da Arábia Saudita em novembro de 2021.
À medida que vão se agregando novos detalhes à trama crescem as evidências de ilegalidades passíveis de processo e punição.
Aos crimes de apropriação de bem público e de atentado contra a ordem tributária já apontados desde quando o jornal Estado de S. Paulo trouxe a público o escândalo, agora agregam-se as suspeitas de corrupção passiva e obstrução de Justiça.
O imbróglio engolfou a figura do ex-presidente a tal ponto que obrigou o adiamento de seu retorno dos Estados Unidos para o Brasil.
De seu retiro, ele assiste o caudal que o arrasta para a vala dos investigados na esfera judicial e pode eventualmente vir a comprometer ainda mais seu futuro político.
Como se não bastassem o histórico de promoção de "rachadinhas", ou a proximidade com milicianos, agora Bolsonaro aparece envolvido com a apropriação de patrimônio público. Tentou em ao menos oito oportunidades apoderar-se de joias no valor de 16,5 milhões de reais. Conseguiu fazer passar pela alfândega ilegalmente joias de 400 mil reais. Para liberar a ilegalidade, usou a estrutura e a hierarquia do governo. Neste particular, cumpre perceber a participação de militares nos esforços para fazer dobrar as regras e os funcionários da Receita Federal, que não cederam, apesar de pressionados.
Do lado militar, participaram, além de Bolsonaro, o então ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, o major promovido a tenente coronel Mauro Cid, ajudante de ordens e braço direito de Bolsonaro, e o sargento Jairo Moreira da Silva, numa típica "missão" voltada para desencravar as joias apreendidas.
Militares que deveriam, pelo que são, zelar pela ética no trato da coisa pública envolveram-se na operação, fracassada.
A rapina foi frustrada graças à firmeza de funcionários federais civis estáveis da Receita Federal. Eles se recusaram a ceder mesmo a pressões do superior hierárquico, o então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Gomes, premiado em seguida com uma sinecura em Paris.
Desde 2016, os presidentes da República, por resolução do Tribunal de Contas da União, passaram a ser obrigados a transferir ao patrimônio da União todos os presentes recebidos, com raras exceções.
Como estabeleceu na ocasião o voto do ministro Walton Alencar, presentes de valor excepcional não podem ser considerados de uso personalíssimo:
"Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade", escreveu.
Numa primeira vez, Bolsonaro passou pela alfândega sem declarar as joias de R$ 400 mil e as pegou para si.
Numa segunda vez, o presidente insistiu na prática delituosa, usando o cargo para desembaraçar a tal mercadoria de R$ 16,5 milhões, que o ministro almirante Albuquerque dizia aos fiscais ser destinada à então primeira-dama Michele.
Na primeira vez, Bolsonaro pegou para si, sem obedecer a lei, patrimônio que é da União.
Não satisfeita a cobiça, reincidiu, por ao menos oito vezes, na tentativa de usar o cargo para empalmar um butim de natureza semelhante, mas bem mais valioso: os R$ 16,5 milhões em joias destinadas a Michele, que se declarou surpresa.
Tudo foi tentado depois que a ilegalidade foi flagrada pelos funcionários da Receita no aeroporto de Guarulhos, na fila do "nada a declarar".
A Justiça brasileira, a Comissão de Ética da Presidência da República, o Congresso e o Tribunal de Contas da União devem se debruçar sobre este caso e conferir-lhe caráter exemplar e pedagógico.
Jamais o poder conferido pelas urnas para ungir a mais importante autoridade da República deve ser usado para busca de enriquecimento pessoal.
Para além disso, cabe apurar os artifícios da autoridade para ocultar eventuais crimes
A lei deve valer para todos, poderosos ou humildes, eleitos e eleitores, civis ou militares, sem se vergar ao arbítrio de qualquer autoridade.
Para além do julgamento das instâncias responsáveis, espera-se que também a população exerça seu direito de pressionar para que a verdade, a começar pelos atos do ex-presidente da República, prevaleça, doa a quem doer, e com as consequências jurídicas e políticas adequadas aos fatos.
Se já não conseguiu se reeleger, Bolsonaro revela-se um fardo político cada vez mais pesado de ser conduzido, como atestam até mesmo alguns dos que o apoiaram, supostamente mais ciosos do tema da moralidade na gestão da coisa pública.