A canhoteira
Ela trancou maxilares, firmou joelhos e soltou a mão com toda força
- Alô! Alôôô!
- Calma, Silvana, é Marilda.
- Que hora é essa?
- 3 e meia da madrugada, desculpe.
- Qual é o grilo? Ah, já sei tá me ligando porque o Fernando Henrique ganhou a eleição e vai ter programa ao vivo?
- Não, o papo é bem mais sério. Tô aliviada e arrependida. Aliviada porque bati nele, arrependida porque bati pouco.
- Bateu em quem Marilda, no presidente?
- Não brinca, Silvana. Meti a mão no Everaldo.
- Até ontem você era só suspiros e elogios pra ele, divertido, boa pinta. Eu avisei: o malandro é casado.
- (Marilda respira fundo) Vou contar do início. Ontem eu comi lá no bandejão da TV. Já era uma da tarde quando terminei. É a essa hora que ele chega pra trabalhar. Então eu dou uma saída, faço de conta que vou fumar e espero que ele pare o carro. Finjo uma casualidade sabe?
- Ô, se sei.
- Daí a gente conversa. É o melhor momento do dia. Semana passada, ele até me ofereceu um café ali perto da TV, naquela pada...
- Não chora Marilda, calma. O que ele fez que te deixou tão sentida?
- Para não desencontrar dele, saí da mesa apressada. Nem escovei os dentes e corri até o carro (Marilda soluça). Cheguei assim na janela, quase entrando no Monza azul dele. Minha mãe ia dizer que eu parecia uma sirigaita.
- Não tem nada de sirigaita, eu faria o mesmo.
- Tava ansiosa, amiga. (Marilda bebe algo, Silvana ouve os goles ruidosos e torce pra que seja água) Aí, joguei um charme: “oi Evê, nossa como você tá lindo com essa camiseta.” Sorri para mostrar segurança, foi nessa que errei.
- Por quê?
- Porque ele me olhou fixamente e com bastante deboche falou assim: “a feijoada tava boa, Marilda?” Minhas pernas tremeram, senti o calor subir pelas orelhas e entendi que devia ter uma casca de feijão, um resto de comida no meu sorriso.
- Não acredito.
- Enquanto eu morria de vergonha, ele ria, gargalhava bem alto e repetia. “Ih, não adianta tentar tirar com a língua, não. Quer o fio dental emprestado? Escova de dentes?”
- Que crueldade, Marilda. Chora, chora que é bom.
- (Marilda retoma o fôlego) Tinha certeza que ele ia prestar atenção no meu decote, no esmalte novo que eu botei com todo capricho ou no meu perfume. Aí, o nojento me vem com uma grosseria dessas.
- O que você fez?
- Cerrei bem os dentes, firmei os pés no chão e virei a canhota com toda a força. Um tabefe de mão cheia, espalmada. Minhas unhas chegaram na orelha e a parte mais dura da minha mão, junto do pulso, quase destroncou o queixo dele.
- Alguém viu?
- O pessoal da limpeza olhou de longe, mas aquele repórter gaúcho, o Carlos, tava chegando e, esperto, sacou tudo.
- Lá na maquiagem, ninguém comentou nada. Você falou com a sua chefia?
- Não. Aposto que o medo do cafajeste é saberem que apanhou de mulher. Vai ficar na dele, como machista que é. Mas se chegar ao meu chefe, vou ser demitida. Logo agora, que vou completar dez anos de casa, nesse fim de 1994. É isso que me deixa louca.
- Ser demitida?
- Não, Silvana. Ter dado um tapa só. O castigo é o mesmo para um tapa ou uma surra. Eu devia ter dado uma meia dúzia de porradas nele. Pra ele aprender a respeitar uma paixão. Sabe o que mais?
- Teve mais?
- Semana passada, depois do jornal da noite, foi todo mundo pro boteco perto da TV e a gente se encontrou. Rolou uma carona. Logo no primeiro farol, me tascou um beijo. Quente. Molhado. Delícia.
- Fala mais.
- O danado reclinou o banco aveludado do Monza.
- Marilda, Marilda.
- Entendeu porque fui toda animada falar com ele?
- Claro. Volta pro banco reclinado.
- Ficou no beijo e no amasso., Silvana. Ele não tinha camisinha, mas eu vi tudo. Um espetáculo, amiga.
- Já perdi o sono.
- Só mais uma coisa, Silvana.
- Hã.
- Não era casca de feijão.
- Como assim?
- O resto de comida no meu dente era um pedaço de couve. Tudo isso, por um naco verde. Maldita couve.
- Já reparei que agarra mesmo no dente.
- Grudou que nem a pergunta dele, que não sai da minha cabeça: “a feijoada tava boa, Marilda?“
**
- Silvana, mudei de horário e já faz uns dois meses que não te vejo.
- Saudade. Fala logo, Marilda. Você não liga à toa.
- O songa-monga do Everaldo vai ser transferido. Será cinegrafista lá na TV de Brasília.
- Já vai tarde, né?
- Outro dia quase pedi desculpa, só que quando ele me cruza sempre olha chão. Desisti.
- Deixa quieto, Marilda. Ouvi falar que separou da mulher.
- Em compensação, comecei a namorar o Jandir, o da cenografia.
- Que tal?
- Tô adorando, já me levou até para conhecer os pais.
**
A TV primeiro mudou de endereço, depois faliu. Silvana virou maquiadora de cinema. Marilda se aposentou como editora num canal a cabo, teve dois filhos com Jandir e ficou viúva na pandemia. Everaldo entrou no terceiro casamento e foi promovido a supervisor em outra emissora.
Numa tarde de sábado, depois do almoço, Marilda ajeita os óculos e confirma: a antiga paixão atravessa a rua Augusta com uma criança. Marilda acelera o passo e cutuca o ombro de Everaldo. O senhor de cabelos brancos e óculos se vira. Está surpreso, talvez ainda tenha medo da canhota de Marilda.
Não sabe que ela, agora com 61 anos, aprendeu a economizar emoções.
- Tudo bem, Everaldo? Quanto tempo.
- Tudo em cima. Esse é o Henrique, meu neto.
- Desculpe interromper o passeio de vocês. É que você, Everaldo, há 29 anos, me fez uma pergunta, que eu nunca respondi. Lembra?
- Hã, hã.(Everaldo olha pros pés e Henrique aperta a mão do avô)
- Pois então, a feijoada tava ótima, Everaldo. A couve mais ainda. Até mais.
Marilda dá um sorriso farto, demorado e sobe a Augusta.
*Nomes, locais, datas e até alguns detalhes foram modificados para não identificar os personagens dessa história, que aconteceu em São Paulo no fim do século XX.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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