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Pedro Maciel

Advogado, sócio da Maciel Neto Advocacia, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007

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Linguagem: colonização e resistência

Linguagem: substantivo feminino; qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.

Ato de mulheres contra Jair Bolsonaro (Foto: Lula Marques)

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Nunca apresentei ao leitor as minhas noras; vou apresentá-las por ordem de chegada aos nossos corações: Gabriela, mãe da Isabela; Ana Julia e Claudia, que traz no “forninho” a Clarice, ansiosos desejamos que chegue plena de saúde; elas são, naturalmente, pontepretanas, de origem ou convertidas (condição para convivência não beligerante aqui em casa); todas graduadas e pós-graduadas, lindas em seus sorrisos e, em sendo minhas noras, garantiram algumas eternidades de perdão para improváveis pecados. 

Hoje vou falar do xeque-mate que a Ana Julia me impingiu.

Há expressões idiomáticas das quais não gosto, assim como não gosto de usar anglicismos. E a Ana Julia ou, simplesmente, Naju, me perguntou, como quem não quer nada: “Peter, por que você não gosta de expressões como ‘da hora’ e ‘dar um rolê’” (há inúmeras outras que eu não gosto, não uso e censuro quem as usa).

Pensei: “ela se preparou”. 

Meu filho Mateus e eu já havíamos travado um “debate sanguinário” sobre a adequação, ou não, em usar essas expressões, mas como ia começar o jogo da Ponte, suspendemos o debate e subimos para a sala de TV; a Naju me pegou desprevenido, eu estava dividindo a concentração entre a estrada (voltávamos de Rio Claro), e a construção de argumentos e justificativas para a minha opinião. 

As expressões citadas têm origem nas regiões periféricas das cidades; lá a classe trabalhadora se equilibra entre sonhos e frustrações, sendo vencida quase sempre pela realidade, que, cruel, se impõe: a miséria da casa ao lado, a falta de Estado e, em muitas comunidades, a disputa de poder entre as milicias, o tráfico e o crime organizado.

Fato é que não gosto de algumas expressões porque me remetem a uma realidade que não pode ser normalizada, porque acredito que a resistência e a superação da realidade indesejada começam com a linguagem.

Então ela exclamou “Peter, meu Deus! Essa é uma visão elitista”, foi uma “paulada” tão doída que até perdi o acesso da rodovia Washington Luiz para a Anhanguera, sentido Campinas, tive que fazer um retorno quase em Araras. 

Mas Naju, impiedosa, não parou e continuou com uma sequência de jabes: “o fato de você não gostar dessa ou daquela expressão, diz respeito à sua ética, que é algo individual, pessoal, você não pode julgar ou rotular as pessoas e as comunidades que fazem uso delas”

Tentei argumentar citando Wittgenstein, para quem a linguagem, numa primeira fase do seu pensamento, era vista como uma figuração da realidade, o que conduziria ao estabelecer limites para a linguagem, a partir dessa relação de representação, o que ele expressou dizendo: “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”, ou seja, na minha maneira de ver, usar anglicismo ou expressões e gírias contemporâneas estabelecem limites que não podem nos servir no processo de avançar sempre nas interações humanas. 

Mas em vão, pois, ela disse apenas: “nunca li Wittgenstein”, ou seja, habilmente ela impediu que eu escorasse meu argumento no pensamento do filósofo da linguagem. Não pude seguir omitindo dela que, noutra obra, mais recente, Wittgenstein passou a considerar a linguagem não apenas como representação, mas como uma forma de vida, ou seja, ele nos faz olhar para a vida, para as práticas linguísticas, mostrando que é somente na prática, no uso da linguagem, que os significados são constituídos, ou seja, na vida. Para ele “Todo signo sozinho parece morto. O que lhe dá vida?” e responde a questão dizendo: “No uso, ele vive”, noutras palavras: é a historicidade desse uso que constitui o ordenamento social e uma provisória estabilidade dos sentidos da linguagem, que funcionam como roteiros ocultos a nossas práticas linguísticas e culturais. 

De fato, a minha “implicância” com expressões que tem origem nas periferias, somada à minha tolerância com anglicismos como: hub, players, budget e upside, mostraram que esse meu ponto de vista é, de fato, colonizado e elitista; um ponto de vista que tenho de deixar de lado, pois ele impede um olhar generoso para o cotidiano, me impede de perceber como a violência pode ser reinscrita, ressignificada a partir de determinadas formas de vida. 

As expressões que eu censuro, por puro elitismo e preconceito, são manifestação da dor no cotidiano, são expressões que deveriam me interessar, afinal eu me vejo como alguém que deseja perceber como as juventudes da periferia reinscrevem as situações de dor e violência em suas práticas de arte e cultura; a Naju me mostrou que sou apenas um diletante refém da minha arrogância. 

Fato é que a inventividade no cotidiano é uma forma de resistência, pois, resistir é criar.

Celinha, que além de advogada é pedagoga, ao testemunhar minha aflição com a minha certeza em decomposição, jogou a pá de cal e disse: “Você deveria se envergonhar de pensar e verbalizar um ponto de vista tão elitista, a Naju, uma menina está certa; nem parece que lemos Paulo Freire juntos; ou você esqueceu que, segundo ele: “as palavras brotam do nosso cotidiano, como força criadora? Que as palavras-mundo funcionam como palavras geradoras, palavras-sementes que conduzem temas, motivadores de ações político-culturais”.

E Celinha, senhora do meu coração, disse ainda: “não esqueça que temos que experimentar com intensidade a dialética entre a ‘leitura do mundo’ e a ‘leitura da palavra’, e mais, nos processos de aprendizado da linguagem ocorrem os estados de procura, de invenção e de reivindicação; ou seja, essa perspectiva permite a compreensão da palavra que explode com inventividade no cotidiano”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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