O BRICS de Kazan apontou que o rumo é o protagonismo do Sul Global

Reunião do Brics anuncia construção inédita na história humana

Cúpula de Kazan evidenciou que o chamado Ocidente não conseguiu obter o isolamento geopolítico do país de Vladimir Putin, nem da China

São tantas e tão transcendentes as conquistas da 16ª reunião de cúpula do grupo Brics, na cidade russa de Kazan, que fica difícil destacar um aspecto principal em meio a tantas resoluções e desdobramentos superpondo-se em curso frenético no plano geopolítico, econômico e institucional. A importância do encontro será lembrada, e suas ondas de repercussão serão sentidas por meses e anos.

Ao grupo inicial de quatro países, em 2009, o Bric, depois Brics, experimentou agora uma nova e vigorosa onda de adesões e candidatos. Esta foi a primeira cúpula com os novos membros plenos – Irã, Egito, Emirados Árabes Unidos e Etiópia. Foram definidos mais 13 possíveis membros associados, entre eles Cuba, Bolívia, Turquia, Nigéria e Indonésia.

Ficou evidente o reforço agora agregado ao Brics como afirmação do anseio de dezenas de países do Sul Global pela criação de uma ordem alternativa à hegemonia das grandes potências do Atlântico Norte, sendo o Brics o estuário desse desejo. Representantes de 36 países se reuniram na cúpula ampliada do Brics na quinta-feira, no contexto da conferência dos líderes do bloco. Também participaram do encontro seis organizações internacionais, incluindo o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e a presidente do banco dos Brics, a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff.

Entre os países convidados para o encontro estavam Cuba, Bolívia, Venezuela, Turquia, Vietnã, Indonésia, Bangladesh, Malásia, entre outros. Também participou o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. O Brasil foi representado pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, que falou sobre Gaza, Cuba, reforma da ONU e Ucrânia.

A dimensão histórica do encontro se manifestou na busca unânime pelo fortalecimento de meios de pagamento alternativos ao Swift, sistema dominado pelas instituições submetidas ao comando da Casa Branca, ou seja, capazes de congelar e sequestrar recursos de países como Rússia e Venezuela, e de pessoas sancionadas por contrariar a hegemonia estadunidense. Além disso, a reunião buscou consolidar mecanismos de comércio internacional direto entre os países em moedas nacionais e à margem do dólar, bem como uma rede de conectividade logística da América Latina e África com a Ásia e o Oriente Médio.

O objetivo explicitado na declaração final é criar mecanismos alternativos ao domínio dos Estados Unidos sobre as instituições financeiras globais. O peso dos países pobres e em desenvolvimento na economia global mudou dramaticamente nas últimas décadas, mas isso não se refletiu adequadamente nos sistemas de gestão do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e de outros bancos multilaterais.

Uma conjunção de esforços de nações emergentes já foi tentada anteriormente. Com tal escopo e efetividade, porém, constitui empreitada absolutamente inédita na história da humanidade.

Além dos inúmeros encontros de aproximação bilateral, a conferência celebrou o descongelamento em áreas de conflito entre os países. Líderes como o presidente chinês Xi Jinping e o indiano Narendra Modi reuniram-se cara a cara para anunciar entendimentos visando encerrar conflitos em seus 4 mil quilômetros de fronteira não demarcada. O mesmo fizeram delegações de outros países com atritos entre si, como Azerbaijão e Armênia, Egito e Etiópia, mostrando que o Brics funciona também como ambiente para o arrefecimento de tensões internacionais.

Na declaração final, os membros do Brics ressaltaram o compromisso de cumprir os requisitos destinados a evitar a catástrofe climática, realizar com urgência a transição energética e regular os usos da inteligência artificial. Condenaram o terrorismo de Israel no Líbano e pediram um cessar-fogo imediato em Gaza e na guerra entre Rússia e Ucrânia.

Sobre a Rússia, hospedeira do evento, aliás, a reunião do Brics evidenciou que o chamado Ocidente não conseguiu obter o isolamento geopolítico do país de Vladimir Putin, nem da China. Desprezado pelas lideranças políticas, espezinhado pelos meios de comunicação submissos aos Estados Unidos, Europa e Brasil, o encontro projeta uma força alternativa no mundo, mais aberta, igualitária, desimpedida e democrática. Não é à toa que esse advento coincida com a tensa decadência da hegemonia dos Estados Unidos e das instituições ligadas ao dólar. O império está ruindo, o que carrega seus perigos. Uma nova forma de convivência está crescendo, e ao Brasil de Lula cabe a responsabilidade de levar adiante essa construção ao assumir a presidência do grupo em 2025.

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