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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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A causa secreta de Machado de Assis

Recolho-me à minha posição de mais um feliz leitor de Machado de Assis. Com um prazer deliciosamente longo

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José Carlos Ruy observa no Dicionário Machado de Assis, ainda inédito: 

“Qualquer leitor que confunda - e não perceba - a relação dialética que há na obra de Machado de Assis, entre o escritor autor dos romances, contos e novelas, e os múltiplos narradores que criou para narrar ficcionalmente os relatos, não compreenderá a aguda crítica social nela apresentada - e que muitos já descreveram como a ‘ironia’ machadiana’ ”.

Isso estabelecido, posso observar que os contos de Machado de Assis são  tão bons quanto seus romances. Em alguns contos, ele é até melhor que o romancista. E me perdoem se cometo uma heresia, na frase anterior e nesta a seguir: Machado de Assis é um dos melhores contistas do mundo. Vê-lo assim significa que ele é, por exemplo, tão bom ou melhor quanto o contista Ernest Hemngway, tão bom quanto Tchekhov, Maupassant e Gabriel García Márquez, e bem melhor que Dalton Trevisan. Mas o ditado popular esclarece que falar é fôlego e cará é sustança. 

Então, de modo claro, digo que muitos leitores confundem a qualidade de um escritor com a natureza dos seus temas. Se assim fosse, todo autor que escrevesse sobre a revolução seria um revolucionário, um gênio. Mas nem todo escritor, nesse particular, é Górki ou Isaac Babel. E de modo mais claro, quero dizer: a narração que um escritor consegue sobre os seus temas é que fala da sua excelência. Então, de modo simples, quando me refiro à qualidade imensa de Machado de Assis em seus contos, penso em “A causa secreta”, por exemplo. Reli-o ontem, com o mais acentuado prazer. E uma obra de arte é assim, quanto mais é relida, maior é o gozo. Nesse conto, primeiro nos  encanta a estrutura do que ele narra, com descidas no tempo: . 

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“Garcia em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço. 

Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação”. 

Depois, o nível íntimo da perversão de Garcia. Em nenhum espaço do texto, Machado de Assis usa a palavra perversão. Esse é o tema (!), que ele não nomeia às claras. Mas olhem só o nível mórbido, perverso do personagem, quase diria do animal selvagem, se os animais selvagens fossem perversos:

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“O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda, Fortunato segurava um barbante, de cuja ponta pendia um rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. 

— Mate-o logo! disse-lhe. 

— Já vai. 

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E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. 

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue”. 

A gente sabe que uma cena assim, tais pessoas existem na vida real. Os fascistas estão aí. Mas eu me pergunto: que narrador teria localizado alguém tão “normal”, tão defensor da família, com tamanha penetração e flagrante? Freud não o conseguiria. Então, chegamos ao que considero o ápice do sadismo no conto, não só pelo ato narrado, mas pelo modo magistral com que Machado de Assis escreve sobre a espionada cena. Na noite do velório da sua esposa, Fortunato descobre o amor reprimido do amigo Garcia perante o caixão da falecida: 

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“Vinte minutos depois, Fortunato acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. 

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. 

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”.

E termina o conto. Mas essa frase sobre o sádico sentir a dor do outro   “longa, deliciosamente longa”  é uma realização imortal que não sai da gente. E mais não devo falar. Recolho-me à minha posição de mais um feliz leitor de Machado de Assis. Com um prazer deliciosamente longo.

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