Os juros segundo o Rei da Vela
"No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca!"
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
ABELARDO I (Sentado em conversa com o Cliente. Aperta um botão, ouve-se um forte barulho de campainha.) — Vamos ver...
ABELARDO II (Veste botas e um completo traje de domador de feras. Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos. Monóculo. Um revólver à cinta.) — Pronto, Seu Abelardo.
ABELARDO I — Traga o dossiê deste homem.
ABELARDO II — Pois não! O seu nome?
CLIENTE (Embaraçado, o chapéu na mão, uma gravata de corda no pescoço magro.) — Manoel Pitanga de Moraes
ABELARDO II — Profissão?
CLIENTE — Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana. O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu a menina...
ABELARDO II — Já sei. Está nos IMPONTUAIS. (Entrega o dossiê reclamado e sai.)
ABELARDO I (Examina.) — Veja! Isto não é comercial, seu Pitanga! O senhor fez o primeiro empréstimo em fins de 29. Liquidou em maio de 1931. Fez outro em junho de 31, estamos em 1933. Reformou sempre. Há dois meses suspendeu o serviço de juros... Não é comercial...
O CLIENTE — Exatamente. Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada, com a Revolução de 30. A primeira foi para o parto. A criança já tinha dois anos. E a Revolução em 30... Foi um mau sucesso que complicou tudo…
ABELARDO I — O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa…
O CLIENTE — Há dois meses somente não pago juros.
ABELARDO I — Dois meses. O senhor acha que é pouco?
O CLIENTE — Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo. A fim de não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tanta gente. É amigo de todo mundo... Por que comigo não há de fazer um acordo?
ABELARDO I — Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento!
O CLIENTE — Mas eu me acho numa situação triste. Não posso pagar tudo, seu Abelardo. Talvez consiga um adiantamento para liquidar...
ABELARDO I — Apesar da sua impontualidade, examinaremos as suas propostas...
O CLIENTE — Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei enquanto pude! A minha dívida era de um conto de réis. Só de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até agora não me utilizei da lei contra a usura...
ABELARDO I (Interrompendoo, brutal.) — Ah! meu amigo. Utilize-se dessa coisa imoral e iníqua. Se fala de lei de usura, estamos com as negociações rotas... Saia daqui!
O CLIENTE — Ora, Seu Abelardo. O senhor me conhece. Eu sou incapaz!
ABELARDO I — Não me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa, ouviu? A camisa do corpo.
O CLIENTE — Eu não vou me aproveitar, Seu Abelardo. Quero lhe pagar. Mas quero também lhe propor um acordo. A minha situação é triste... Não tenho culpa de ter sido dispensado. Empreguei-me outra vez. Despediram-me por economia. Não ponho minha filhinha na escola porque não posso comprar sapatos para ela. Não hei de morrer de fome também. Às vezes não temos o que comer em casa. Minha mulher, agora, caiu doente. No entanto, sou um homem habilitado, tenho procurado inutilmente emprego por toda a parte. Só tenho recebido nãos enormes. Do tamanho do céu! Agora, aprendi escrituração, estou fazendo umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar... Quero ver se adiantam para lhe pagar.
ABELARDO I — Mas, enfim, o que é que o senhor me propõe?
O CLIENTE — Uma pequena redução no capital.
ABELARDO I — No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca!
O CLIENTE — Mas eu já paguei mais do dobro do que levei daqui...
ABELARDO I — Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu que fui procurá-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei?
O CLIENTE (Desnorteado.) — Eu já paguei duas vezes...
ABELARDO I — Suma-se daqui! (Levanta-se.) Saia ou chamo a polícia. É só dar o sinal de crime neste aparelho. A polícia ainda existe...
O CLIENTE — Para defender os capitalistas! E os seus crimes!
ABELARDO I — Para defender o meu dinheiro. Será executado hoje mesmo. (Pressiona a campainha.) Abelardo! Dê ordens para executá-lo! Rua! Vamos. Fuzile-o. É o sistema da casa.
O CLIENTE — Eu sou um covarde! (Sai chorando.) O senhor abusa de um fraco, de um covarde!
(O Rei da Vela, Oswald de Andrade, 1937)
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: