Alex Solnik avatar

Alex Solnik

Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de treze livros, dentre os quais "Porque não deu certo", "O Cofre do Adhemar", "A guerra do apagão" e "O domador de sonhos"

2535 artigos

blog

Os juros segundo o Rei da Vela

"No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca!"

Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

ABELARDO I (Sentado em conversa com o Cliente. Aperta um botão, ouve-se um forte barulho de campainha.) — Vamos ver... 

ABELARDO II (Veste botas e um completo traje de domador de feras. Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos. Monóculo. Um revólver à cinta.) — Pronto, Seu Abelardo. 

ABELARDO I — Traga o dossiê deste homem. 

ABELARDO II — Pois não! O seu nome? 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

CLIENTE (Embaraçado, o chapéu na mão, uma gravata de corda no pescoço magro.) — Manoel Pitanga de Moraes 

ABELARDO II — Profissão? 

CLIENTE — Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana. O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu a menina... 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

ABELARDO II — Já sei. Está nos IMPONTUAIS. (Entrega o dossiê reclamado e sai.) 

ABELARDO I (Examina.) — Veja! Isto não é comercial, seu Pitanga! O senhor fez o primeiro empréstimo em fins de 29. Liquidou em maio de 1931. Fez outro em junho de 31, estamos em 1933. Reformou sempre. Há dois meses suspendeu o serviço de juros... Não é comercial... 

O CLIENTE — Exatamente. Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada, com a Revolução de 30. A primeira foi para o parto. A criança já tinha dois anos. E a Revolução em 30... Foi um mau sucesso que complicou tudo…

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

ABELARDO I — O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa…

O CLIENTE — Há dois meses somente não pago juros. 

ABELARDO I — Dois meses. O senhor acha que é pouco? 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O CLIENTE — Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo. A fim de não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tanta gente. É amigo de todo mundo... Por que comigo não há de fazer um acordo? 

ABELARDO I — Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento! 

O CLIENTE — Mas eu me acho numa situação triste. Não posso pagar tudo, seu Abelardo. Talvez consiga um adiantamento para liquidar... 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

ABELARDO I — Apesar da sua impontualidade, examinaremos as suas propostas... 

O CLIENTE — Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei enquanto pude! A minha dívida era de um conto de réis. Só de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até agora não me utilizei da lei contra a usura... 

ABELARDO I (Interrompendoo, brutal.) — Ah! meu amigo. Utilize-se dessa coisa imoral e iníqua. Se fala de lei de usura, estamos com as negociações rotas... Saia daqui! 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O CLIENTE — Ora, Seu Abelardo. O senhor me conhece. Eu sou incapaz! 

ABELARDO I — Não me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa, ouviu? A camisa do corpo. 

O CLIENTE — Eu não vou me aproveitar, Seu Abelardo. Quero lhe pagar. Mas quero também lhe propor um acordo. A minha situação é triste... Não tenho culpa de ter sido dispensado. Empreguei-me outra vez. Despediram-me por economia. Não ponho minha filhinha na escola porque não posso comprar sapatos para ela. Não hei de morrer de fome também. Às vezes não temos o que comer em casa. Minha mulher, agora, caiu doente. No entanto, sou um homem habilitado, tenho procurado inutilmente emprego por toda a parte. Só tenho recebido nãos enormes. Do tamanho do céu! Agora, aprendi escrituração, estou fazendo umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar... Quero ver se adiantam para lhe pagar. 

ABELARDO I — Mas, enfim, o que é que o senhor me propõe? 

O CLIENTE — Uma pequena redução no capital. 

ABELARDO I — No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca! 

O CLIENTE — Mas eu já paguei mais do dobro do que levei daqui... 

ABELARDO I — Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu que fui procurá-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei? 

O CLIENTE (Desnorteado.) — Eu já paguei duas vezes... 

ABELARDO I — Suma-se daqui! (Levanta-se.) Saia ou chamo a polícia. É só dar o sinal de crime neste aparelho. A polícia ainda existe... 

O CLIENTE — Para defender os capitalistas! E os seus crimes! 

ABELARDO I — Para defender o meu dinheiro. Será executado hoje mesmo. (Pressiona a campainha.) Abelardo! Dê ordens para executá-lo! Rua! Vamos. Fuzile-o. É o sistema da casa. 

O CLIENTE — Eu sou um covarde! (Sai chorando.) O senhor abusa de um fraco, de um covarde!  

(O Rei da Vela, Oswald de Andrade, 1937)

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Relacionados

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO