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Úrsula Vidal

Jornalista, Secretária de Cultura do Pará e Presidente do Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura

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Um salto no abismo da inquisição

"Estamos falando de um salto mortal em nossa jornada civilizatória que colocará as mulheres de volta na fogueira"

Ato contra o Projeto de Lei (PL) 1.904/24 (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

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Little boy. Esse foi o apelido dado pelo grupo de jovens militares americanos responsável por transportar, num sobrevoo pelo Pacífico, o mais mortífero artefato bélico já produzido pelo homem e que matou, num só disparo atômico, 100 mil pessoas na cidade japonesa de Hiroshima, em agosto de 1945. Uma bomba criada por homens, disparada por homens, numa guerra em que homens sentaram à mesa  (com a Alemanha já rendida e o Japão negociando a paz) e decidiram que ainda era preciso destruir cidades e incendiar gente. Aos milhares. De uma vez. Indistintamente. 

Trinta e dois anos depois, mais uma guerra. Mais uma arma horrenda usada contra civis: o napalm. A mais famosa imagem dos horrores do Vietnam que atravessou décadas de história, ficando gravada na memória de um planeta estarrecido foi a de uma criança correndo nua; um corpo frágil e diminuto queimando por dentro. Kim Puhuc tinha 9 anos quando o fotógrafo Huynh Cong registrou o exato momento de uma dor intraduzível.

Aquela imagem é a mais cruel metáfora da sujeição a qual os little boys vêm submetendo meninas e mulheres, ao longo das eras. Ou me diga se não tem sido, por séculos e séculos, uma história de sujeição desses corpos sem direitos; corpos-coisa; corpos-coisa-nenhuma? Simplesmente porque era permitido, fomos apedrejadas, escravizadas, vendidas, queimadas na fogueira, traficadas, exploradas e agora, em plena era da informação e da globalização, corremos o risco de ver um estuprador sair da cadeia 10 anos antes de uma mulher que não suportou a repetição diária e continuada desta violência: o estupro. A legislação atual no Brasil - mais especificamente o código civil de 1940 -  permite, assim como em outros 77 países, a interrupção da gestação em casos de risco de morte para a mãe, de fetos anencéfalos e de estupro. 

Vejamos o caso de Célia (os nomes são fictícios. Os casos, reais). Ela tem 3 filhos pequenos: um de 7 anos, uma de 5 e um de bebê de 2 anos. Célia está grávida novamente, mas sua gestação é de altíssimo risco e e ela pode morrer, deixando órfãos seus 3 filhos. Ainda que atravessada por dor excruciante, ela decide que suas crianças precisam dela viva, portanto deve interromper a gestação. Se o projeto de lei que tramita em regime de urgência na Camara for aprovado, Célia passará 20 anos longe do convívio de seus filhos porque estará presa como homicida. 

Agora vejamos o caso de Andreia, violada pelo pai enquanto estava sedada numa cama de hospital. Ou da pequena Norma, de  11 anos, abusada pelo tio, assim como outras 35 mil  meninas de menos de 13 anos que representam quase 66% das vítimas de estupro no Brasil - estupros que acontecem a cada 8 minutos, neste país de violadores. Com o coração estraçalhado, a mãe de Norma decide interromper a gestação. Mas a criança vulnerável, apavorada e confusa viverá sem a convivência da mãe, depois de ter sofrido a abominável violência. O tio estuprador, após 10 anos estará solto e Norma já não terá a mãe para protege-la porque ela estará presa por mais uma década. Sim, mais uma violência contra esta criança, desta vez cometida pelo estado brasileiro. 

Não será um retrocesso de anos, ou de décadas. Estamos falando de um salto mortal em nossa jornada civilizatória que colocará as mulheres de volta na fogueira de uma inquisição que arrebenta corpos, famílias e futuros. E sempre, mais uma vez, uma maioria de homens decidindo sobre a vida e a morte das mulheres. Até quando? 

Pois eu digo: nunca mais.

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