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Ricardo Nêggo Tom

Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247, e colunista do Brasil 247

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O ativismo de Wakanda e a elitização da resistência preta

"Talvez fosse o caso de o tão criticado movimento identitário criar a categoria negro raiz", escreve o colunista Ricardo Nêggo Tom

Mobilização contra a desigualdade racial no Brasil (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)

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Antes que me venham com o chorume de dizer que o título deste artigo é um prato cheio para a branquitude e para os haters da luta por igualdade racial, leiam o texto atentamente e tirem suas honestas conclusões. Eu disse, honestas. Confesso que pensei bastante antes de trazer este tema à pauta, justamente pelo receio de que ele pudesse sugerir uma forma de deslegitimar as conquistas representativas de pretos e pretas nesta sociedade racista. Porém, observando a ausência, seja por incapacidade de ação, omissão, distração ou desinteresse, de parte da esquerda preta (e também branca) junto a população preta e periférica que se encontra desalojada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, me senti instado a provocar uma reflexão interna dentro do campo progressista. Quem sou eu na lista da Abin paralela para isso? Mas, como cidadão preto, pobre e esquerdista de carteirinha, imagino ter o direito de me posicionar no que concerne aos meus interesses pessoais e da coletividade a qual faço parte.

O discurso “a favela venceu” vem tomando proporções inimagináveis e contornos problemáticos para a luta por igualdade racial e social no país. Primeiro, porque a favela não venceu. Se tivesse vencido, não existiria mais. Segundo, porque boa parte dos “favelados” que, de fato, venceram, estão a cada dia mais afastados de suas bases, ignorando aqueles que lá ainda permanecem, e se alinhando e aliando-se ao estilo de vida e ao ideário dos seus opressores históricos. Não percebendo que a aceitação da branquitude à sua ascensão social, é uma nova forma de apresentar os pretos da casa, os quase da família. Uma leitura capitalista para o “é preto, mas...” Deslumbramento talvez seja a palavra correta para definir alguns pretos que, consciente ou inconscientemente, passam a enxergar-se diferenciados dos demais, em função de sua formação ou evolução econômica. E isso vale para outros grupos historicamente minorizados também. Afinal, como diria minha saudosa avó, quem nunca comeu melado, quando come se lambuza e até muda de cor, de classe, de gênero...

Sendo menos metafórico e abusador de licenças poéticas, quero revelar o meu incômodo e descontentamento com a atuação de algumas “representatividades pretas” da esquerda e do campo progressista. Alguns não falam com outros pretos. Observem. A não ser que os outros pretos também pertençam a categoria dos validados pela branquitude. Seja intelectual ou economicamente. Muitos apenas usam a cor da pele e a bandeira da luta antirracista para se promoverem e se manterem sob os holofotes do identitarismo oportunista. Wakanda forever. Estão sempre na companhia desta branquitude para manter as suas conquistas sob a chancela da credibilidade racial. Por questões éticas, declinei de citar nomes, mas eles sabem quem são. No que tange às representatividades políticas, foi brochante ouvir de uma parlamentar das “minorias”, que ela adora ser comparada com a Beyoncé e ser considerada uma diva pop no parlamento, porque isso atrai o público jovem. A entrevista, claro, foi dada a um jornalista branco. E eu, de verdade, vinha admirando o seu trabalho.

O empoderamento de Wakanda is the new black panthers, enquanto Malcolm X se revira no túmulo tentando entender que parte do seu discurso não foi bem entendida ou ele não conseguiu explicar direito. Embora todos os pretos de esquerda repita que não existe capitalismo sem racismo, muitos se deixaram envolver naturalmente pelo capitalismo que vende a carne negra como a mais barata do mercado. Talvez, por não se sentirem mais tão baratos assim na prateleira da representatividade, mesmo ainda sendo pretos. Não estou aqui criticando pretos que ficaram ricos. Pelo contrário, eu também quero ficar. Só trouxa deseja permanecer pobre numa sociedade capitalista. Enquanto não destruímos esse modelo e implementamos um socialismo, de fato, igualitário, precisamos sobreviver. E ninguém sobrevive sem dinheiro. Nem aqui, nem em Wakanda. A minha crítica é à falsidade do discurso de alguns na prática. Algo que, pode até não parecer, mas está sendo bastante observado pela favela que ainda não venceu. A eleição de Bolsonaro e o crescimento da extrema-direita nas periferias, majoritariamente composta por negros, é uma prova disso. E não são poucos os pretos e pretas que experimentaram o descaso e a indiferença, por parte daqueles que iriam lhes representar.

Embora apresentada como um alerta, com relação às táticas utilizadas pela branquitude para destruir a unidade da luta preta, os conselhos e instruções contidos na carta de Willie Lynch ainda surtem um grande efeito na nossa sociedade. As diferenças existentes, ou estabelecidas pelo padrão de qualidade branco, entre nós pretos, para nos fazer acreditar que somos superiores ou inferiores uns aos outros, parece estar sendo absorvida por algumas representatividades pretas da esquerda. Estou me referindo apenas à esquerda, porque é o único segmento que ideologicamente se propõe a lutar contra o racismo e a promover igualdade racial e social. Logo, não deveria ter em suas fileiras representantes pretos subvertidos ao pensamento separatista de Lynch. Mas como estamos falando de seres humanos, de indivíduos, isso é inevitável. Se eu disser que a maioria do público que acompanha e reconhece o meu trabalho é branca, posso sugerir interpretações do tipo “é porque você está agradando a branquitude no seu discurso”. A não ser que a branquitude goste de apanhar, porque eu não costumo poupá-la de um açoite verbal quando o assunto é racismo estrutural.

Pode ser que a maioria branca, e os pretos que me acompanham, percebam a coerência entre aquilo que eu escrevo, falo diante da câmera e pratico no meu dia a dia. O que, apesar da minha pouca representatividade na fila do pão na padaria de Wakanda, me deixa feliz e com a consciência tranquila. Seguindo com as reflexões propostas ao nosso segmento, as faço agora com alguns questionamentos. Por que o PSOL não tem homens pretos nos seus quadros? Por que o PT não tem grandes lideranças pretas a nível nacional? Por que muitos políticos pretos de esquerda oriundos da periferia elitizaram o seu comportamento? Por que muitos ditos ativistas do movimento negro não dialoga com a coletividade negra? Por que muitos pretos ditos de esquerda que ascenderam socialmente se descolaram da negritude ou se fecham em clubinhos de pretos diferenciados pelo sistema Lynch de qualidade? Alguns políticos, artistas e personalidades pretas, estão sempre com a agenda cheia para participarem do meu programa na TV 247, mas sempre arrumam uma vaga na agenda para dar entrevista a um jornalista branco na mesma data. Isso o Wakanda News não mostra.

Se não percebem, esse tipo de comportamento queima o propósito das políticas identitárias, já bastante atacadas pela extrema-direita e por parte da esquerda que acha que tudo se resume e resolve com a luta de classes, ignorando que dentro do proletariado existem pessoas racistas, homofóbicas, machistas e até classistas. Talvez, fosse o caso do identitarismo criar a categoria “raiz” para defender o direito de pretos, mulheres, gays e outros minorizados, que não se deixem seduzir pelo canto da sereia branca. E ainda vai aparecer alguém colocando entre aspas o “eu também quero ficar rico” que eu escrevi acima, para tentar me excluir da luta. Bobagem! Eu quero ficar rico, mas não quero morar em Wakanda. O excesso de academicismo que permeia e esperneia dentro da esquerda branca brasileira, está sendo absorvido em nível hard por boa parte dos pretos e pretas que compõem o seu quadro, e os distanciando da base. Lynch explica. A reflexão foi proposta. Quem tem ouvidos ouça. Ou não ouça. Mas depois não chore quando a extrema-direita voltar ao poder pelas mãos de pretos e pardos que ficaram de fora da política de cotas de Wakanda. 

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