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    Mujica faz autocrítica da esquerda: melhoramos o consumo, mas não as consciências

    Em aula promovida pela Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica defende que os progressistas travem uma "batalha cultural" contra o estilo de vida consumista, denuncia a desigualdade social como um “fantasma” da democracia e reafirma: “sou um socialista franco”

    (Foto: Rubens Fraulini/Itaipu Binacional)

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    O texto a seguir é uma adaptação da 2ª aula, dada pelo ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica, do Curso internacional “Estado, política e democracia na América Latina”, da Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag).

    Os desafios da democracia

    Os principais desafios da nossa democracia residem na velha contradição que a originou.

    600 anos antes de Cristo, havia muitos escravos por dívida em Atenas e eles estavam à beira da guerra civil. Naquela época, quem estava endividado tornou-se escravo. Eles elegeram um raro governante, um poeta: Clístenes. Era uma situação complicada. Clístenes decide libertar os escravos das dívidas. Mas eles, como ainda eram pobres, pediram para ter um sustento. Clístenes sabia que esse "algo" devia ser tirado da oligarquia de seu tempo, de quem já havia tirado os escravos. Foi demais. No entanto, ele decidiu dar-lhes uma coisa: o voto na Assembleia. Começou a dar-lhes poder político. Essa é a origem do que virá a seguir.

    O primeiro fantasma que a democracia possui é a terrível desigualdade que convive com ela desde seu início

    Quando falamos de igualdade, falamos de oportunidades mais ou menos semelhantes no início da vida. Depois, cada um dará o que puder.Estamos em um continente terrivelmente injusto. Provavelmente hoje, haverá um novo bilionário na América Latina. Mas talvez no próximo ano, ou no final deste ano, teremos 240 milhões de pobres e nada menos que 70 ou 80 milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza. É aí que reside a contradição fundamental de nossas democracias. 

    A concentração excessiva de riquezas acaba sendo um fantasma que torpedeia as decisões políticas

    A globalização contemporânea gerou uma economia transnacional na qual as empresas têm o poder de um Estado e sua preocupação central não está na marcha de uma nação. Por um lado, temos Estados nacionais soberanos. De outro, uma economia cada vez mais independente dos Estados. Porque sua lei é a acumulação.

    Os desafios que a democracia enfrenta hoje envolvem o desenvolvimento e a distribuição. Mas o desenvolvimento hoje precisa de políticas globais ou relativamente regionais que possam nos ajudar; porque temos que combater a desigualdade e precisamos de mudanças em nossas antenas. Somos curtos: precisamos de mais Estado com muito mais recursos. Temos que copiar a China e o Vietnã. O Estado tem que se tornar um coletor de dividendos e um parceiro nas atividades nacionais com a burguesia nacional. Buscando que não o roubem e tenham receitas paralelas às da rota fiscal. Porque? Porque a dívida social que temos que mitigar exige recursos enormes e insuficientes pela via fiscal. Se os Estados são maus administradores, deixemos isso para a burguesia. Mas coloquemos o Estado como parceiro para arrecadar dividendos e fazer crescer a economia, enquanto cresce também o património do próprio Estado. Precisamos de uma mudança.

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    Transformar o Estado

    Nossos Estados devem ser fortes. Mas devemos copiar algo daquela velha dinastia chinesa que lutou para ter os melhores trabalhadores no Estado. Acontece que formamos técnicos e formamos alunos altamente qualificados, que depois são contratados por empresas transnacionais. Enquanto isso, nós, do Estado, ocupamos os cargos com o que sobra. Temos que fazer o contrário: se o Estado é tão importante, deve ter os melhores trabalhadores do país e deve haver uma carreira no Estado moderno. Não se pode trabalhar com os critérios antigos.

    O Estado é decisivo, não para que seja dono de tudo e nos controle minuciosamente, mas para que tenha os recursos para curar as feridas sociais que o mercado nunca vai consertar

    E isso deve ser entendido pelo próprio capitalismo, porque, do contrário, no fim o que vem pela frente é o perigo do holocausto ecológico. Puxamos muito na corda da natureza. E a natureza começa a cobrar nossas contas. Para tudo isso, precisamos de uma ferramenta intermediária na sociedade chamada “Estado”, mas ela deve ter uma qualidade que nada tem a ver com o que temos hoje.

    Eu não vou ver isso. E não sei se concordam com o que eu digo, mas acho que temos que sacudir nossos cérebros. Porque se você quer mudar, não pode ficar sempre usando as mesmas soluções para novos problemas.

    Não estou argumentando que isso seja um cataclismo. O que estou propondo é um caminho, um processo. Temos que incorporar a força de trabalho ao interesse nacional. E eu diria mais, em algumas coisas acho que você tem que ser profundamente protecionista: por exemplo, no comércio. O comércio deve estar nas mãos dos espaços nacionais, dos recursos nacionais, do povo nacional. Porque posso garantir que grande parte do excedente que produzimos escapa por este caminho, do comércio.

    É muito mais fácil ser o intermediário do que o produtor de qualquer coisa. Acredito que temos que defender os interesses de nossas burguesias nacionais, que são fracas, baixas e terminam no rentismo. Então, temos que dar confiança, apoiar e estar com elas, porque o processo de desenvolvimento precisa de participação e de uma capacidade de gestão muito complicada.

    Não podemos pedir aos trabalhadores que emergiram culturalmente trabalhando por um salário que defendam a globalização que uma grande empresa significa no mundo de hoje. Mas, eles têm que se envolver, porque você aprende vivendo e trabalhando. E essa é a responsabilidade que temos como Estado.

    Acredito que a ideia de nacionalizações nos separou da ideia de participação. 

    Em determinado momento queríamos substituir uma classe e acabamos inventando uma burocracia, da qual não pudemos lidar mais tarde.

    Porque burocratas, por conveniência, todos podemos ser. É uma tendência humana ao menor esforço. Então, você tem que combinar o valor da iniciativa privada com o interesse público. É por isso que falo de dividendos. Parece-me que é uma coisa central, porque depois de um tempo muitos capitalistas perceberão que é conveniente para eles, porque senão não dá para explicar o fenômeno chinês ou vietnamita. O capital privado cresceu absurdamente, mas, paralelamente, o capital público cresceu da mesma forma, e já temos Estados que têm capacidade e quantidade de meios que se comparados a nós, somos muito pobres.Pela via fiscal, o que acontece com a gente? Vamos pela via fiscal e eles vão embora, porque ninguém quer pagar impostos, muito menos impostos exagerados. E como não temos unidade global, não temos uma política global: eles atiram em nós de um lado e do outro. Portanto, temos que sair por aí implorando por investimento. 

    Melhor fazer política de alianças. Caso contrário, continuaremos com Estados pobres que são como o galo anão, que quer mais, mas não pode.

    Temos que resolver os problemas mais dolorosos que as pessoas têm, e isso significa recursos. O que está acontecendo conosco? Fomos para a linha de impostos e reduzimos a capacidade de competir com o resto do mundo. Mas no mundo disputamos entre nós. Se a Argentina cobrar muitos impostos, os capitalistas vão para o Paraguai ou para o Brasil e assim por diante. Porque? Porque o capital é covarde.

    Isso tem algo a ver com democracia? Não e sim. Tem a ver com democracia porque se deixarmos essa espiral de concentração de riqueza ir em favor de uns poucos como ocorre atualmente, então a democracia se torna uma plutocracia, não importa quão melhor pareça.

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    Batalha cultural

    Acho que muito mais precisa ser descentralizado. A garantia da democracia na velha Atenas, onde ocorreram várias tentativas de golpe, era constituída pelos hoplitas, que eram "os pesados" da época. Se dermos aos trabalhadores apenas discurso e não conseguirmos que eles se comprometam com os lugares onde trabalham, sejam arte e parte e tenham uma participação crescente, não teremos o desenvolvimento da consciência, porque o desenvolvimento da consciência significa estar íntimo dos problemas com qual você convive. 

    Nós, governos progressistas, conseguimos melhorar o padrão de vida de muitas pessoas e ajudar na distribuição social. Mas não ajudamos no crescimento da consciência

    Criamos bons consumidores, mas falhamos em formar cidadãos. Devemos ter um senso de autocrítica e entender que os dirigentes da ala popular devem ter bonhomia, devem ter urbanismo, devem ser senhores, mas devem viver como a grande maioria de seu povo vive e viver nas entranhas de seus povos. Devemos cuidar do conteúdo e devemos cultivar a forma, caso contrário, quando queremos nos lembrar, não sabemos onde estamos. E, no final, você acaba pensando em como vive

    Parece-me que a escolha do lado do povo e da justiça social implica uma forma de vida e uma forma de compromisso.

    Sei que sou um pouco duro e um pouco exigente, mas o mundo está entrando em uma encruzilhada onde, se essa economia de acumulação continuar no caminho do uso desenfreado e sem responsabilidade, não vamos resolver nenhum problema e nem o capitalismo: vamos acabar em um colapso civilizacional. Porque o holocausto ecológico está chegando. 

    No fundo, precisamos de uma batalha cultural. Precisamos mudar os parâmetros com os quais nos movemos. 

    Temos que produzir geladeiras que sejam reformáveis. Temos que produzir máquinas que durem muito tempo e evitar fazer garrafas de plástico para apodrecer o mar. Temos que encontrar outras soluções. Vai custar mais caro a todos, mas temos que cuidar da vida, que é o motor principal, e isso significa uma mudança cultural. Mas, se essa mudança cultural não é iniciada por pessoas que se consideram progressistas, que buscam construir a justiça social, quem a fará?

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    Pepe Mujica(Photo: Reuters)Reuters

    Os tentáculos da sociedade precisam urgentemente gerar a cultura de que todos somos compradores subliminares em potencial e que confundimos “ser” com “ter”. Esta é uma obrigação para a acumulação.

    Essa força criadora e avassaladora do capitalismo, que foi formidável, que abalou o mundo, que domesticou a ciência e a colocou a serviço da produtividade, é insaciável. Isso continua, continua e não pode parar. É como aquela história do homem que tinha uma fórmula para girar a terra, uma pá mágica, mas não tinha a fórmula para detê-la. Você tem que fazer muita porcaria em nome do progresso: apodrecer os mares, jogar fora a matéria-prima, trabalhar inútilmente e depois ficar sem recursos para cuidar das coisas que são fundamentais. Essa é a lógica do lucro. Isso gerou uma cultura que está em nós. Mas se isso não mudar, nada muda.

    Qual é o sentido da democracia? Simplesmente, que as pessoas vivam mais felizes, que as pessoas tenham tempo para se realizar e que tenham tempo para cultivar seus afetos. Estou entediado de ver os trabalhadores melhorarem sua expectativa de vida e tudo o que fazem é conseguir dois empregos

    Democracia significa, entre outras coisas, compartilhar a alegria de viver, o milagre de viver. A democracia deve estar a serviço da vida, não contra a vida. Aprendemos que devemos nos preocupar com todos os descendentes que nos acompanham no milagre da vida, porque aprendemos que precisamos uns dos outros.

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    Pepe Mujica(Photo: Divulgação)Divulgação

    Otimismo?

    Não, não estou otimista. Sou um pessimista bastante conservador.

    Tudo o que digo pode ser uma quimera. Mas quais são as outras alternativas? Se seguirmos cada um, do seu lado, se os povos seguirem cada um por si em um mundo que se aglomera, nossa democracia vai acabar sendo apenas palavra, porque qualquer transnacional é mais importante do que nós. E para enfrentar essa transnacionalização da economia precisamos de um Estado forte. Veja o que aconteceu com a pandemia: todos saíram para fazer o que podiam. Não fomos capazes de dizer: “vamos comprar 500 milhões de vacinas e vamos negociar juntos”. Não, nós nem nos encontramos. Isso explica claramente a situação em que nos encontramos.

    Que mensagem podemos dar aos jovens? Que se pode viver porque nasceu. Nisso somos como uma abóbora, como um besouro: nascemos porque sim. Mas é um milagre ter nascido, e cada um de nós é o único milagre que existe de verdade, porque havia milhões de possibilidades de que outro tivesse nascido. Agora, a natureza nos deu uma coisa chamada "consciência". Acho que a natureza fez uma aventura e criou a máquina humana para se repensar um pouco. Você pode viver porque você nasceu. Mas, até certo ponto, podemos administrar o curso da vida um pouco para um lado ou para o outro porque temos consciência.

    Pode se ter uma causa, uma razão para viver, uma forma de agradecer à vida. Mas agradecer à vida não pode significar rezar pelo milagre de ter vivido, mas tentar deixar algo para trás pelo tanto que recebemos

    Essa coisa chamada "civilização" é uma acumulação histórica intergeracional que recebemos quando nascemos. Tente deixar o mundo um pouco melhor. Em vez de um monumento de pedra como os antigos faziam, ou uma pirâmide que os reis fizeram para si próprios, devemos tentar deixar uma parte de nossa existência na tentativa de construir um mundo um pouco melhor. Essa é a nossa forma de agradecer a vida de forma consciente.

    Viver com uma causa ou viver para pagar contas? Esse é o dilema. Pode-se acreditar que a vida é ter um cartão para comprar no shopping e vai viver a crédito, pagando contas. Essa será a sua realização. Ou você pode militar, mobilizar-se para tentar melhorar o mundo em que vive. Isso é ter uma causa e um conteúdo para viver

    Isso não é um fardo, acho que é uma enorme satisfação e alegria de cunho espiritual, não ter uma vida por acaso, mas uma vida que tenta ter um conteúdo, uma causa.

    Sou um velho rabugento, mas é o papel que devo cumprir. Um papel de fermento.

    Ainda sou um socialista franco

    Mas lhes digo que é impossível construir o socialismo nas sociedades pobres, porque você acaba no caminho da repressão. Você não pode construir um novo prédio com pedreiros antigos. O que estou dizendo é brutalmente provocador. Mas quero provocá-los a pensar. Você sabe por que sou socialista? Porque os homens foram socialistas por pelo menos 150.000 anos. Na última investigação que fizeram com os Kung San, que eram os homens mais primitivos que estiveram na Terra, eles foram questionados: "e vocês não tem chefe?", ao que responderam mais ou menos: "nós somos donos de nós mesmos." E quando os observavam diziam: "eles são muito pobres." Depois de estudá-los, viram que trabalhavam duas horas por dia e depois se divertiam muito. Então, os antropólogos chegaram a uma conclusão: "eles vivem melhor do que nós".

    Esse é o homem primitivo, a criatura que carregamos dentro de nós.

    mujica

    *O Curso Internacional "Estado, política e democracia na América Latina" é uma iniciativa destinada a militantes e ativistas sociais, funcionários públicos, docentes e estudantes universitários, pesquisadores, sindicalistas, dirigentes de organizações políticas e não governamentais, trabalhadores da imprensa e toda pessoa interessada nos desafios da democracia na América Latina e no Caribe. Foi promovido pelo Grupo de Puebla, o Observatório Latino-Americano da New School University, o Programa Latino-Americano de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a UMET.

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