23 de abril: um dia histórico para o povo argentino
O ato reuniu estudantes, professores, operários, desempregados, famílias inteiras de extratos humildes à da classe média e alta
A manifestação deste 23 de abril, dita Marcha Federal Universitária na Argentina, em protesto aos cortes orçamentários brutais do governo de Milei contra a UBA (Universidade de Buenos Aires) e várias universidades públicas, foi histórica, não só pela gigantesca participação (800 mil na capital e cerca de 1 milhão em todo o país), mas pelo caráter social amplo, transversal que uniu estudantes, professores e reitores a operários e desempregados, jovens a anciãos, famílias inteiras de extratos humildes à da classe média e alta, desde militantes e sindicatos a cidadãos comuns autoconvocados dos bairros.
Muito além das costumeiras faixas de organizações partidárias e militantes dos movimentos sociais, a participação ativa da juventude foi através de cartazes escritos à mão. Alguns dos tantos exemplos foram: “Um povo culto nunca pode ser escravizado”, “Universidade pública, gratuita”, “Os lápis nunca vão deixar de escrever”, “Porque tanto medo de educar nosso povo”, “Sem educação pública não há futuro”, “Não somos mercadoria para vender”, “Estamos na rua para não perder as aulas”, “Educação Pública, Gratuita e Universitária”, “A educação não se vende, se defende”, “Não queres que sejamos livres, mas ignorantes”, “Mais dinheiro para educar, não para reprimir”, “Mais Telam, menos twitter”, “Rebele-se e se eduque”, “Vou poder ser o primeiro médico da minha família”. “Pai (pedreiro), Mãe (dona de casa), filha (profissional universitária)”.
Além disso, manifestantes levantavam nos braços livros de cultura, literatura, sociologia e política, ciência, etc... de autores conhecidos, desde Rodolfo Walsh, Eduardo Galeano, Marx e Engels, Orwell, Freud, Peron, Cristina Kirchner; temas diversos, desde infantis até a guerra das Malvinas. Enfim, uma manifestação com visual e conteúdo amplo na defesa da cultura e da educação. Sentiu-se no ar e nas emoções o recado do cubano José Marti: “Somente um povo culto pode ser verdadeiramente livre”. Não foi, como disse Milei, contrariando um autêntico e apartidário movimento popular, postando nas redes uma imagem de um leão e a frase: “foram lágrimas da esquerda”.
Uma torrente densa de gente comprimida, numericamente similar à vitória na copa mundial de futebol 2022, defendendo a Universidade pública e gratuita, um patrimônio da cultura nacional afiançado por Peron, e alargado na era kirchnerista. O protesto foi um basta aos efeitos nefastos no funcionamento das universidades públicas, produzidos pelo corte dos orçamentos estatais impossibilitando pagar as exorbitantes tarifas elétricas, material didático e salário dos professores. Quem paga a dívida com o FMI contraída na era Macri? Quem paga, para chegar à tal meta do “déficit fiscal zero” de Milei, não é a casta das grandes fortunas, mas o povo trabalhador com o aumento dos impostos e redução de serviços do Estado: educação, saúde, transportes. Não é mágica. É algo que está tocando fundo no bolso da maioria do povo argentino, dos comerciantes, e das pequenas e médias indústrias nacionais, das construtoras de obras públicas obrigadas a fechar e demitir.
A manifestação do 23 de abril foi um basta contundente! Basta aos cortes na educação pública global que atinge transversalmente a população, incluindo a classe média forçada a ir às escolas privadas com prestações impagáveis. E não somente. Foi também um basta de amplitude horizontal porque a linha de redução de gastos do Estado em todos os campos atinge a todos, rumo ao insuportável. Foi um basta ao túnel obscuro de desmonte brutal dos entes estatais da Ciência, Tecnologia, Cultura, como Conicet, Telam, INCA e cine Gaumont, rumo ao desemprego massivo e às privatizações, ameaçando outros setores como Aerolíneas Argentinas, Correio Argentino, e Banco Nação.
O fato é que cerca da metade dos manifestantes do dia 23 de abril são votantes arrependidos de haver votado neste governo. Segundo uma pesquisa do CEOP publicada pelo jornalista Raúl Kollmann no Página12, “Dois em cada três argentinos (65,2%) apoiam a Manifestação Universitária que ocorreu na última terça-feira e, além disso, uma grande maioria da população avalia como negativa a gestão educacional do governo de Javier Milei. Há uma unanimidade quase total entre os cidadãos sobre a importância da educação pública (87,5 por cento), o que coloca um limite muito acentuado à ofensiva desencadeada pela Liberdade Avança (LLA)”. O ato, que formalizou a caminhada multitudinária desde a praça do Congresso, terminou no palanque em frente à Casa Rosada com lideranças dos movimentos sindicais, sobretudo da educação e professores. O movimento estudantil, através da presidenta da Federação Universitária Argentina, Piera Fernández De Piccoli, encerrou com a leitura de um documento unitário que dizia entre outras:
“Defendemos o acesso ao ensino superior público como um direito. Acreditamos na capacidade de criar igualdade do ensino público gratuito, no poder transformador da universidade como formidável ferramenta de mobilidade social ascendente e na contribuição diferencial e substantiva da produção científica” ... “Todos os problemas que temos se resolvem com mais educação e universidades públicas, com mais investimento em ciência e tecnologia. Queremos que nossas instituições sejam o dispositivo que permita à Argentina reconstituir as desigualdades estruturais e embarcar no caminho do desenvolvimento e da soberania. A educação nos salva e nos liberta. Apelamos à sociedade argentina para defendê-la."
A ex-presidenta Cristina Kirchner reaparece no dia 27 de abril, ao inaugurar o estádio esportivo Néstor Kirchner em Quilmes, neste cenário político, com um discurso que rebate o ataque do governo atual à educação pública, à economia social e à soberania energética e industrial do país. Qualificou tal economia de caráter extrativista dos recursos naturais: “isso é mais que anarcocapitalismo é anarco-colonialismo”: "60 por cento das pessoas podem ter votado em você, mas depois, quando você está no governo e as pessoas morrem de fome, perdem o trabalho e não conseguem chegar ao fim do mês, o que adianta?”. Veja vídeo.
Cristina ressalta que essa não é mais uma das suas “aulas magistrais”, mas reitera a necessidade de nos informar e conscientizar o povo. O seu papel é indiscutível, bem como o do kirchnerismo, pela sua experiência de gestão e conquistas de soberania e bem-estar social entre 2003 e 2015. Sem um cargo político, ameaçada por lawfare e por um atentado, Cristina Kirchner encoraja e não deixa de ser uma líder ordenadora e formadora de quadros do peronismo e da UP. Sua atuação se concentra em construir no Campo Popular âmbitos de debate e elaboração política, de programa e quadros capazes de poder derrotar este projeto neoliberal criminoso, seja na área parlamentar, sindical e nos movimentos sociais. No seu discurso Cristina dá prioridade a esse ordenamento e não às questões internas do justicialismo.
Na semana entrante se retomam, as sessões para debater e votar a nova Lei de Bases e o Pacto Fiscal de Milei. A Lei de Bases com seus 220 artigos é o que restou da Lei Ônibus com seus 664 artigos que em fevereiro foi rechaçada no Congresso. Mas, substancialmente continua danosa e dá campo às chamadas faculdades delegadas do Executivo para desregular a economia, privatizar as empresas públicas e concretizar uma reforma trabalhista que permita a precarização, restitua a cobrança do imposto de renda a um piso inferior, e a venda de terras aos estrangeiros. Cristina Kirchner deixou claro que é preciso estar alerta ao capítulo da Lei que “dá poderes ao Presidente para cancelar 2.308 obras públicas” e que, ao mesmo tempo, “proíbe a revisão dos contratos dolarizados de geração de energia renovável, térmica e hidroelétrica, principal causa do aumento astronômico das tarifas de eletricidade."
Algum sábio analista disse que o 23 de abril foi um plebiscito pela escola pública. Verdade. O povo votou com os pés. Agora, há que ver como respondem as lideranças políticas para dar uma saída à pressão social. No dia 25 de abril, dois dias depois da sinalização de um milhão nas ruas, a oposição, UP (União pela Pátria), FIT e parte da U. Cívica Radical, convocaram uma sessão especial na Câmara de Deputados para responder ao tema das verbas das universidades públicas. Não houve quórum por ausência de oficialistas e centristas entre os quais, contraditoriamente, alguns haviam presenciado a manifestação.
A força do 23 de abril deve dar a pensar às forças políticas oficialistas e opositoras, antes de votar no Congresso a Lei de Bases nesta semana em nome do povo: isso é só o começo. Em quatro meses de governo da Liberdade Avança, o povo argentino avançou massivamente às ruas: 24J, 8M, 24M, 23A. Salta-se da quantidade à qualidade. As centrais sindicais preparam uma significativa manifestação de 1º. de Maio e, no próximo 9 de maio há greve geral decretada pela CGT, CTAs, ATE, La Bancária, e diversos sindicatos, com previsível multidão de trabalhadores e estudantes organizados nas ruas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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