700 milhões de mulheres estão fora do mercado de trabalho
As mulheres são marginalizadas por sempre servirem a todos
Mais de 700 milhões de mulheres no mundo são deixadas à margem do mercado de trabalho porque se dedicam ao trabalho doméstico e ao cuidado dos outros sem receber nenhum salário.
Rosalía cuida do bebê dia e noite enquanto o marido trabalha fora de casa. Há cinco anos, Gloria cuida de sua mãe, que sofre de Alzheimer. Ambas também limpam a casa, fazem as compras, preparam a comida para toda a família e administram as despesas da família.
Elas fazem parte dessas centenas de milhões de mulheres que se dedicam a cuidar de bebês, de crianças e de idosos; que auxiliam pessoas com deficiência ou doenças; que assumem praticamente todas as tarefas domésticas diárias e garantem o funcionamento integral da casa. Isso significa dias e noites de trabalho que não são contabilizados ou pagos. E, ao mesmo tempo, são tarefas essenciais que as impedem de encontrar um emprego remunerado que se adapte à sua situação familiar e social.
Um estudo recente da OIT (Organização Internacional do Trabalho), O impacto das responsabilidades de cuidado na participação das mulheres na força de trabalho estima que, em 2023, cerca de 748 milhões de pessoas com mais de 15 anos, em 125 países, não eram consideradas força de trabalho, embora realizassem tarefas essenciais de cuidados domésticos. São 708 milhões de mulheres e apenas 40 milhões de homens, números que mostram que as responsabilidades de cuidado constituem, paradoxal e significativamente, a principal barreira que impede as mulheres de entrar e permanecer no mercado de trabalho. Para os milhões de homens excluídos desse mercado, as principais barreiras são, fundamentalmente, suas limitações de nível educacional ou problemas de saúde (https://www.ilo.org/es/resource/news/708-millones-de-mujeres-no-pueden-participar-en-el-mercado-laboral-debido).
“Condenadas” ao cuidado
Cabe sublinhar que esses números também medem algo já conhecido: o papel preponderante que as mulheres assumem na criação dos filhos e no cuidado de pessoas com deficiência ou doenças crônicas, bem como nas tarefas domésticas.
Do ponto de vista geográfico, a maior porcentagem de mulheres excluídas do setor "assalariado" está no norte da África (63%), seguido pelos Estados Árabes (59%). Na Ásia e no Pacífico, o percentual é de 52%. Na América Latina e no Caribe, 47%. Na Europa Ocidental e na Ásia Central, a porcentagem é menor (21%), quase como na América do Norte (19%). Os países do Leste Europeu têm a menor porcentagem (11%).
Se tomarmos como referência as estatísticas dos seis anos anteriores a 2023, verifica-se que a tendência desse tipo de exclusão tem aumentado. Em 2018, 647 milhões de pessoas foram excluídas da força de trabalho devido às suas responsabilidades de cuidado: aproximadamente 606 milhões de mulheres e 41 milhões de homens.
Embora a prestação de cuidados domésticos possa ser gratificante, quando é realizada em excesso e dificulta as oportunidades econômicas de seus prestadores, pode violar seus direitos humanos. O relatório da OIT coloca isso de forma inequívoca: "As responsabilidades de cuidado estão excluindo e impedindo que milhões de mulheres em todo o mundo exerçam empregos remunerados e, com as mudanças climáticas e demográficas que aumentarão a demanda por cuidados, é urgentemente necessária uma ação para apoiar [e valorizar] a economia do cuidado".
Valorizar o trabalho doméstico normalmente invisibilizado
Essas profundas desigualdades de gênero no local de trabalho levaram a OIT a adotar, em junho, a Resolução sobre o Trabalho Decente e a Economia do Cuidado. Para esse organismo das Nações Unidas especializada no mundo do trabalho, trata-se de um "documento histórico", nada menos que "o primeiro acordo tripartite global sobre o assunto". A OIT projeta que à medida que os Estados avancem em sua implementação, o caminho pode ser pavimentado para que eles enfrentem os problemas e os desafios e aproveitem as oportunidades oferecidas pela economia do cuidado doméstico.
A Resolução argumenta que "uma economia do cuidado que funciona bem não apenas apoia indivíduos e famílias, mas também contribui para uma força de trabalho mais saudável, cria empregos e melhora a produtividade". Por isso, questiona as barreiras estruturais que dificultam a participação e o progresso das mulheres decorrentes de sua atividade não remunerada. E exige políticas e sistemas que neutralizem as desigualdades atualmente vivenciadas pelos cuidadores (https://www.ilo.org/sites/default/files/2024-06/ILC112-Resolution-V-%7BRELMEETINGS-240620-001%7D-Web-SP.pdf).
Os dados da OIT mostram que houve algum progresso desde 2018. Muitos países fizeram progressos na promoção da participação de mulheres cuidadoras domésticas por meio de aumentos orçamentários para cuidados domésticos e educação infantil. No entanto, a Resolução sublinha que, num mundo que está sendo rapidamente remodelado pelas alterações demográficas, esses ajustamentos orçamentais, embora bem-intencionados, não são suficientes. A Resolução afirma que "Se quisermos enfrentar a crescente desigualdade e avançar em direção a uma maior justiça social", o investimento adequado em políticas de cuidado é “essencial”.
Reivindicações feministas e sindicais
Cada vez mais, a reflexão, as propostas e as ações em torno do trabalho doméstico fazem parte das preocupações centrais dos sindicatos e dos movimentos feministas em geral, e na América Latina em particular.
No final de outubro, e por ocasião do Dia Internacional do Cuidado, a Confederação Sindical de Trabalhadoras/es das Américas (membro da Confederação Sindical Internacional) emitiu uma declaração na qual argumenta que "a reorganização do cuidado doméstico em direção à igualdade implica a demanda por uma agenda integral que inclua o enfrentamento das desigualdades de gênero, raça, idade e status migratório, entre outros". E argumenta enfaticamente que "investir em cuidados requer uma abordagem baseada nos direitos humanos". Em outras palavras, conceber o cuidado "como um direito humano, universal e com justiça de gênero". Com isso em mente, a Confederação antecipa um tripé de propostas, começando com um maior diálogo social para avançar em políticas públicas de atenção integral. Elas têm que ser formadas como um pilar da seguridade social e articuladas com as políticas de saúde, educação, proteção social e desenvolvimento. A adoção de "políticas públicas universais com perspectiva de gênero, interseccionais e multidimensionais", argumenta a Confederação, permitirá "Reconhecer, Redistribuir, Reduzir, Remunerar e Representar o trabalho de cuidado [levando em conta] a diversidade da classe trabalhadora".
A consecução dessa meta, argumenta a Confederação, requer "organizar a agenda sindical para colocar a questão do cuidado ao lado da justiça de gênero", para que seja uma questão apropriada por todas/os as/os trabalhadoras/es (https://csa-csi.org/2024/10/29/cuidados/#).
No final de agosto de 2024, no site do Capire que a Marcha Mundial das Mulheres coordena em diálogo com a Via Campesina e com Amigos da Terra, publicou as conclusões do seminário Socializar o Trabalho de Cuidado: Experiências e Lutas Feministas. Realizado virtualmente, esse evento reuniu mulheres líderes sindicais e de movimentos feministas da América Latina, da Europa e da África (https://capiremov.org/es/analisis/socializar-los-cuidados-transformar-la-economia/). As participantes concordaram que "o cuidado é entendido como trabalho, práticas e relações que moldam a sustentabilidade da vida". Por outro lado, não se trata apenas de atender diretamente uma pessoa, pois abrange também "todas as condições que tornam a vida possível; ou seja, pessoas, alimentos, sementes e bens comuns, bem como as múltiplas formas de relações econômicas que vão além do que é comprado e vendido no mercado". Nesse quadro interpretativo, o cuidado se dá em relações de interdependência, e tanto a autonomia quanto a autodeterminação são reivindicadas como princípios.
A análise de Capire revela uma chave para interpretar o contexto latino-americano: o cuidado doméstico ocupou um lugar central na resposta das mulheres à ofensiva do neoliberalismo determinado em privatizar até mesmo os serviços públicos de educação e saúde. E alerta a que se tenha em mente a memória e a situação atual dessas lutas como ponto de referência: "desconfiem das propostas de organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) em termos de cuidado". Segundo Capire, o FMI propõe "uma perspectiva de inclusão das mulheres no sistema [mas] sem transformar as estruturas de opressão. Portanto, não atende à maioria das mulheres da classe trabalhadora.
O desafio é enorme. Do ponto de vista feminista, diante das ameaças à sobrevivência da humanidade e do meio ambiente, mudanças radicais são necessárias. A lógica atual de produção, acumulação e reprodução deve ser quebrada. O trabalho de cuidado e a sustentabilidade – humana e planetária – serão pilares desse novo compromisso social.
Tradução: Rose Lima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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