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Heraldo Campos

Graduado em geologia (1976) pelo Instituto de Geociências e Ciências Exatas (UNESP), mestre em Geologia Geral e de Aplicação (1987) e doutor em Ciências (1993) pela USP. Pós-doutor (2000) pela Universidad Politécnica de Cataluña - UPC e pós-doutorado (2010) pela Escola de Engenharia de São Carlos (USP)

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A água em fúria

As águas do Rio Pardo não são a solução como alguns lobbies preconizam, principalmente em época de crise ou de falta de água para o abastecimento público

Catástrofe climática no Rio Grande do Sul (Foto: Agência Brasil)

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O município de Ribeirão Preto, localizado na região Nordeste do Estado de São Paulo, com uma população de mais de 600 mil habitantes, é abastecido totalmente pelas águas subterrâneas do Aquífero Guarani. Porém, essa região outrora chamada de a “Califórnia Brasileira” devido, principalmente, pela a sua pujança no agronegócio também apresenta seus crônicos problemas relativos a água.

Será que os questionamentos feitos há quase duas décadas atrás continuam atuais? O gerenciamento desse reservatório subterrâneo melhorou ou piorou?

“Nos últimos dias de hoje, muito tem se falado de que as águas superficiais seriam a saída para suprir o déficit do abastecimento populacional por causa do comprometimento das águas subterrâneas, seja pela elevada retirada provocando rebaixamento dos níveis d’água ou pela sua qualidade colocada em xeque, como conseqüência das possíveis fontes de contaminação. É aí que começa a aparecer, como uma tábua de salvação para alguns grupos, o decantado Rio Pardo.

As águas do Rio Pardo, de qualidade duvidosa, não são a solução como alguns lobbies preconizam, principalmente em época de crise ou de falta de água para o abastecimento público. Muito embora despoluir e preservar nossos rios deva ser também nossa preocupação constante, Ribeirão Preto já se abastece das águas subterrâneas do Aqüífero Guarani há várias décadas. Este sistema sim, que faz parte do metabolismo urbano de Ribeirão Preto, é que deve ser mais bem compreendido e, consequentemente, gerenciado. 

Como de certa forma esse gerenciamento já vem sendo feito, para que suas ações sejam levadas a um bom termo necessariamente devem passar pelo incentivo de alguns pontos cruciais: uma política de manejo, incluindo a recuperação de poços abandonados e adaptação de poços para observação do nível d’água; a otimização do tempo de bombeamento dos poços profundos; um plano de reservação para águas captadas do Aqüífero Guarani; a diminuição das perdas na rede de distribuição e uma estratégia de implantação de hidrômetros, com bônus para os usuários do sistema que não ultrapassem um limite máximo necessário.” [1]

E com relação aos diferentes atores que atuam na gestão do aquífero, em que cenário trabalham hoje? É muito diferente de quase vinte anos atrás?

“Mas, nos dias de hoje, não é preciso ser um Kafka para que se tenha conflito interior diante do cenário complexo e muitas vezes nebuloso, quando se trata da proteção e da utilização sustentável das águas subterrâneas desse reservatório. Os prognósticos relacionados ao rebaixamento dos níveis destas águas pelo excesso de retirada por meio dos poços e aos riscos devido à fragilidade das rochas frente às cargas de contaminantes potenciais existem há algum tempo. São trabalhos técnicos que necessitam de uma ação política, mas que na maioria dos casos terminam “esquecidos’’ nos escaninhos da burocracia. Nestes casos, pode até acontecer que alguns documentos técnicos, produzidos por instituições de pesquisa e mesmo pelas universidades, acabem “engavetados” por causa dos conteúdos existentes. 

Isso tudo é um prato cheio para que ONGs chapa-branca e consultoras de plantão atuem com certa desenvoltura nas lacunas dos espaços institucionais, sempre correndo atrás do lucro fácil e imediatista. Assim, o absurdo ou a loucura que parece ser inicialmente de um universo particular kafkaniano, começa a ganhar força e determinadas ações específicas no sentido da gestão pública do recurso hídrico começam a perder posições importantes. Para um cidadão comum talvez fique difícil entender os diversos atores que atuam neste ambiente cada vez mais difuso, com princípios éticos nitidamente indefinidos nas relações pessoais do dia a dia.” [2]

Saindo desse ambiente ribeirão-pretano, quase sempre com muito calor, baixa umidade do ar no dia a dia e muitas vezes extremamente seco, distante cerca de 1.400 km dessa região [3], o município de Porto Alegre no Estado do Rio Grande do Sul, juntamente com a quase totalidade dos outros municípios gaúchos, vivem a tragédia das enchentes por causa das chuvas excepcionais que desabaram no território estadual nesse mês de maio de 2024.

As áreas dos territórios municipais que foram arrasadas totalmente, muitas delas situadas em área de transbordamento natural dos rios da bacia hidrográfica onde estão assentadas e ocupadas, devem ser vistas como áreas de risco hoje e facilmente mapeadas em função do grau de destruição causado pelas chuvas em tempos de aquecimento global. Se existirem mapeamentos de áreas de risco e planos diretores municipais anteriores são documentos que devem servir de referência e acrescidos dos limites das áreas inundadas para futuras tomadas de decisões. 

A realocação de bairros e vilas, embora dura e complexa para a população, deve ser levada em conta para não serem recuperados ou reconstruídos setores que fatalmente podem estar sujeitos a novos episódios climáticos catastróficos. Obviamente que não devem ser descartadas obras de engenharia, onde forem possíveis, como diques, barragens de contenção, equipamentos de bombeamento, entre outros. Pode ser que o municpio de Porto Alegre, principalmente no setor que existe o dique que margeia o Rio Guaíba, construído nos anos 70 do século passado, ainda consiga contar com essa imensa obra de engenharia desde que seja reavaliada a sua função e redimensionada para esses novos tempos climáticos.

As áreas limpas dos resíduos da construção civil poderiam servir como áreas de amorteciemnto de cheias, auxiliando na recarga dos aquíferos de pouca profundidade, como também ter esse material processado em usinas de beneficiamento e reutilizado no erguimento de novas moradias. 

“Por outro lado, as tragédias das enchentes não são de agora, mas as atuais são mais graves, comprovadamente, por causa das mudanças climáticas que o Planeta Terra vem passando. Algumas das causas, principalmente as que provocam enchentes no meio urbano, são conhecidas como: o acúmulo de lixo em vias públicas, a impermeabilização inadequada do solo, a deficiência do sistema de macro-drenagem, a duplicação oportunista de pavimentação asfáltica recobrindo a pré-existente (geralmente de paralelepípedos) e a ocupação desordenada do território municipal pela especulação imobiliária.” [4]

Assim, nesse fubá climático instalado, a comunidade científica tem sido ou foi pouco ouvida ou as atenções de parte da sociedade e da classe política acabam por ouvir mais os negacionistas climáticos para que o caos perdure a seu favor?

“Sem inteligência social e com a infraestrutura natural destroçada, temos pela frente um longo caminho para adquirirmos condições de enfrentar a emergência climática e ambiental que estamos atravessando. Temos que ter em mente que isso é apenas um começo. Temos que agir estrategicamente se quisermos encorajar a sociedade a enfrentar os tempos que estão aí e os que advirão.

As universidades são instituições fundamentais para isso. Representam a inteligência estratégica que sobrou em um Estado que está sendo desmontado peça por peça. Sem inteligência social, a sociedade não só fica muito mais vulnerável frente aos impactos adversos dos tempos severos, mas também fica refém da ação de forças externas, sobre as quais não tem controle, como o Exército e empresas privadas.

Tudo conduz para a ideia que nada podemos fazer enquanto sociedade, cada vez mais submetida à inclemência da natureza e ao horror de políticas autocráticas e ignorantes. A Universidade é a esperança possível para desenvolver uma inteligência social que encoraje a sociedade a enfrentar a emergência climática-ambiental do século XXI.” [5]

Para concluir, lembrando que o sistema água subterrânea e água superficial está interligado (a água vem do céu!), a água em fúria, seja porque é mal gerenciada como no caso do Aquífero Guarani em Ribeirão Preto, ou seja porque não foram respeitadas as várzeas de inundação natural, como aconteceu com boa parte dos municípios gaúchos, tem mandado seus recados e há tempos. Será que não estamos sabendo ouví-la?

Fontes:

[1] “Metabolismo urbano de Ribeirão”. Crônica de Heraldo Campos. Livro eletrônico “Por onde a água passa: coleção de artigos”.

https://research.ebsco.com/c/7zh5jk/search/results?q=Heraldo+cavalheiro+navajas+sampaio+campos

[2] “Kafka e o Aqüífero Guarani”. Crônica de Heraldo Campos. Livro eletrônico “Por onde a água passa: coleção de artigos”.

https://research.ebsco.com/c/7zh5jk/search/results?q=Heraldo+cavalheiro+navajas+sampaio+campos

[3] Fac-símile do “Mapa Hidrogeológico do Aqüífero Guarani”.Campos, H.C.N.S. 2000 a. Mapa hidrogeológico do Aqüífero Guarani. São Leopoldo: Acta Geologica Leopoldensia. 4. Anexo.

[4] “As tragédias das enchentes”. Crônica de Heraldo Campos.

https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2024/05/as-tragedias-das-enchentes.html?view=magazine 

[5] “Sobre a emergência climática e ambiental no RS”. Artigo de Rualdo Menegat.

https://agirazul.com/arquivos/17815

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