A crise do bolsonarismo
"O bolsonarismo não possui uma proposta de governabilidade, apenas de mobilização extra institucional contra a oposição, o sistema político e a mídia, a nova coalizão formada pelo combate ao coronavírus", escreve o professor de ciência política na UFMG Leonardo Avritzer
Por Leonardo Avritzer
(artigo publicado originalmente no site A Terra é Redonda)
Jair Bolsonaro elegeu-se para a presidência devido a uma coalizão de forças e fatores muito particulares entre os quais cabe destacar dois: o antipetismo e a maneira como ele lidou com as redes sociais. O antipetismo é um fenômeno complexo e que tem diversas definições, mas o que eu gostaria de ressaltar aqui são os diferentes elementos, distribuídos no tempo, que caracterizam esse sentimento e o comportamento político da opinião pública em cada um deles.
O antipetismo surge nas eleições de 2006 quando, pela primeira vez desde 1994, o eleitorado brasileiro se divide nas eleições presidenciais em termos de região e renda. Entre a eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e a eleição de Lula em 2002, os candidatos eleitos presidentes se elegiam em mais de 90% dos estados e alcançavam a maioria em todos os segmentos econômicos.
Em 2006, começa a divisão que o mapa abaixo expressa e que irá se acentuar nos anos posteriores com pequenas variações, colocando parte significativa da população das regiões sul e sudeste contra o PT. A partir daí o mapa abaixo se consolidou e se iniciou um processo de fratura política do país que conduziu ao bolsonarismo e que talvez esteja chegando ao final.
Mapa de votos no 2º turno da eleição presidencial de 2006
A partir de 2010 acentua-se essa divisão, que já era regional, tornando-se uma divisão de renda. Tal como mostra o gráfico abaixo, a renda média dos eleitores nos candidatos presidências do PT vai ao mesmo tempo sendo reduzida enquanto a proporção das pessoas de baixa renda que vota no PT foi aumentando. Assim, o ponto de corte do eleitorado petista foi decrescendo em termos de renda familiar.
Enquanto, em 2002, o PT ainda tinha 30% dos votos do eleitorado que ganhava entre 3 e 5 salários mínimos e mesmo em 2006 mantinha quase a mesma marca, esse eleitorado o abandona quase que integralmente em 2010 e 2014. Ainda mais acentuado é o abandono do PT pelo eleitorado com renda entre 5 e 10 salários mínimos ou mais de 10 salários mínimos. Assim, o antipetismo tem um elemento regional e um elemento de renda que são centrais, mas nenhum desses elementos por si só conduziria ao bolsonarismo.
Eleitores do PT por renda familiar mensal
É o terceiro elemento do antipetismo que me interessa aqui porque foi ele que conduziu ao bolsonarismo. A partir de 2014, devido à maneira como a operação Lava Jato estabeleceu a seletividade no combate à corrupção mirando membros do Partido dos Trabalhadores e optando, independentemente das provas, por não investigar membros de outros partidos [1], em especial do PSDB, o antipetismo adquiriu uma dimensão moral e antipolítica.
Do lado moral, o que a enorme manipulação midiática da população brasileira gerou foi uma concepção de que havia um campo político corrupto, aquele ocupado pelo PT, e um não corrupto, que envolvia as forças de centro. Na medida em que foram crescendo as evidências contra as forças de centro, em especial contra o PMDB e o PSDB, o campo da virtuosidade ética foi passando para a direita até que se firmou na figura de Jair Bolsonaro.
Mas, o mais importante foi o crescimento de uma dinâmica antipolítica junto com a moralização do antipetismo. De acordo com essa concepção, se a corrupção for retirada da política ou se esta for saneada, o bom governo estará automaticamente garantido. Foi essa concepção que lançou o eleitorado de classe média das regiões sul e sudeste nos braços de Jair Bolsonaro.
A concepção de governo, ou de (des)governo, de Jair Bolsonaro tem dois pilares: o primeiro pilar decorre da concepção de antipolítica que se desenvolveu no Brasil e supõe que a não composição política com o Congresso Nacional constitui uma forma de governo. Jair Bolsonaro montou um ministério no qual pouquíssimos ministros tinham relações com partidos. Entre eles cabe destacar Gustavo Bebianno, Onyx Lorenzoni, Luiz Henrique Mandetta e Osmar Terra.
Apenas dois deles sobrevivem ao trator presidencial e à sua estratégia de desvalorizar seus próprios ministros. Onyx Lorenzoni sobrevive com poderes reduzidíssimos e Luiz Henrique Mandetta subitamente enfrenta um pico de exposição em virtude da crise sanitária. É preciso entender o problema que o novo protagonismo adquirido por Mandetta coloca para Bolsonaro. Esse protagonismo não representa apenas uma relativização da figura do presidente. Ele é muito mais, porque representa a reabilitação da ideia de governo baseado na ciência e na organização de políticas públicas, que Bolsonaro procura desconstruir. Na medida em que Mandetta consegue apoios no ministério estabelece-se uma tensão não apenas entre ele e o presidente, mas entre ele e o bolsonarismo enquanto concepção de (des)governo.
O segundo elemento de tensão entre Bolsonaro e a política se estabelece na sua base nas redes sociais. Bolsonaro tem uma ampla base nas redes que é (ou foi) constituída por três grupos principais: um grupo que remete diretamente ao presidente e aos seus filhos e que é mobilizado em uma tática de ratificação acrítica das posições do presidente, isto é, sempre que o presidente se encontra em apuros ou polemizando com a imprensa, ele deslancha uma campanha de defesa das suas visões ou de agressão a pessoas específicas por esse meio que acabou apelidado de “gabinete do ódio”.
O outro elemento de inserção do bolsonarismo nas redes é uma vasta rede de sites e perfis de direita um pouco mais moderada que incluía, no passado, movimentos como o MBL, e o Vem para a Rua, sites como O Antagonista que amplificavam a defesa das posições do presidente para além das redes bolsonaristas estrito senso.
Por último, Bolsonaro era apoiado por um conjunto de pessoas com destaque nas redes sociais: de empresários influentes entre os quais se destacam o dono de lojas como a Havan, a Riachuelo, até um círculo diversificado de artistas e personalidades públicas como Alexandre Frota, Carlos Vereza e Janaina Paschoal, com as quais o bolsonarismo contava até algumas semanas atrás. É nesses dois círculos de apoio nas redes sociais que Bolsonaro vem perdendo apoio nas últimas semanas.
A reação do bolsonarismo ao seu isolamento político foi a radicalização do discurso anti-isolamento social na tentativa de reestabelecer uma orientação antigovernabilidade. Na semana passada, Bolsonaro procedeu a uma reforma ministerial informal. Na reunião entre ele e os seus ministros participou o vereador pelo Rio de Janeiro, o seu filho Carlos Bolsonaro. Ao mesmo tempo, ele elaborou um pronunciamento à nação na qual questionava dados sobre o impacto do coronavírus e, ao mesmo tempo, alardeava informações sobre a cura baseada na hidroxicloroquina.
Mais uma vez, vale a pena lembrar que nada disso é novo. Nos seus 28 anos como deputado federal Bolsonaro apresentou apenas um projeto de lei, o que legalizava a assim chamada pílula do câncer (a fosfoetanolamina) no Brasil, que, como se sabe, mostrou-se inefetiva contra o câncer após os testes científicos regulares. Ou seja, o capitão reformado sempre atuou na saúde a partir de uma noção senso comum em tensão com uma visão técnica e é essa a visão que Bolsonaro procura reestabelecer.
No entanto, como a sua rede de ratificação na internet ruiu e a grande imprensa finalmente aceitou fazer um trabalho de esclarecimento sobre as disputas políticas na conjuntura, Bolsonaro pela primeira vez desde 2018 não conseguiu retomar a sua concepção antigovernabilidade e antipolítica. Foi a partir daí que começou a ruir a hegemonia bolsonarista construída cuidadosamente na esteira do antipetismo.
A rápida derrocada do governo Bolsonaro se dá devido a sua incapacidade de mobilizar a sua rede de fake news contra o discurso do isolamento social na epidemia, o que acabou por reabilitar a política e tensionar de vez a relação do presidente com grupos centrais até então apoiadores da antipolítica, a grande mídia e a classe média mobilizada nas varandas e janelas das grandes cidades brasileiras.
A oposição ao presidente entrou nas instituições políticas e chegou a lugares nunca dantes imaginados: os militares e membros do seu ministério. A pergunta é: Bolsonaro é capaz de sobreviver sem sua rede de fake news e o ataque via senso comum às concepções científicas? Duas alternativas se colocam, mas, em ambos os casos, o fim do bolsonarismo parece se anunciar: a primeira alternativa é o impeachment ou a renúncia. Bolsonaro perdeu ou consolidou a perda de três formas de apoio decisivos para governar: ele consolidou a perda de apoio no Congresso e no STF de forma mais radical que antes ao passar a imagem de irresponsável e incapaz de governar.
Ele perdeu apoio no seu ministério até mesmo entre ministros com forte centralidade como Sergio Moro e Paulo Guedes que já não são mais neutralizados pelo presidente. Mas, sobretudo, ele perdeu o apoio nas redes sociais e nas classes médias que liquidou aquilo que é a característica mais forte do Bolsonarismo: o tensionamento do sistema político realizado em uma base cotidiana.
A outra possibilidade além da sua remoção é o surgimento de um “Bolsonaro cordato” que não ataca nem o sistema político e nem a mídia, aquele que o Brasil viu pela primeira vez na terça-feira à noite. O problema com esse “Bolsonaro cordato” é que ele perde o seu núcleo mobilizador, ou seja, desemprega o pessoal do “gabinete do ódio”, incentivado pelos seus filhos e apoiadores de primeira hora. O dilema do Bolsonarismo é que ele não pode tensionar oposição, sistema político e mídia devido à nova coalizão formada pelo combate ao coronavírus e ele não pode sobreviver sem os tensionar porque ele não tem uma proposta de governabilidade, apenas de mobilização extrainstitucional contra esses setores.
Se a renúncia virá ou se virá um Bolsonaro cordato ainda não está claro. Mas tanto o “Bolsonaro cordato” quanto a renúncia representam o fim da proposta de um governo extrainstitucional de mobilização nas redes socais e nas ruas e sem preocupação com as políticas públicas que foi cuidadosamente construído pela grande mídia, pela operação Lava Jato e pelos fundamentalistas das redes sociais.
Notas
[1] As principais evidências nessa direção foram oferecidas pela Vazajato. Segundo publicação do site The Intercept obtida a partir de vazamento do aplicativo de mensagens Telegram, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi citado na Lava Jato nove vezes e nem todas as citações envolviam crimes prescritos. Sérgio Moro, em 13 de abril de 2017, argumentou pela prescrição dos possíveis crimes. Diversos órgãos de imprensa relataram o e-mail de FHC para Marcelo Odebrecht no qual havia até número de conta bancária. Em relação a José Serra as evidências eram ainda maiores de contas no exterior com recebimento de recursos ilegais.
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