A culpa que nos pariu
"O terremoto apocalíptico deslocou Guernica do norte da Espanha para a Turquia e a Síria", escreve Vassoler
O recente terremoto que devastou a Turquia e a Síria, no coração do Oriente Médio, põe à prova quaisquer cisões com arame farpado entre realidade e ficção – é como se a própria Sheherazade tivesse reencarnado para narrar mais uma de suas estórias notívagas com as lágrimas de todos os seus irmãos e irmãs soterrados vivos pela fúria tectônica, que alcançou tórridos 7,8 graus na escala Richter.
Consta que uma torrente energética acumulada durante 500 anos – Maquiavel ainda estava vivo e conspirava entre as vielas de Florença! – fez com que a placa tectônica de Golias e a congênere pertencente a Adamastor quisessem disputar um braço de ferro olímpico às custas do cotidiano e dos sonhos dos quase 20 mil mortos e cerca de 70 mil feridos. (Quando deparei com a expressão “energia acumulada durante 500 anos”, o imaginário infantil deste escritor de 41 anos me levou ao potão de vidro fosco em que minha bisavó Isabel ia depositando, com vagar e carinho, a geleia decantada pelas muitas jabuticabas que apanhávamos nos pés da casinha de Quintana, no interior de São Paulo. Até hoje – e vá lá saber por quê –, a cor inusitada daquela geleia só não me parece mais enigmática do que os sussurros – resmungos ou preces? – que minha bisavó ia entoando enquanto mexia a colher de pau no panelão de zinco.)
Consta que o poder destrutivo liberado pelo terremoto foi 130 vezes maior do que a lesividade das bombas atômicas que os criminosos de guerra estadunidenses lançaram contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. O genocídio surrealista, no Japão, legou sombras fosforescentes como os derradeiros vestígios das pessoas vaporizadas e converteu todos os insetos em vagalumes; o terremoto apocalíptico deslocou Guernica do norte da Espanha para a Turquia e a Síria, e os vestígios cubistas dos corpos afugentaram até mesmo Picasso, já que, agora, não se pode inculpar a força aérea franco-fascista pela catástrofe – a história humana, como bem sabemos (e sofremos), precisa ter alguém a quem culpar; soterrado sob os alicerces do mundo – isto é, soterrado como o alicerce do mundo –, bale o bode expiatório.
Ontem à noite, minha irmã Larissa me contou a história a seguir. (Ela sabia que eu não conseguiria carregar tal história – tal dívida! – no ventre da memória, se não a parisse como literatura.)
Numa cidade da Síria rasgada pelo terremoto, um prédio desaba como um castelo de cartas. Entre os escombros, uma família inteira perece: um pai, duas filhas, um filho e a mãe... grávida. O tremor e o desabamento explodiram o trabalho de parto, e a mãe, morta, deu à luz entre os escombros. (Vida e morte se beijam – “Judas, com um beijo você trai o Filho do homem?” –, a boca e o útero devoram a si mesmas.)
Quando os bombeiros conseguem se esgueirar até o local, descobrem que a pequenina Renata (chamemo-la assim), quase asfixiada pelo cordão umbilical (a vida conhece o perdão?), sobrevivera ao pai, às duas irmãs, ao irmão e à mãe.
Não poucos sobreviventes de catástrofes – dos campos de concentração nazistas ao naufrágio da cidade mineira de Mariana pela lama tóxica e criminosa – relatam que, para eles, gratidão e culpa se irmanam como gêmeos bivitelinos enforcados pelo mesmo cordão umbilical.
Senhor, muito obrigado: eu sobrevivi!
Senhor, por que eu sobrevivi, mas não o meu pai e a minha mãe? Eles morreram, mas eu não consigo enterrá-los!
Para os bodes expiatórios da sobrevivência, a seguinte máxima de Jesus Cristo ressoa como um sino que badala, a cada instante, dentro do coração da culpa: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos”.
Renata, um dia, vai gritar:
– Eu sobrevivi! Foi a culpa que me pariu!
Albert Camus, sem dúvida, reconhece em Renata uma das irmãs de Sísifo.
Condenado pelos deuses sádicos a rolar uma pesada pedra morro acima sem poder alcançar o cume da montanha para se desvencilhar de seu fardo – a pedra de Sísifo é a vida-finita-e-inglória-que-se-sabe-para-a-morte –, Sísifo se pergunta, a cada instante, como quem se flagela: “Devo prosseguir? Mais dia, menos dia, a pedra não vai me soterrar? Devo mesmo prosseguir?”.
Não à toa, o humanista Albert Camus sentencia:
– É preciso imaginar Sísifo feliz!
A pedra que soterra Renata é a culpa.
Tomado pela compaixão, Camus sentencia:
– É preciso imaginar Renata feliz!
Ilhado pelo desespero, Camus se questiona, aos sussurros (Renata não deve ouvi-lo de forma alguma):
– É possível imaginar Renata feliz?...
Quero crer, com o fundo da minha fé (e da minha dúvida), que minha bisavó Isabel afagaria Renata com ternura e, munida de uma colher bem cheia de geleia de jabuticaba, assim lhe sussurraria:
– Cê sobreviveu à culpa que te pariu, minha filha... (Come um pouquinho dessa geleia, come.) Tá na hora de renascer, Renata, tá na hora de renascer, minha filha...
Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor, youtuber, nômade, fiel como os pássaros migratórios e fundador da Universidade Virtual do Vassoler
Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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