A encruzilhada de Milei: entre a ‘terapia de choque’ da extrema direita e o macrismo da casta neoliberal
'A população cobrará um pedágio caro sobre a demagogia do discurso eleitoreiro de Javier Milei, o candidato antissistema', escreve o colunista Milton Alves
A Argentina tem um novo presidente, eleito no último domingo (19). Trata-se de Javier Milei (A Liberdade Avança), que obteve uma vitória espetacular, alcançando cerca de 56% dos votos válidos contra 44,04% de Sergio Massa, da coligação peronista União pela Pátria.
Javier Milei também venceu em quase todo o país e foi derrotado apenas em três estados: Buenos Aires, Santiago del Estero e Formosa. Apesar da vitória eleitoral no segundo turno na maioria das províncias (estados), o partido de Milei não controla nenhum governo estadual.
O quadro de forças no parlamento é desfavorável para o presidente eleito. Na Câmara de Deputados, a composição das 257 cadeiras ficou assim distribuída: União Pela Pátria (bancada peronista), 105 deputados; Juntos pela Mudança (bancada ligada ao ex-presidente Maurício Macri), 92 deputados; A Liberdade Avança, de Milei, 39 deputados; Terceira Via (centro-esquerda), 8 deputados; Frente de Esquerda e dos Trabalhadores, 5 deputados. No Senado, as 72 cadeiras ficaram assim distribuídas: União Pela Pátria (33), Juntos pela Mudança (24), A Liberdade Avança (7), Terceira Via (3) e mais 5 outros senadores sem posições definidas.
A composição das casas parlamentares deixa o governo eleito numa grande dependência de acordos com o bloco político de Macri, mas a aliança com o ex-presidente não garante uma maioria parlamentar. Na Câmara, ainda faltariam 39 deputados para assegurar uma maioria consolidada.
Além disso, no bloco macrista, deputados da União Cívica Radical (UCR) têm sérias divergências com propostas apresentadas por Milei durante a campanha eleitoral. O cenário é mais adverso ainda para ele no Senado.
Portanto, a futura governabilidade encontra um primeiro e importante obstáculo na atual composição do parlamento, o que vai demandar uma negociação política arriscada e difícil para obter uma possível aliança com setores do peronismo. Uma tarefa que será delegada para os macristas na Câmara de Deputados e no Senado argentino.
Terapia de choque ou gradualismo em defesa da casta neoliberal
No domingo passado, ao discursar durante a comemoração da vitória, Javier Milei adotou a mesma linha aplicada durante a campanha, fez um discurso radical, de ataques aos programas sociais e aos subsídios, anunciou a disposição de privatizar empresas estatais, dolarizar a economia, ameaçou romper com os dois principais parceiros comerciais (Brasil e China) — e mais: que faria tudo isso sem gradualismo.
No entanto, ao longo da semana, uma versão mais suave do futuro governo começou a ser delineada, mais neoliberal, mais gradualista. Ou seja, um esforço no sentido de diminuir a rejeição para as futuras medidas de choque ou gestos para testar o nível de normalização e aceitação de sua personagem política, que se apresentou como antissistema. Ao que tudo indica, a vitória de Milei agradou bastante as “castas” dominantes.
Medidas anunciadas na campanha, de forma histriônica e de conteúdo duvidoso, já começam entrar no “modo muy despacito”: fim do Banco Central, por exemplo, qualquer medida nessa direção só após dois anos de governo, segundo declaração do próprio Milei – nesta sexta-feira(24), o presidente eleito voltou a falar no fim do banco. Já a dolarização ficou fora do radar imediato. Porém, é possível alguma medida no terreno cambial combinada com o atual presidente Alberto Fernández. A relação agressiva com o Brasil, de ataques ao presidente Lula, sofreu uma mudança de tom nas últimas 48 horas.
Sobre as privatizações, o alvo principal da casta privatista é a petroleira estatal YPF.S.A, reestatizada no governo de Cristina Kirchner. As ações da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YFP) dispararam na última segunda-feira (20) na Bolsa de Valores de Nova York. A Argentina é autossuficiente na produção de combustíveis e a petroleira estatal quebrou um recorde no mês de setembro, produzindo 645.500 barris diários de petróleo.
O fantasma das privatizações poderá encontrar uma enorme rejeição em diversos setores da sociedade argentina. Na memória da população, o processo desastroso conduzido pelo governo de Carlos Menem (1989-1999) ainda é uma amarga lembrança. Menem privatizou a YFP, a Aerolíneas Argentinas (outrora um motivo de orgulho dos argentinos), a Ferrocarriles Argentinos (empresa estatal reestatizada em 2015 pela presidente Cristina Kirchner, que administra a totalidade da rede ferroviária do país) e companhias de saneamento.
Milei ameaça avançar nos sistemas educacionais – com a adoção dos infames vouchers para a compra de vagas nas escolas e universidades – e de Saúde Pública, serviços públicos que gozam ainda de relativo prestígio.
Neste sentido, é cada vez mais maior o papel exercido pelo ex-presidente Macri, que defende a indicação de Luis Caputo para o Ministério da Fazenda, o economista ocupou o mesmo cargo no governo macrista. Patricia Bullrich será a futura ministra da Seguridad (segurança).
Analistas políticos avaliam que o ex-presidente Maurício Macri será uma espécie de fiador do governo de Javier Milei, uma salvaguarda para os garantir os interesses da casta neoliberal, que tanto o personagem “anarcocapitalista”, agora presidente eleito, encenou ser contra “todos eles” durante a campanha eleitoral.
Turbulências à vista, piqueteiros nas ruas
Vale lembrar que o extremista Milei venceu uma eleição com um discurso genérico de protesto antissistêmico, agitando fatias da juventude marginalizada e sem perspectivas profissionais, das classes trabalhadoras mais precarizadas e do lumpesinato, segmentos sociais esmagados pelo neoliberalismo e açoitados por erros da política econômica do governo Alberto Fernández. Uma outra relação é retirar direitos já conquistados, sem provocar a ira popular, como os diversos subsídios sociais, que abrangem da compra de alimentos básicos, remédios até os preços das passagens dos transportes coletivos urbanos e intermunicipais.
Movimentos sociais e sindicais já anunciaram mobilizações de protestos e sinalizam amplo desacordo com projetos do novo governo. A Frente Nacional de Luta dos Piqueteiros convocou para os dias 19 e 20 de dezembro uma jornada nacional de luta, com manifestações e acampamentos em Buenos Aires e nas províncias. Por sua vez, a direção executiva da CGT, reunida nesta semana, indicou que prepara uma plataforma de resistência em defesa dos direitos e conquistas dos trabalhadores.
Portanto, Javier Milei não terá uma vida fácil, e a aterrissagem do TikTok ao gabinete presidencial da Casa Rosada, no próximo dia 10 de dezembro, vai cobrar um pedágio caro sobre a demagogia do discurso eleitoreiro de campanha do candidato antissistema. Nós brasileiros, temos a lembrança de Fernando Collor, uma fraude, que não durou dois anos na cadeira presidencial.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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