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    Boaventura de Sousa Santos

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    A Europa agoniza em Gaza

    "O Sionismo tornou-se uma conveniência do império britânico para impedir a emergência de um Estado árabe forte no Oriente Médio", diz Boaventura de Sousa Santos

    Benjamin Netanyahu e ataque israelense no enclave palestino de Gaza (Foto: REUTERS)

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    A Europa é um pequeno canto de um vastíssimo continente chamado Eurásia que vai do Cabo da Roca até ao Cabo Dezhnyov – um continente vastíssimo com uma história riquíssima. E nesse pequeno canto, é ainda mais pequeno isto a que chamamos a Península Ibérica. Durante milênios, este foi um espaço menor a que nenhum possível conquistador deu grande importância. Era o fim do mundo ptolomaico, um beco sem saída. Os Romanos usaram este canto do mundo para enfraquecer os cartagineses e afastá-los da península itálica. Muitos séculos mais tarde, quando os visigodos dominavam por aqui, foram os muçulmanos vindos do Norte de Africa que vieram enriquecer culturalmente esta região marginal da Europa. Sem a riqueza multicultural do Al-Andaluz não existiria a cultural ocidental tal como a conhecemos.  

    A partir do século XV, a Europa começa a perder a prioridade dada aos seus laços multiseculares com a Eurásia e a invadir outras regiões do mundo, separadas por oceanos, e a expandir-se em novas direções, por via marítima, para Oeste e para Sul, e para o longínquo Oriente. A história dos vencedores desta história é uma imensa sala de troféus. A história dos vencidos levou muito tempo a ser conhecida, e ainda hoje só muito parcialmente o é. É que o “modo de convivência” da Europa com esses novos mundos foi quase sempre caracterizado pela apropriação, a pilhagem e a violência, sempre em nome de ideologias nobres (cristianismo, civilização, progresso, desenvolvimento, direitos humanos, democracia). Sem serem pouco importantes, tais ideologias nunca tiveram força para contrariar a essência da convivência, a qual exigia a guerra permanente.

    Menos conhecido é o fato de que este “modo de convivência” foi seguido tanto para uso externo como para uso interno. E é por isso que o maior período de paz que a Europa até hoje usufruiu durou escassos cem anos (1815-1914) e, mesmo assim, teve a guerra franco-prussiana pelo meio. O segundo período, que se iniciou em 1945, não parece ter condições para durar tanto tempo. A razão está no pecado original de a civilização europeia se considerar superior sem ter havido consenso sobre o critério de superioridade nem sobre quem tinha legitimidade para o definir e impor. Por esta razão, desde o século XV a Europa não sabe definir-se senão por via de exclusões recíprocas. A Rússia ora foi Europa, ora o outro da Europa. E a Rússia ora viu a Europa como a sua casa ou como a casa do inimigo. O mesmo aconteceu com os Balcãs. A Europa de Leste era a barbárie para Hitler (os polacos não tinham Kultur) e a Europa do Sul era o quintal da Europa do Norte, meio-africanos por sangue e estilo de vida. A Irlanda, por sua vez, era uma colônia da Inglaterra, tendo sido sujeita a fomes tão duras como as que Estaline impôs à Ucrânia. Durante a Guerra Fria resolveu-se o problema da Rússia, não dividindo a Rússia, mas dividindo a Europa em dois blocos. 

    Terminada a Guerra Fria, começou a verdadeira derrota histórica da Europa. Mais uma vez, a Europa não foi capaz de se unir senão contra a Rússia. Desta vez, não foi por iniciativa própria (essa ia na direção contrária, a Ostpolitik de Willy Brandt), mas sim por iniciativa dos EUA, dispostos a cobrar a dívida europeia contraída para com eles na Segunda Guerra Mundial. A não liquidação da Otan (e, pelo contrário, a sua expansão depois do fim do Pacto de Varsóvia) foi o instrumento usado para separar a Europa da Rússia. O fim do colonialismo histórico tornara mais difícil o acesso barato e incondicional aos recursos naturais de que a Europa sempre carecera. Durante vinte anos, a partir do acesso ao poder de Vladimir Putin em 2009, essa dificuldade foi resolvida pela Rússia, que forneceu à Europa 35% do gás natural a preços que favoreciam a competitividade internacional das empresas europeias (sobretudo alemãs). Esta solução chegou ao fim com a explosão dos gasodutos em 26 de Setembro de 2022. Se os EUA não provocaram a explosão (muitos o afirmam), foram, pelo menos, quem mais beneficiou com ela, tornando a Europa muito mais dependente dos EUA, e em termos tais que fizeram perder competitividade à economia europeia.  

    A continuidade da guerra da Ucrânia, ou seja, a incapacidade da Europa de construir uma paz justa contra os interesses geoestratégicos dos EUA, tem sido a manifestação mais visível do declínio histórico da Europa. Não será certamente a última. O colonialismo é um fantasma que assombrará a Europa por muito tempo. A sua afloração mais recente é a criminosa solução final imposta por Israel ao povo mártir da Palestina. O Sionismo tornou-se uma conveniência do império britânico para impedir a emergência de um Estado árabe forte no Medio Oriente e expandiu-se graças ao anti-semitismo europeu, uma longa e cruel história que vai Inquisição do século XVI até ao Nazismo, passando pelos pogroms de 1881 na Rússia e pelo Affair Dreyfus na França (1894). Basta recordar que um dos livros fundadores do sionismo foi publicado em 1896 (O Estado Judeu de Theodor Herzl). Hoje, o Sionismo instalado no governo de Israel é uma mistura tóxica de duas das piores heranças da civilização europeia: o colonialismo e o fascismo. Israel é um Estado colonialista dividido por uma linha abissal: democracia para os judeus, fascismo para os palestinianos, sejam ou não cidadãos de Israel. No plano político, Israel continua a servir no Medio Oriente os interesses do imperialismo ocidental, desta feita, não do império britânico, mas do império norte-americano. No plano ético-ideológico, Israel é a Europa vista ao espelho cruel do pior da sua história, uma história que teima em não querer recordar as contas que não quer saldar com o mundo. Ao ver nas televisões e nas redes sociais as imagens de Gaza, o mundo que foi colonizado pela Europa tem a sensação do dejá vu. Lembra-se dos seguintes factos: a vida humana dos colonizadores vale imensamente mais que a dos colonizados; os colonizados, quando resistem com alguma eficácia, são terroristas, e para terroristas a solução é sempre concebida como final – extermínio; enquanto o colonizador atua por princípios, o colonizado atua com barbárie, por isso, a contradição entre os princípios do colonizador e a barbárie do colonizador nunca são tema de discussão; não interessa averiguar responsabilidades individuais porque a culpa e a punição são coletivas, já que o colonizado não é punido pelo que faz mas pelo que é (inferior, descartável); quando não são terroristas, os colonizados são obstáculos ao desenvolvimento e, por isso, pode ser preciso limpar o terreno para a alternativa à rota da seda (chinesa) chegar com segurança ao porto de Haifa; não vale a pena pedir ajuda a outros países colonizadores enquanto estes beneficiarem do trabalho sujo feito por outros.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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