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Lincoln Secco

Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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A face da Revolução

Professor de História da USP Lincoln Secco analisa o papel de Auguste Blanqui na invasão da Assembleia Francesa por uma multidão desarmada em 15 de maio de 1848

(Foto: Philippoteaux, Henri Félix [d.1884-11-09])

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Por Lincoln Secco 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

Em fevereiro de 1848 houve um protesto em Paris contra a proibição dos banquetes ordenada pelo Ministro François Guizot. Os tradicionais banquetes pela ampliação do sufrágio eram a forma da oposição driblar a proibição de comícios, mas dessa vez tudo desaguou numa onda popular. Os soldados abriram fogo e mataram dezenas de manifestantes no Boulevard des Capucines. Os motins não diminuíram, a Guarda Nacional passou ao lado dos rebeldes e no dia 24 de fevereiro a Monarquia orleanista (1830-1848) caiu (RUDÉ, 1991, p.183).

A República que se seguiu tinha um governo provisório com a presença de um socialista, Louis Blanc, e um único trabalhador, Albert (Alexandre Martin). Formaram-se oficinas estatais para os desempregados, adotaram-se a jornada de dez horas, sufrágio masculino adulto e direito à organização entre outras medidas.

A República não correspondeu ao movimento popular. Em 17 de março o grupo ao qual Auguste Blanqui pertencia organizou um comício pelo adiamento das eleições e pela abolição da “exploração do homem pelo homem”. O receio de que o eleitorado conservador das províncias criasse uma assembleia conservadora era justificado, pois no final do mês seguinte foi eleita uma maioria absoluta de republicanos moderados e monarquistas e menos de 10% de socialistas (APRILE, 2000, pp. 79–80).

No dia 15 de maio, 14 mil desempregados invadiram a Assembleia, desarmados, para apresentar uma petição em defesa da Polônia, uma questão que gozava de ampla simpatia nos meios socialistas europeus. Blanqui, Raspail, Barbès e Albert estavam à frente.

Entre os deputados presentes estava Alexis de Tocqueville. Em suas lembranças de 1848 Tocqueville descreveu as pessoas de condição social inferior quase sempre de maneira depreciativa: uma velha ambulante que o empurra; uma empregada e um empregado doméstico ambiciosos (aliás, empregados de Adolphe Blanqui, irmão de Auguste); um porteiro bêbado e “socialista” etc. No entanto, quando descreve o proletariado como classe o considera um “conjunto maravilhoso” pela sua coragem combatente. Era também uma forma de valorizar a vitória da sua classe.

Não nos surpreende, portanto, o retrato que ele fez de um homem que se tornava uma lenda do proletariado francês: “Foi então que vi aparecer por sua vez, na tribuna, um homem a quem só vi nesse dia, mas cuja lembrança sempre me encheu de aversão e de horror; tinha as faces macilentas e murchas, os lábios brancos, o ar doentio, malévolo e imundo, uma palidez suja, o aspecto de um corpo bolorento, sem nenhuma roupa branca visível, uma velha sobrecasaca negra, grudada sobre membros franzinos e descarnados; parecia ter vivido em um esgoto de onde acabava de sair; disseram-me que era Auguste Blanqui. Blanqui diz algo sobre a Polônia; em seguida, centrando-se nos assuntos internos, pede vingança pelo que chamava de ‘os massacres de Rouen’, recorda ameaçadoramente a miséria na qual o povo era deixado” (TOCQUEVILLE, 2011, p.168).

Claro que ele só de passagem revela que aquela ação tinha demandas: um exército para libertar a Polônia, um imposto extraordinário sobre os ricos e a retirada das tropas de Paris. Sobre o aspecto macilento, se é que correspondia à verdade, não é preciso dizer muito sobre o fato de que Blanqui passara anos em uma prisão.

Método

A desmontagem de relatos como o de Tocqueville pode nos conduzir a dois caminhos: a disputa de memória; e à pretensão de um retrato fiel do acontecimento. Eles não são excludentes, embora o cientificismo do século XIX levasse à ideia de que era possível reproduzir o fato imparcialmente; e o presentismo defenda que um conhecimento objetivo é impossível, afinal, só temos projeções do pensamento sobre o passado.

Escolheremos outra metodologia. Não consideraremos que o cientista é o reflexo da realidade objetiva que ele analisa. E muito menos de que não existam evidências do passado. Não teremos dúvidas de que o “15 de maio” existiu. Entretanto, a organização daquilo que aconteceu, a forma narrativa e o encadeamento dos fatos, podem estar carregados da subjetividade envolvida na pesquisa.

Essa organização pode alimentar mitos. Mas não é esse o papel da História, ainda que seja ela a fornecer matéria-prima para a memória. Poderíamos narrar as peripécias sombrias de Hitler supondo que ele teria sobrevivido, recôndito, numa aldeia austríaca ou numa fazenda do Chile com a mesma arte narrativa de um bom historiador, mas isso não seria História porque simplesmente não aconteceu. Assim como uma narrativa cativante sobre a batalha de Lepanto por Fernand Braudel não é um romance porque sua matéria é um passado comprovado por evidências.

Isso nada tem a ver com a veracidade do próprio conteúdo dos documentos. As cartas falsas do Presidente Artur Bernardes (1921), o Plano Cohen (1937) e a campanha eleitoral de 2018 foram falsificações grosseiras que se tornaram fatos na medida em que influenciaram ações e decisões reais das pessoas. Nesse caso é a falsificação o fato (e não o conteúdo falsificado) que devemos registrar e não considerar que as fake news fascistas são apenas uma narrativa como qualquer outra. Igualmente veremos que se uma parte do 15 de maio de 1848 pode ter sido uma armadilha fabricada pela polícia, ainda assim integrou a dinâmica do movimento popular daquela época.

O fato é uma coisa em si e outra para o conhecimento. Nós lidamos sempre com fatos que trazem a marca do sujeito cognoscente, ou melhor: consideramos as sucessivas camadas de interpretação presentes nos registros e na bibliografia: “toda história real se manifesta também como historiografia” (KOJÈVE, 2002, p. 472). O fato histórico do ponto de vista da sua existência empírica é um fragmento da história acontecida; enquanto objeto do conhecimento historiográfico ele é produto da relação entre sujeito e objeto, como em qualquer ciência (SCHAFF, 1987). Todo fato pode se tornar histórico na medida em que integra uma totalidade que lhe dá sentido ao relacioná-lo com outros fatos. Trata-se do princípio dialético de que o conhecimento dos fatos empíricos não se concretiza senão pela sua integração num conjunto (GOLDMANN, 1955, p. 16).

Relatos

É preciso transcender os relatos e não tomá-los como se fossem equivalentes à História. Sejam eles discursos de oprimidos ou de opressores, foram constituídos em alguma medida de forma relacional e tiveram como referência uma forma mentis comum. Ainda que possam ser radicalmente opostos politicamente. Mais ainda quando tratamos de reconstituições bem posteriores, sejam elas orais ou escritas.

Quando jovens historiadores foram gravar as memórias de sobreviventes de uma aldeia massacrada em 1945 pelos nazistas descobriram que eles culpavam os que se haviam juntado aos guerrilheiros (HOBSBAWM, 1998, p.282), mas não estaria sua memória informada pela conjuntura direitista italiana dos anos 1990?

No caso aqui em tela evidentemente se tratam de textos compostos em momento mais ou menos próximo aos acontecimentos e restritos a um grupo social muito específico.

Um estudo aprofundado, que está longe de ser o caso aqui (o de um exercício com algumas fontes), exigiria ao menos a análise do processo dos acusados de maio de 1848 no qual 266 testemunhas de acusação tomam depoimento e 62 testemunhas de defesa. E isso nos levaria a uma “concretização” ainda maior do nosso objeto.

Feitas essas ressalvas, podemos confrontar a versão de Tocqueville com outras. Sabemos que no dia 15 de maio François Raspail leu uma petição, mas não conseguiu se fazer escutar. Barbés subiu à tribuna. Blanqui estava ao pé dele. Eis que a multidão clama: “Oú est Blanqui? Blanqui à la tribune! Nous voulons  Blanqui”. V. Bouton diz que Blanqui permanece imóvel; de vez em quando ele aparece e provoca uma emoção violenta, espécie de trovão. Ele permanece fixo, com uma força desconhecida (DOMMANGET,1972).

Segundo o jornal Le Moniteur de 16 de maio, Blanqui falou longamente sobre o tema: exigiu que a Polônia recuperasse os limites de 1772 e que a França não guardasse a espada na bainha até que isso acontecesse. Em seguida desviou o assunto para a justiça social, contra a repressão em Rouen, pela libertação de presos políticos e a multidão o interrompeu gritando “Justice!”. Alguém se aproximou de Blanqui e lhe disse algo. Ele prosseguiu e falou da miséria do povo. Os populares gritaram “Bravo!”. Dissertou acerca da crise econômica e do desemprego; e a multidão: Bravo! Bravo! Alguém disse: “Viemos aqui para exigir todos os nossos direitos, sejam eles quais forem.” O Comte Rendu du Représentant du Peuple, mais sucinto nos registros dos acontecimentos, acrescenta que alguém censurou Blanqui afirmando que estavam ali para tratar somente da Polônia e que Blanqui incorporou a reprimenda e recomeçou dizendo que todos os povos são irmãos (BLANQUI, 1977, p.208). O periódico Le Messageur de 16 maio de 1848 que quase não se refere a Blanqui, informou que ele preferiu tratar da causa do povo e não da moção sobre a Polônia.

Blanqui queria retomar o discurso, mas há muito barulho, até que um homem do povo disse: “Silêncio, cidadãos, no nosso interesse”. Blanqui é inteligente. Ele justificou as demandas sociais porque é um ponto de similitude entre o povo francês e o polonês, mas retomou a questão específica e disse que depois de chamar a atenção dos deputados para si mesmo, o povo exigia sua atenção agora inteiramente para resolver a questão polonesa (AGULLON, 1992, pp.143-144).

Quanto à sua face, ele de fato parece pálido e frio em meio a um burburinho assustador, segundo Victor Hugo. Outra testemunha, Hippolyte Castille, também acentua sua fronte pálida. Mas ambos dão atenção mais ao efeito político de sua presença. E Castille dá outra interpretação para a palidez, como se fosse anúncio de uma nova Revolução: a fronte lisa de Blanqui provém das “sombras das masmorras” e a “multidão entende que o dia vai assumir uma nova face”. Os “representantes da reação não deixam sua bancada (…). A calma de uma energia superior, que o acontecimento não embriaga (…) irrompe no olhar do Sr. Blanqui que convida com poucas palavras a Assembleia ao silêncio” (DOMMANGET,1972).

Madame D’Agoult, socialmente muito próxima ao espírito aristocrático do Conde de Tocqueville, deixou uma descrição diversa de Blanqui. A autora era filha de um nobre francês émigré e de uma alemã. Com a família, estabeleceu-se na França depois da Restauração. Teve atribulada vida, abandonou seu marido para viver uma violenta paixão com o compositor Lizt, inspirou uma personagem de Balzac e deixou, entre muitos livros, uma História da Revolução de 1848. Nos relatos há um insistente poder de provocar o silêncio na fala de Blanqui:

“Sua aparência é estranha, seu semblante impassível; seu cabelo preto cortado curto, o casaco preto abotoado até o alto, a gravata e as luvas negras lhes dão um ar sombrio. Diante dele, o silêncio se estabelece; a multidão, até então agitada permanece imóvel, por medo de perder uma só das palavras que vai pronunciar o misterioso oráculo das sedições” (DOMMANGET,1972).

Historiografia

O Congresso de Viena estabelecera a partir de 1814 que não aceitaria principalmente duas ideologias: o liberalismo e o nacionalismo. Em 1848 os políticos descobrem uma ameaça maior que havia penetrado as massas parisienses: o socialismo. Os acontecimentos seguintes demonstrarão que para derrotá-lo será preciso abandonar outro objetivo daquele Congresso: jamais permitir que um membro da família Bonaparte retornasse ao comando da França. Afinal, as sucessivas crises que expeliam os setores mais radicais da Revolução para o ostracismo tornaram a eleição de Luiz Bonaparte em dezembro de 1848 e seu golpe de Estado três anos depois as únicas saídas para a burguesia. Na linguagem de Marx tratou-se de sacrificar sua representação política em nome da salvação dos seus interesses econômicos.

Rússia e Áustria eram os artífices da nova ordem de 1814. A Inglaterra estava fora do continente e tinha um império além mar; a Prússia ainda era militar e economicamente frágil para ameaçar o império austríaco. E a França estava readmitida, porém isolada.

A Primavera dos Povos de 1848 abalou seriamente aquele acordo porque foi o triunfo dos nacionalismos e a promessa do liberalismo constitucional, ainda que na maioria dos casos a Revolução fosse um fracasso político na curta duração. E na França um Bonaparte chegou ao poder. As chancelarias da Áustria e Prússia tiveram que aceitar a situação de fato.

Áustria era uma organização imperial, oriunda do velho império Habsburgo (depois da divisão das possessões de Carlos V no século XVI). A parte ibérica, dos países baixos, da Itália e América foi mantida por Filipe II e a parte “germânica”, o Erbland, por Maximiliano.

Naquele Império que progressivamente se tornava multinacional “ser” austríaco era pertencer a uma elite livre de sentimentos nacionais, habitualmente falante do alemão, lotada na burocracia imperial e dotada de privilégios estamentais. A Áustria era uma coleção de “ilhas” cujas nobrezas deveriam ser cosmopolitas. A nobreza era a garantia da unidade.

Assim, os primeiros nacionalismos serão ainda proclamações de intelectuais. Inventavam um passado. Os alemães nacionalistas lembravam o Sacro Império Romano; os húngaros as Terras de Santo Estevão; os tchecos as Terras de São Venceslau etc. Mas os países eram muito diversos e diversas as lealdades ao Império.

A. J. P. Taylor definiu 1848 como o despertar das nações: “O ano de 1848 marcou a transição de uma maneira de viver inconsciente para a consciente busca de uma” (TAYLOR, 1985). Para ele 1848 não foi produto da Revolução Industrial, mas da ausência dela. Em Viena havia um proletariado sem terra, mas não capitalismo industrial. Este era o padrão de 1848. Assim, 1848 tornou-se o inicio da pregação de intelectuais em nome de nações que supostamente adormeciam no folclore camponês. Não por acaso, uma das forças de 1848 foram os estudantes. Subordinados em Budapeste à gentry; mas dominantes em Praga e atuantes na Itália.

No “programa” de 1848 ao lado de uma Hungria associada à Áustria como Estado soberano e da unificação da Itália e Alemanha, estava a Independência da Polônia, embora haja quem interprete aquele processo de um “ponto de vista não nacional” em favor de uma afirmação das instituições liberais (ARTZ,1963, p. XI).

A Polônia, repartida entre as potências, exibia uma atividade revolucionária constante desde o levante de novembro de 1830-1831 e do seu esmagamento pela Rússia. A revolta na Galícia em 1846 e os julgamentos de Berlim no ano seguinte fragilizaram sua participação na Primavera dos Povos. Os poloneses agiram prematuramente (DAVIES, 1986, p. 166). Todavia, vários exilados das insurreições derrotadas viviam na França e se envolveram nas tentativas revolucionárias e sociedades secretas do país. A França, caso mais importante de 1848, estava numa situação híbrida. Não se pode dizer que o país estivesse tão industrializado quanto a Inglaterra, mas a questão nacional havia tido um desenvolvimento bem anterior, desde a Revolução de 1789 e os clubes revolucionários não eram indiferentes ao internacionalismo, ainda que a palavra não fosse usada.

Além disso, o avanço das forças produtivas pós-crise de 1848 foi notável e a Revolução de 1871 não será mais um levante de uma coalizão de interesses, mas de uma classe: a trabalhadora de Paris. Por isso também a Revolução em Paris tinha as características dos motins populares anteriores somadas a uma consciência de classe emergente; entre os populares revolucionários a variedade era grande: operários dos ateliês, artesãos, pequenos lojistas e locadores, locatários etc. E entre os soldados muitos camponeses e populares parisienses. Apesar dessa constatação, parece óbvio que a Burguesia recruta sempre seus soldados entre o povo e isso não elimina a contradição fundamental que 1848 trouxe à tona. Para Marx e Tocqueville era algo nítido: a luta de classes. E não estavam errados.

História e memória

Marx confere ao que ele denomina “as memórias históricas” duas funções: a primeira a de glorificar novas lutas; a segunda a da “erudição antiquária” que visa apenas simular a repetição do passado para manter o status quo.

Assim, 1789-1814 é o período da memória revolucionária e 1848- 1851 o da memória conservadora que muda o regime político para manter a dominação de classe. Cromwell invocou a fraseologia bíblica e os profetas do Velho Testamento; Robespierre, Desmoullins, Saint-Just, Napoleão, as roupagens da República, do Consulado e do Império Romanos. O espírito revolucionário era chamado não para “rondar outra vez” e sim para enfrentar a missão de sua época: erigir a moderna sociedade burguesa. Depois disso, a fraseologia se torna oca nos seus sucessores e a política vai da tragédia à farsa.

Todavia, a Revolução do século XIX “não pode colher sua poesia do passado, mas unicamente do futuro”. As outras revoluções buscaram modelos passados porque necessitavam ocultar o seu conteúdo. A fim de obter o apoio social, a Burguesia elaborou uma ideologia que cobriu seus interesses com um discurso universal.

O proletariado não porta uma ideologia contrária à dominante. Ele critica a todo o momento o seu passado, preserva uma memória de lutas que se materializa em documentos e espaços de organização e não em monumentos contemplativos. O proletariado não vive nenhuma opressão particular a ser resolvida no sistema burguês. Ele sofre a miséria universal e vai além de qualquer doutrina que antecipe o conteúdo futuro de uma Revolução que Marx sequer consegue nomear: “Lá a frase foi além do conteúdo, aqui o conteúdo vai além da frase” (MARX, 1928).

Ora, se não há o que invocar do passado, se não há uma linguagem a se tomar de empréstimo, qual seria o papel da memória proletária? As lições de seu próprio passado de lutas devem ser resgatadas enquanto memória e também objetivamente contrastadas com a ciência da História. Marx louva “a insurreição de junho, o mais colossal acontecimento na História das guerras civis europeias”, denuncia o assassinato de 3 mil insurgentes e 15 mil deportações sem julgamento. Essa práxis revolucionária, por outro lado, “zomba” das primeiras tentativas, das medidas insuficientes, dos erros, e é sempre “autocrítica”, nas palavras de Marx.

A própria Revolução de 1848 não foi inútil porque em vez do aprendizado “das lições e experiências” num ritmo escolar, o proletariado pode usar o método abreviado da prática revolucionária para entender as condições necessárias de uma revolução social e não de superfície.

A Revolução política não muda o modo de produção e se disfarça com as fantasias parlamentares. Na Revolução social o seu primeiro ato negativo e destrutivo ainda é político (o método abreviado de aprendizado em 1848), mas no momento imediatamente seguinte o teatro político se descortina e os bastidores ficam à mostra. Ora, em minha opinião é exatamente o que fazem “Blanqui e os seus camaradas” em 15 de maio de 1848. E o proletariado em junho do mesmo ano. E a conclusão de Marx é que maio e junho devem se reunir. O ato político e o conteúdo que o ultrapassa e o contêm.

De volta à marcha dos acontecimentos

Na França, a notícia de que patriotas poloneses estão sendo massacrados por tropas prussianas e austríacas provoca a indignação dos clubes republicanos. Muitos poloneses militam neles. Wolowski interpela a Assembleia e esta decide debater o tema no dia 15 de maio.

Blanqui não é insensível à tragédia polonesa, mas pondera que a situação econômica francesa é suficiente para ocupar o povo. Submeter-se a uma provocação e à possível repressão pode fazer retroceder a simpatia popular pelo movimento. No entanto, a Sociedade Republicana Central, conhecida como o Clube Blanqui (apesar do homenageado recusar esse título) ultrapassa seu líder e decide ir à Assembleia. Registre-se que o adversário de Blanqui, Barbès, também é contra. Blanqui considera aquilo uma loucura, mas jamais deixaria de marchar com os militantes. Não à sua frente, mas com eles. Italianos, irlandeses e poloneses se juntam ao cortejo reunido no Boulevard du Temple. Blanqui é vigiado por espiões da polícia (DECAUX, 1976, pp.361-377). Há 50 mil homens, mulheres e crianças. Ou entre 20 e 40 mil (ROBERTSON, 1987, p. 80; AMANN, 1970, pp. 42-69). O objetivo da manifestação é que uma comissão adentre a Assembleia.

Wolowski assume a tribuna e diz que a Polônia não é morta, ela adormeceu apenas. Na confusão Raspail vê homens quebrando tudo e reconhece policiais entre eles. Não é à toa que Georges Sand considerou o evento obscuro e Daniel Stern misterioso (DECAUX, 1976, p. 365).

Quem é esse Blanqui tão incompreensível, embora tão presente naqueles relatos? Podemos nos aproximar dele realmente?

Auguste Blanqui (1805-1881) é filho de um deputado girondino da Convenção. É irmão de um economista burguês, Adolphe. Participa da insurreição de julho de 1830 e de outras subsequentes. Ele não é um teórico, mas defende “o comunismo do solo e dos meios de produção”. E bem antes de Marx ele se recusa a perder seu tempo com “discussões prematuras sobre possíveis formas de sociedade futura” (ZEVAÉS, 1933, p. 23).

Ele foi preso depois da Insurreição de 12 de maio de 1839. O povo de Paris o libertou em fevereiro de 1848. Seria novamente aprisionado em 15 de maio. Embora aquilo fosse um protesto desarmado a Assembleia resolveu dar uma lição ao povo e condenou diversas pessoas por tentativa de golpe de Estado.

A ideia de que os “blanquistas” invadiram a Assembleia para dissolvê-la e impor um novo governo provisório é comum e frequente em notas de rodapé da obra O 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx. Mas foi um certo Aloysius Huber quem declarou a Assembleia dissolvida. Blanqui disse que era um grande erro e Paul de Flotte, seu amigo, subiu à tribuna e negou a dissolução da Assembleia. Porém, o motivo para acusação de um golpe de Estado já estava dado. Huber tinha militância no movimento popular, mas era suspeito de ter sido um espião policial na Monarquia de Luis Filipe. A própria facilidade com que a população entrou no recinto, sem repressão alguma, foi um indício de que a decisão de invadir foi uma armadilha (ROBERTSON, 1991, p.69).

Vê-se que Blanqui não é um amador e nem sua presença no parlamento foi um acaso ou produto de ação individual apenas. Ele estava com o movimento real dos operários. Com as considerações acima negamos o mero fato rememorado pelos relatos e reencontramos um Blanqui concreto.

Demonstradas as sucessivas mediações entre o Blanqui dos relatos e o rosto real de uma Revolução inconclusa, entendemos que o concreto é um real revelado pela pesquisa que revisita o que historiadores disseram e reinterpreta a documentação situando-a numa totalidade.

Para uns, os fatos são inacessíveis. O historiador só atinge os enunciados sobre eles. No entanto, é assim em qualquer ciência. Uma pesquisa deve constituir o seu objeto. Ainda que este seja uma rocha que podemos tocar e obter sensações, elas estariam longe de nos dizer o que é uma rocha sem o concurso da geologia.

Nos relatos tudo é imediato, abstrato e desprovido das mediações do conhecimento da trajetória de Blanqui e do próprio movimento popular. O que não significa que a abstração não fosse real e realmente vivenciada pelas testemunhas. Entre todas elas, há diferentes ângulos a serem recuperados pela historiografia de acordo com a posição teórica de cada um, afinal Blanqui também se tornou um mito e parte importante de uma tradição, envolvendo biógrafos, romancistas, militantes e pensadores como Walter Benjamin (HUTTON, 2013, pp. 41-54). São as sucessivas negações determinadas daquele fato empírico que nos conduzem à síntese dos relatos, do conhecimento histórico acumulado e da sua inserção numa totalidade.

Lemos que algumas características coincidem: a palidez, um estranhamento com as vestes, como se não fossem as de um popular comum e nem as de um endinheirado; como se Blanqui tivesse um papel ímpar no seio do povo que o acolheu; sua liderança é inconteste, pois ele não pede a palavra e nem a tribuna. Um dos relatos revela que pressionado diante da grade, quando ela se rompe, ele é mais empurrado para dentro da Assembleia do que lidera a ocupação. A historiadora Priscila Robertson (1987, p. 81) sugeriu que ele acompanhou a manifestação apesar de ser contrário a ela para não perder influência. Pode ser, mas também pode muito bem ter sido a simples fusão dele com o movimento, já que não marcha à frente da passeata.

Os presentes pedem que ele fale. Ele diverge do movimento, ressalta a situação de penúria do povo. É chamada a sua atenção e ele incorpora a decisão coletiva, mesmo não sendo a sua. Os relatos convergem na imagem de uma plateia silenciosa diante do orador. Mesmo Tocqueville, a mais crítica das testemunhas oculares, ouviu cada palavra de Blanqui.

Em junho, haveria outros rostos. Outros líderes menos experientes, como um certo Pujol que agitou os primeiros instantes da guerra civil do proletariado contra a burguesia. Mas decerto os insurretos teriam libertado Blanqui uma vez mais. Em 1871 a Comuna o elegeu presidente in absentia e tudo fez para obter sua libertação dos versalheses.

As fontes aqui selecionadas foram unânimes: no dia 15 de maio uma multidão ouviu Blanqui no parlamento. Foi um acontecimento real. Suas roupas provocavam o estranhamento que talvez o próprio conjunto de manifestantes também suscitasse nas testemunhas que atuavam no teatro político do parlamento. Seu rosto era pálido como o dos pobres de Paris. Mas naquele instante, era mais do que um rosto empírico e ordinário. Ele era  a face da Revolução.

Referências

AGULLON, M. 1848: o aprendizado da República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

AGULLON, M. Les Quarante-Huitards. Paris: Gallimard, 1992.

AMANN, Peter. A “Journée” in the Making: May 15, 1848. The Journal of Modern History, Vol. 42, no. 1, mar., 1970.

APRILE, Sylvie. La IIe République et le Second Empire. Pygmalion. 2000.

ARTZ, F.B. Reaction and Revolution. New York: Harper and Row, 1963.

BLANQUI, Auguste. Ouevres Complétes. Tome I. Éditions Galilée, Paris,

1977, p.208.

D’ÁVILA, L. “A aristocracia inglesa do início da modernidade e a dissolução da nobreza feudal”. Revista TEL, Irati, v. 8, n.2, jul. /dez. 2017

DAVIES, Norman. Heart of Europe: a short History of Poland. Oxford, 1986.

DECAUX, A. Blanqui ou la Passion de la Revolution. Paris: Perrin, 1976

DEAECTO, Marisa. História de um Livro: a Democracia na França de François Guizot. 1848-1849. Cotia: Ateliê, 2021.

DOMMANGET, Maurice. Auguste Blanqui et la Révolution de 1848, Paris, Mouton, 1972.

GOLDMANN, L. Le Dieu Caché. Paris: Gallimard, 1955.

HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

HUTTON, Patrick H. “Legends of a Revolutionary: Nostalgia in the Imagined

Lives of Auguste Blanqui”. Historical Reflections / Réflexions Historiques, vol. 39, no. 3, Winter 2013.

KOJÈVE, A. Introdução à Leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

MARX, K. Le 18 Brummaire de Louis Bonaparte. Paris: Editions Internationales, 1928.

ROBERTSON, Priscila. Revolutions of 1848. Princeton, 1987. Le Messageur, Paris, 16 mai 1848.

RUDÉ, G. A. Multidão na História. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

SCHAFF, A. História e Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

TAYLOR, A.J.P. The Habsburg Monarchy 1809-1918. Penguin, 1985.

TOQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848: as jornadas revolucionárias em Paris. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

ZEVAÉS, Alexandre. Une révolution manquée: l’insurrection du 12 mai 1839. Paris: Editions De La Nouvelle Revue Critique, 1933.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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