A sátira divina sobre os preconceitos e dogmas da sociedade
O Novíssimo Testamento força o público a questionar e desvendar o absurdo que se esconde em suas próprias crenças
O Novíssimo Testamento desmantela destemidamente dogmas religiosos com sua inteligência afiada e humor irreverente. Ao retratar deus como um belga rabugento e cruel, o filme desafia de forma lúdica a natureza arbitrária dos conceitos religiosos, e da vida. Ao fazer isso, força o público a questionar e desvendar o absurdo que se esconde em suas próprias crenças.
Satirizando Crenças
No vasto reino da criatividade cinematográfica, certos filmes surgem com um brilho instigante, desafiando as normas convencionais e ultrapassando os limites da narrativa. Uma dessas obras-primas é O Novíssimo Testamento (2015), dirigido por Jaco Van Dormael (Sr. Ninguém, O Oitavo Dia) e escrito por ele e Thomas Gunzig (Cold Blood, Kiss and Cry).
Uma jornada hilária com Deus, estilo belga, que vai deixar você refletindo sobre as ironias da vida. Prepare-se para embarcar em uma jornada divina que combina comédia sagaz com comentários sociais mordazes. Com seus temas universais e crítica afiada, este filme transcende as fronteiras culturais e convida o público de todas as esferas à refletir sobre a condição humana.
Através de linguagem metafísica, metáforas vívidas e divertidas, o filme tece um conto cativante que mergulha nos reinos da existência humana, sociedade, religião e nas facetas inexploradas da condição humana.
Uma Odisséia Através do Absurdo
Cansada do sofrimento da humanidade, a filha rebelde mais nova de Deus (Benoit Poelvoorde), Ea (Pili Groyne), com apenas 10 anos, decide expor as datas de morte de todos pelo computador (sim, deus controla a humanidade através de um antigo pc, no seu escritório, onde esposa e filha são proibidas de entrar). Todos recebem a data, via sms, com a precisão de segundos, desencadeando um verdadeiro caos. Os que ainda tem muitos anos de vida comemoram, os que têm pouco tempo de vida, mudam radicalmente suas vidas… um youtuber desafia a morte diariamente em vídeos hilários.
Ela então embarca em uma missão para recrutar seis novos apóstolos - depois de uma breve conversa com uma estátua de seu irmão (JC), cada um representando vários arquétipos e desafios da existência humana, para construir um novíssimo testamento. São pessoas normais, selecionadas ao acaso por ela, e Ea - que nunca pisou fora do apartamento que divide com seu pai e mãe - faz vários questionamentos pertinentes ao observar a sociedade.
À medida que nos aprofundamos no filme, encontramos um conjunto cativante de personagens, os apóstolos, e um desabrigado que ajuda Ea a encontrar os novos apóstolos, e a escrever o novíssimo testamento, pois ela não sabe escrever bem, detalhe: O desabrigado desconhece a data de sua morte, pois não possui um celular.
Deus não tem como desfazer o estrago pois não consegue reiniciar o pc, então resolve ir atrás da filha - com a ira típica do deus do velho testamento. Isso gera acontecimentos hilários, chegando a ponto dele apanhar de um padre por se gabar do sofrimento que o fez passar ao longo da vida. O padre, antes da briga, diz à deus para tentar apaziguá-lo "Como disse Deus: Ame ao próximo como a ti mesmo"! Deus retruca "Eu nunca disse isso, eu não me amo. Isso é coisa dele (indicando uma imagem de Jesus crucificado), ele adorava improvisar… E acabou assim! E cai na risada.
Os arquétipos
Ea personifica a inocência, a esperança e o indomável espírito de rebelião. Ela sabe apenas realizar pequenos milagres, e teme não conseguir concretizar seus objetivos… Mas em uma coisa ela é boa: ouvir! Especialmente a música que cada pessoa traz dentro de si, e assim somos agraciados com clássicos da música francesa.
Ao lado dela, encontramos as almas perturbadas da humanidade - que quebram a quarta parede ao falar de suas vidas, dores e ambições - como a mulher amargurada que sofre de um casamento abusivo (Catherine Deneuve); um homem desiludido lutando com desejos não realizados, em sua maioria sexuais; e Willy, um menino constantemente doente e superprotegido, que quando descobre que irá morrer em breve, decide que quer se vestir como uma menina.
Sobre a mãe de Ea, apesar de ser uma deusa (Yolande Moreau), ela é uma esposa submissa e amedrontada por seu marido. Ea tem raiva dessa situação, e gostaria que sua mãe tomasse alguma atitude.
Por meio de suas narrativas, o filme reflete as complexidades da existência humana e o anseio universal pela libertação. Um dos aspectos mais cativantes do filme reside no uso magistral da linguagem metafísica. As metáforas empregadas ao longo do filme servem como portas de entrada para a introspecção filosófica e fornecem um caminho para explorar profundas questões existenciais.
Mensagens e críticas
Jaco Van Dormael, o visionário por trás de O Novíssimo Testamento, teve como objetivo desafiar as normas sociais e explorar os limites da religião, ao mesmo tempo em que questionava a capacidade humana de compaixão e compreensão. Em uma entrevista à Flux Magazine, Van Dormael expressou seu desejo de criar um filme que convide os espectadores a questionar as estruturas de poder inerentes à sociedade e à religião. Ele inspirou-se em suas observações astutas do comportamento humano e na influência generalizada da religião na sociedade.
O filme se destaca como uma crítica potente dos sistemas sociais que perpetuam a injustiça, a desigualdade, a opressão e os preconceitos. Ele adentra temas profundos, como a libertação do espírito humano, o valor da conexão humana e a necessidade de empatia em um mundo dominado por estruturas de poder. Através das lentes do humor e do surrealismo, o filme oferece uma reflexão pungente sobre a condição humana.
Os temas existenciais e metafísicos
O filme ressoa profundamente com indagações filosóficas sobre a condição humana, a natureza do poder e a busca pela agência individual. Com base na rica tapeçaria da filosofia, o filme desperta a contemplação e convida os espectadores a questionar a ordem estabelecida. Filósofos existencialistas como Jean-Paul Sartre e Friedrich Nietzsche oferecem insights profundos que ressoam com a exploração do filme sobre liberdade, rebelião e libertação pessoal.
Jean-Paul Sartre, conhecido por sua filosofia existencialista, afirmou que os humanos estão condenados a serem livres. Essa liberdade existencial é um tema central no filme, já que Ea desafia a autoridade opressora do seu pai para traçar seu próprio caminho e capacitar a humanidade. A citação de Sartre, "O homem está condenado a ser livre porque, uma vez jogado no mundo, ele é responsável por tudo o que faz", encapsula apropriadamente a jornada de Ea e os profundos fundamentos filosóficos do filme.
O conceito de Nietzsche sobre o Übermensch, ou o "super-homem", também se reflete na exploração do filme sobre a libertação pessoal. A personagem de Ea, impulsionada por seu desejo de desmantelar os sistemas opressivos de seu pai, incorpora o espírito da rebelião nietzschiana contra as restrições sociais. A proclamação de Nietzsche, "Eu ensino a você o super-homem. O homem é algo que deve ser superado", ecoa pelo filme, incitando os espectadores a desafiar as limitações impostas a eles.
A repercussão do filme
Quando O NovíssimoTestamento foi lançado, foi aclamado pela crítica e gerou discussões fervorosas entre o público e os críticos. A exploração ousada do filme sobre religião, normas sociais e a condição humana ressoou profundamente com aqueles que buscam narrativas instigantes que desafiam as perspectivas convencionais. No entanto, também recebeu críticas de círculos mais conservadores, particularmente dentro da comunidade cristã. O retrato irreverente do filme sobre um deus belga e cruel, como uma figura imperfeita e opressiva, bem como sua crítica satírica das instituições religiosas, levantou as sobrancelhas e gerou polêmica. E ultimamente, o que não gera polêmica!?
Alguns membros da comunidade cristã consideraram o filme uma blasfêmia, contestando sua representação pouco ortodoxa de temas religiosos. Acho eu que eles poderiam ver as coisas com mais leveza e bom humor, infelizmente nem sempre é o caso.
A exploração audaciosa da religião no filme serve como um catalisador para o diálogo e a introspecção, desafiando os espectadores a reavaliar suas próprias crenças e examinar a dinâmica de poder dentro da religião organizada.
Abraçando o não tradicional, pois estamos fartos de tradição
O filme é uma jóia cinematográfica que cativa com sua linguagem metafísica e metáforas hipnotizantes. A visão audaciosa de Jaco Van Dormael desafia as normas sociais, provoca introspecção e convida os espectadores a uma jornada profunda pela condição humana. Este filme extraordinário merece reconhecimento por suas mensagens instigantes, performances excepcionais e sua capacidade de ultrapassar os limites da narrativa. Ao abraçar o não convencional, o filme se liberta dos grilhões da narrativa tradicional, oferecendo uma experiência cinematográfica única e inesquecível.
Sua mistura de humor, profundidade filosófica e crítica social convida o público a refletir sobre suas próprias vidas e as estruturas de poder que moldam nosso mundo. O Novíssimo Testamento serve como um lembrete do poder transformador do cinema, pois nos permite questionar, explorar e desafiar nossas próprias percepções. É uma prova das possibilidades ilimitadas de contar histórias e da capacidade do filme de envolver, inspirar e provocar mudanças.
Não quero entregar muitos detalhes do filme pois a primeira reação a certas cenas, acontecimentos surreais, e o final são mais impactantes quando vistos pela primeira vez - e espero que vocês assistam essa fantástica obra do cinema belga. O desfecho do filme é poético, e segue gerando debates sobre estereótipos presentes na nossa sociedade.
Entre no mundo do Novíssimo Testamento e prepare-se para ser iluminado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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