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    Flávio Barbosa

    Cronista, psicanalista

    28 artigos

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    A terceira margem do rio e o dedo do meio

    "Essas duas histórias com suas narrativas próprias diz muito de nosso tempo e de nossa sociedade, e mais além, de nossa civilização. Elas falam, em posições e sentidos diversos, de coisas muito sensíveis, que, as relações que travamos com nossas margens, com nossas bordas, por um lado em buscarmos um canto qualquer que aloje a nossa subjetividade"

    Marcelo Queiroga (Foto: Reuters/U. Marcelino)

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    Duas histórias: uma delas trata-se de um conto do genial João Guimarães Rosa que em uma ficção nos diz de coisas a meditar sobre nossa realidade; outra, um acontecimento real, mas que parece se desenvolver como uma ficção da chamada realidade paralela.

    Começo por uma pequena resenha do conto de Guimarães Rosa: A terceira margem do rio... neste, um homem, chefe de uma família formada por ele, sua esposa e três filhos (dois rapazes e uma moça) resolveu, num dia qualquer, construir uma canoa e para o espanto dos demais membros da família ele entrou na canoa com poucos víveres e pertences e se lançou ao rio que corria ao fundo de seu sítio; e sem tocar na outra margem, simplesmente atracou sua canoa em uma margem por ele delimitada no meio do rio e por lá permaneceu em silêncio resoluto.

    O seu barco, o seu corpo, fixado naquele ponto do rio donde podia ser visto e observado constituiu uma terceira margem, que, nem do lado de cá, nem do lado de lá, ele saltava, apenas se fixara a um ponto pra não mais desembarcar e fazer dali, doravante, o seu domicílio.

    Dias se passaram, meses e anos, e todos de sua família, amigos e viventes daquela comunidade se perguntavam do porquê disso. Nenhuma resposta saltava à cabeça das pessoas. A família, atônita, envidava esforços para que aquele homem desistisse daquele ato, mas ele permanecia ali decidido.

    Um filho o aguardava sempre na beira do rio da margem de sua casa, apelava pela volta do pai, e nada! Vez em quando navegava próximo ao pai e levava víveres, roupas e mantas para o velho se cobrir. Contudo, não demovia a vontade do pai. E não mais ouvia dele senão silêncio. A esposa se desesperava, sem entender tal intento, porque seu marido fizera aquilo. Mas não havia resposta alguma. A filha cansou, arrumou um casamento e foi embora. O outro filho não tendo mais esperança em uma mudança de cenário, também foi embora. A senhora mãe um dia também cansou de vez, fez as trouxas e foi viver com a filha casada.

    Apenas um filho permaneceu ali, também fixado de seu lado na margem do rio ao fundo de sua casa a contemplar o pai numa esperança desesperançada, mas a acudi-lo vez ou outra com víveres à sustentação física do velho pai, cujas barbas, os cabelos e as unhas cresciam, e o corpo emagrecia naquela permanência calada.

    Um dia este filho resolveu ir até ao pai, não apenas a levar víveres, mas para propor uma troca: que o velho retornasse à casa que ele o substituiria naquele ponto do rio habitado na canoa. Que o filho cumpriria o desígnio do pai na terceira margem. Que o velho cansado e sofrido não permanecesse mais naquele lugar, pois o filho, aquele filho, cuidaria que o lugar permanecesse tal a vontade do pai.

    O velho ouviu atento a proposta do filho, e pela primeira vez acenou positivo a algo que se lhe pediam, contudo, no momento da troca, no momento de permutarem pai e filho a consecução da permanência daquela outra margem do sei lá o quê, eis que o filho foge exasperado desistindo daquele martírio, desistindo de cumprir o desígnio do pai. E deixando de lado a esperança, fiozinho dela, que por anos cultivara de um dia ter o pai de volta, seguiu, portanto, como os demais, o seu próprio destino, e foi embora, deixando para trás o velho pai na terceira margem do rio.

    Ninguém mais soube o que aconteceu ao velho, aos filhos e à senhora, todos se perderam (ou se lançaram) em suas próprias margens.

    A segunda história é de quem e/ou do que em um gesto pantomímico supõe talvez não constituir para si uma terceira margem, mas desfazer as margens que temos a partir de um paralelismo sem a menor grandeza em face à realidade. O símbolo disso, enfim, nos veio na forma do apontamento, para todos nós, de um dedo do meio.

    Um homem atormentado de sua própria estupidez na corrosão que fizera de sua vida imersa em terraplanismos, acomete-se de temperamento intempestivo quando se ver provocado em sua irrealidade, e reage! Reage com uma ferocidade antes escondida em algum recanto de si mesmo, pois apresentando-se até então num recato, mal disfarçava, como já escrevi nessas páginas, o Eichmann que tinha contido em si mesmo. Guardado fundo e escondido na brancura de seu jaleco.

    Uma hora isso se revelaria, e finalmente se revelou. Primeiro, em sendo autoridade-mor da saúde pública de um país, ao conspirar contra a vacinação de adolescentes em prevenção e proteção ao vírus da covid-19 que não escolhe idades. Depois, atormentado pelo dilema de, por um lado, agradar ao chefe, o Mito, um charlatão de carteirinha, e por outro, ver e ouvir a repercussão negativa daquela ignomínia, resolve ir à forra. E essa se deu quando em um passeio de Disney quando deveria estar na labuta, se toma de desagrado ao ver e ouvir os protesto justos, justíssimos, de populares numa terra distante, New York, contra a abundância de canalhice e estupidez daquela horrorosa comitiva a seguir do nada a lugar algum. Foi o limite.

    De repente, a aparente sobriedade que vendera meses a fio aos desavisados mostrou-se transtornada em uma fera ferida pronta ao ataque (o médico-monstro), e levantando-se de seu assento, na vã canoa furada que navegara, aponta aos que protestavam a sua face escondida na exposição do dedo do meio. Ah, um símbolo de sua autoimagem. Claro, e dos que se lhes servem como espelho.

    Essas duas histórias com suas narrativas próprias diz muito de nosso tempo e de nossa sociedade, e mais além, de nossa civilização. Elas falam, em posições e sentidos diversos, de coisas muito sensíveis, que, as relações que travamos com nossas margens, com nossas bordas, por um lado em buscarmos um canto qualquer que aloje a nossa subjetividade em face as nossas angústias e silêncios, em face a algo que esmaga o nosso desejo como ponto determinante à nossa existência, por outro, a sinalização gestual de um movimento em curso sobre nós, a saber, aquele que de todo modo tenta nos empurrar a um mundo sem bordas, sem sujeitos, um mundo de atopia e anomia, esse mundo que se explicita em desafio (no sentido da transgressão) a partir do dedo do meio em riste dirigido a todos nós.

    É isso...

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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