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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    América Latina, mais uma vez, lidera a luta contra o neoliberalismo

    A eleição presidencial na Argentina foi nada menos que um ponto de virada e uma lição explícita para a o Sul Global como um todo. Em poucas palavras, ela jogou o povo contra o neoliberalismo. O povo ganhou - com o novo Presidente Alberto Fernandez e a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner (CFK) como vice

    (Foto: Reuters)

    Por Pepe Escobar, publicado originalmente no Consortium News

    Tradução de Patricia Zimbres

    A eleição presidencial na Argentina foi nada menos que um ponto de virada e uma lição explícita para a o Sul Global como um todo. Em poucas palavras, ela jogou o povo contra o neoliberalismo. O povo ganhou - com o novo Presidente Alberto Fernandez e a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner (CFK) como vice.

    O neoliberalismo estava representado por Mauricio Macri: um produto de marketing, antes um playboy milionário, presidente do legendário time de futebol Boca Juniors, fanático por superstições da Nova Era e empresário obcecado com cortes de despesas, que foi unanimemente vendido pela mídia corporativa ocidental como o novo paradigma de político pós-moderno e eficiente.

    Bem, o paradigma não vai demorar a ser esvaziado, deixando atrás de si uma terra arrasada: 250 bilhões de dólares em dívida externa; menos de 50 bilhões em reservas; inflação a 55 por cento; o dólar acima de sessenta pesos (uma família precisa cerca de quinhentos dólares para os gastos mensais, e 35,4 por cento das casas argentinas não atingem esse patamar) e, por incrível que pareça em um país auto-suficiente, uma emergência alimentar.

    Macri, o presidente da chamada anti-política, ou não-política, na Argentina, foi o perfeito queridinho do FMI, gozando de total "apoio" (e presenteado com um colossal empréstimo de 58 bilhões de dólares). Novas linhas de crédito, por enquanto, estão suspensas. Fernandez vai ter muita dificuldade para tentar preservar a soberania e, ao mesmo tempo, negociar com os credores externos, ou "abutres", como os chama o povo argentino. Serão ouvidos uivos na Wall Street e na City de Londres falando de "populismo inflamado", "pânico de mercado", "párias entre os investidores internacionais". Fernandez se recusa a recorrer a um calote da dívida soberana, o que só faria aumentar o já insuportável sofrimento da população.

    A boa notícia é que a Argentina tornou-se agora o laboratório progressista por excelência para a busca de soluções para a reconstrução de um país devastado e para a luta contra a tão conhecida situação predominante: um estado atolado em dívidas; elites predatórias e ignorantes; e "medidas" para equilibrar o orçamento sempre às custas dos interesses populares.

    O que vier a acontecer daqui para frente terá um tremendo impacto sobre toda a América Latina e, além disso, servirá de projeto para uma série de lutas no Sul Global. E há também a questão particularmente explosiva de como isso irá afetar o Brasil vizinho que, no momento, está sendo devastado por um "capitão" Bolsonaro ainda mais tóxico que Macri.

    Um Clio na Estrada

    Levou menos de quatro anos para que a barbárie neoliberal implementada por Macri praticamente destruisse a Argentina. Pela primeira vez em sua história, a Argentina está sofrendo de fome em massa.

    Nesta eleição, o papel da carismática ex-presidenta CFK foi essencial. Ela evitou a fragmentação do peronismo e de todo o arco progressista, insistindo sempre, ao longo de toda a campanha eleitoral, na importância da unidade.

    Mas o fenômeno mais simpático foi o surgimento de um superstar político: Axel Kicillof, nascido em 1971 e ex-ministro da economia de CFK. Quando estive em Buenos Aires há dois meses todos queriam falar de Kicillof.

    A província de Buenos Aires congrega quarenta por cento do eleitorado argentino. Em termos nacionais, Fernandez teve cerca de oito pontos de vantagem sobre Macri. Mas, na província de Buenos Aires, os macristas perderam por uma diferença de 16 por cento - devido a Kicillof.

    A estratégia de campanha de Kicillof foi deliciosamente descrita como "Clio mata big data", que soa muito melhor com um sotaque portenho. Ele viajou literalmente por todo o país - 180.000 quilômetros em dois anos, visitando todas as 135 cidades da província em um humilde Renault Clio 2008, acompanhado de seu chefe de campanha Carlos Bianco (o verdadeiro proprietário do Clio) e de sua assessora de imprensa, Jesica Rey. Ele foi devidamente demonizado vinte quatro horas por dia, sete dias por semana por toda a máquina da mídia convencional.

    O que Kicillof estava tentando vender era a antítese absoluta da Cambridge Analytica e de Duran Barba, o guru equatoriano, viciado em big data, redes sociais e grupos de foco, que foi quem realmente inventou Macri, para começo de conversa.

    Kicillof fez o papel de educador - traduzindo linguagem macroeconômica em preços de supermercado, tudo para formular um programa de governo  praticável. Ele será o governador de nada menos que o centro econômico e financeiro da Argentina, muito semelhante ao que São Paulo é para o Brasil.

    Fernandez, por seu lado, tem ambições ainda maiores: um pacto social nacional, novo e ambicioso, congregando sindicatos, movimentos sociais, empresários, a Igreja, associações populares, com o objetivo de implementar algo semelhante ao programa Fome Zero, lançado por Lula em 2003.

    Em seu histórico discurso de vitória, Fernandez gritou "Lula Libre!" A plateia delirou. Fernandez afirmou que iria lutar com todos os seus poderes pela liberdade de Lula. Ele, afetuosamente, vê o ex-presidente do Brasil como um herói popular latino-americano. Tanto Lula quanto Evo Morales são extremamente populares na Argentina.

    Como era previsível, no Brasil, vizinho e maior parceiro comercial da Argentina e também membro do Mercosul, o neofascista de dois neurônios que posa de presidente e ignora as regras da diplomacia, para não falar das boas maneiras, disse que não iria cumprimentar Fernandez. O mesmo ocorreu com o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, antes um centro de excelência respeitado no mundo inteiro, e agora destruído a partir de dentro pelo tolo irrecuperável que o dirige.

    O ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, grande amigo de Fernandez, teme que 'forças ocultas irão sabotá-lo".  Amorim sugere um sério diálogo com as forças armadas e ênfase no desenvolvimento de um "nacionalismo saudável". Compare-se isso ao Brasil, regredido à situação de ditadura militar semi-disfarçada, com a possibilidade sinistra de uma Lei Patriota tropical ser aprovada pelo Congresso, com o objetivo essencial de permitir que os militares "nacionalistas" possam vir a criminalizar qualquer dissidência.

    A Triha de Ho Chi Minh

    Para além da Argentina, a América do Sul está lutando contra a barbárie neoliberal em seu eixo crucial, o Chile, e ao mesmo tempo destruindo a possibilidade de o neoliberalismo dominar irreversivelmente o Equador. O Chile foi o modelo adotado por Macri, e também pelo ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, um Chicago boy  fã de Pinochet. Num caso explícito de regressão histórica, a destruição do Brasil vem sendo conduzida com base em um modelo agora denunciado no Chile como um funesto fracasso.

    Nenhuma surpresa, considerando que o Brasil é a Central da Desigualdade. O economista irlandês Marc Morgan, discípulo de Thomas Piketty, em uma pesquisa de 2018, mostrou que o um por cento brasileiro controla nada menos que 28 por cento da riqueza nacional, comparado a 20 por cento nos Estados Unidos e 11 por cento na França.

    O que nos traz, inevitavelmente, ao futuro imediato de Lula - ainda em suspenso, e refém de uma supremamente imperfeita Suprema Corte. Até mesmo empresários conservadores admitem que a única cura possível para a recuperação política do Brasil - para não falar da reconstrução de um modelo econômico baseado na redistribuição de renda - consiste no "Lula Livre".

    Quando isso acontecer, finalmente teremos o Brasil e a Argentina liderando um vetor crucial do Sul Global, direcionado a um mundo multipolar e pós-neoliberal.

    Em todo o Ocidente, os suspeitos de sempre vêm tentando impor a narrativa de que os protestos de Barcelona a Santiago foram inspirados por Hong Kong. Isso é bobagem. Hong Kong é uma situação complexa e muito específica, que analisei, por exemplo, nesse artigo, que mescla a raiva provocada pela falta de representação política com uma imagem fantasmagórica da China.

    Cada uma dessas erupções - Catalunha, Líbano, os Gilet Jaunes/Coletes Amarelos, que hoje já se prolongam por um ano - deve-se a razões muito específicas. Os libaneses e os iraquianos não atacam diretamente o neoliberalismo, mas sim um de seus principais sub-enredos: a corrupção política.

    Os protestos voltaram ao Iraque, inclusive em áreas de maioria xiita. A constituição iraquiana de 2005 é semelhante à do Líbano, adotada em 1943: o poder é distribuído com base em critérios religiosos, e não políticos. Essa era uma coisa inventada pelo colonialismo francês, visando a manter o Líbano dependente, e que foi replicada pelos excepcionalistas do Iraque. Indiretamente, os protestos também se voltam contra essa dependência.

    Os Coletes Amarelos têm como alvo principal a intenção do presidente Emmanuel Macron de implantar o neoliberalismo na França - daí a demonização do movimento pela mídia hegemônica. Mas é na América do Sul que os protestos vão direto ao ponto: é a economia, estúpido. Estamos sendo estrangulados e não vamos mais suportar isso. Uma grande lição pode ser aprendida se dermos atenção ao vice-presidente boliviano Alvaro Garcia Linera.

    Por mais que Slavoj Zizek e Chantal Mouffe sonhem com um Populismo de Esquerda, não há qualquer sinal de que uma ira progressista esteja se organizando por toda a Europa, com a exceção dos Coletes Amarelos. Portugal talvez seja um caso interessante a observar - embora não seja necessariamente progressista.

    Divagar sobre o "populismo" não faz o menos sentido. O que vem acontecendo é a Idade da Ira explodindo em geysers em série, que simplesmente não podem mais ser contidos pelas mesmas velhas, cansadas e corruptas formas de representação política permitidas por essa ficção, a democracia liberal ocidental.

    Zizek falou que temos pela frente uma difícil tarefa "leninista" - a de como organizar todas essas erupções em um "movimento coordenado de grande escala". Isso não vai acontecer tão cedo. Mas vai acabar acontecendo. Por  enquanto, prestem atenção a Linera, prestem atenção a Kicillof, deixem que um conjunto de estratégias subterrâneas, insidiosas e rizomáticas se entrelacem. Vida longa à trilha Ho Chi Minh pós-liberal.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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