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Agassiz Almeida Filho

Agassiz Almeida Filho é professor de Direito Constitucional na UEPB, autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (2007), Introdução ao Direito Constitucional (2008) e Formação e Estrutura do Direito Constitucional (2011)

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Amigo e inimigo nas eleições 2020

O lavajatismo atua segundo a lógica do amigo/ inimigo nas eleições municipais de 2020. Só que age como um partido político que não se sujeita aos controles tradicionais da Justiça Eleitoral

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Quando acesso as redes sociais, sempre me surpreendo com a atualidade do pensamento político de Carl Schmitt. É o século XX que nunca termina. Trata-se de um conjunto de ideias, em todos os aspectos, incompatível com a estrutura e o funcionamento do regime democrático. Schmitt foi um autor alemão, conservador e autoritário, filiado ao partido nazista, que perseguiu judeus e ajudou a demolir a democracia alemã, contribuindo, pessoalmente, para a consolidação de Hitler no poder. Não se pode negar. Schmitt está mais presente na vida institucional brasileira, hoje, do que a Constituição de 88. E também nas eleições municipais.

O núcleo do pensamento político de Carl Schmitt é o antagonismo entre amigos e inimigos. Os amigos são aqueles que pensam da mesma forma em termos políticos. Os inimigos, os que seguem uma linha diferente. Num dado momento, haveria um conflito (antagonismo) entre esses vários grupos em torno da disputa pelo poder. O grupo que vencesse formaria uma unidade política e poderia convidar os perdedores para aderir ao seu projeto. Quem não se juntasse ao grupo vencedor, deveria ser excluído (expulso do país, preso, morto etc.) para não interferir no novo projeto político. Vejo muitos schmittianos em manifestações patrióticas pelo Brasil afora. Será que eles compreendem sua própria condição autoritária e excludente? Sim, compreendem. E este é um dos nossos principais problemas políticos.Nas eleições de 2020, a lógica do antagonismo amigo/inimigo vem se impondo com forte vitalidade em muitos núcleos urbanos. Entre os partidos, dada a polarização política do país, o inimigo a ser eliminado do jogo eleitoral é sempre o adversário, apontado, de forma emocional, arbitrária ou calculada, como o alvo do marketing eleitoral depreciativo ou como repositório de todos os pecados capitais produzidos pelas redes e pelo discurso de ódio. Noto aqui uma forte herança de 2018. O debate de ideias abriu ainda mais espaço para os ataques diretos entre os candidatos, onde a vida privada, a capacidade intelectual e o senso moral de cada um são colocados sobre a mesa para que os eleitores possam se fartar num banquete de excessos e falta de bom senso. O eleitor ponderado é uma avis rara nestas eleições municipais de 2020.

“Em circunstâncias normais – escreve Hannah Arendt – o mentiroso é derrotado pela realidade.” Não se pode negar. Mas agora os fatos estão confusos, há muitas convicções e pouquíssima razoabilidade, num emaranhado de mentiras e manipulações (a pós-verdade que Trump não conseguiria e nem pretende levar consigo para o ostracismo) que têm como objetivo principal identificar e anatematizar o inimigo. A questão que eu coloco é a seguinte: essa artilharia contra inimigos imaginários, as antipatias que brotaram na vida privada, o fanatismo acrítico, esse tipo de cenário afeta as instituições ou na verdade depende delas de alguma maneira? Vou simplificar a resposta com apenas uma frase: a Operação Lava jato excluiu o ex-presidente Lula das eleições de 2018. Houve uma retroalimentação entre a manipulação lavajatista do mundo judicial e a reação da sociedade sobre a criminalização da política. Bolsonaro preponderou e Curitiba chegou ao poder.

Alguns poucos magistrados e membros do Ministério Público que juraram a Constituição, que possuem a obrigação de fundamentar as suas decisões, que são sujeitos a órgãos de controle institucionais internos e externos, que devem seguir as regras do Estado Democrático de Direito, tiveram um momento de apagão ou remodelação constitucional. Impuseram a República de Curitiba e o seu próprio sistema normativo como novo referente constitucional, onde a vontade de alguns se confunde com as leis e as funções do Estado passam a ter rosto, voz e vaidade. Essas tendências são impulsionadas por fantasiosas pretensões de elevação aos tribunais superiores ou mesmo de alcançar o Palácio do Planalto. Os próceres de Curitiba atuaram como um grupo coeso contra o inimigo político personificado pelo ex-presidente Lula e sua trajetória popular. E suas ramificações ideológicas ainda estão presentes nas eleições de 2020.

A lógica do amigo inimigo não se limitou às fronteiras da República de Curitiba. Embora desmantelado, desmoralizado e criminalizado no imaginário de amplos setores da sociedade brasileira, o lavajatismo que a sustentou migrou para outros Estados e Municípios. Para muita gente, é um fato novo. Nestes espaços nunca antes desbravados, que não conheciam os efeitos do vírus lavajatista, com sua surpreendente ação deletéria e cínica, o modo schmittiano de compreender a política e o Direito se impôs. Acabou se convertendo em uma epidemia. Sou testemunha de várias pessoas vitimadas. Leem a imprensa diária, cujas acusações têm por base informações dadas pelas próprias forças-tarefas, que promovem verdadeiro linchamento contra pessoas protegidas pela presunção de inocência. Essas pessoas intencionalmente mal informadas concluem pela culpa dos acusados. São julgamentos sumários e sem direito a recurso. E o martírio simbólico de Lula se repete, uma e outra vez, nessas versões liliputianas do lavajatismo de Curitiba.  

O lavajatismo costuma atuar como um mecanismo de interferência direta no processo eleitoral. Traz o antagonismo amigo/ inimigo para o centro das discussões políticas. Vaza áudios sigilosos, força a reedição de delações premiadas (o caso Palocci é um clássico), apresenta denúncias perto das convenções partidárias, lança notas à imprensa etc. Ao contrário do enfrentamento entre os adversários convencionais, ninguém pode contradizer com eficiência as suas posições, pois, perante alguns segmentos da opinião pública, o lavajatismo possui uma espécie de monopólio da verdade. Antes da sua queda, a título de ilustração, Sérgio Moro era apontado como um verdadeiro herói pelos militantes ingênuos da ilusória “nova era de prosperidade” para o Brasil. A pandemia do lavajatismo, embora em curva francamente descendente, ainda contamina centenas de cidades que irão às urnas no próximo dia 15 de novembro.

O lavajatismo atua segundo a lógica do amigo/ inimigo nas eleições municipais de 2020. Só que age como um partido político que não se sujeita aos controles tradicionais da Justiça Eleitoral. Seguido as suas próprias regras, no melhor estilo schmittiano, o lavajatismo quer formar uma unidade política que reflita os valores e interesses por ele defendidos, ditando os caminhos da nação e atuando como se fosse uma justiça salomônica em pleno século XXI. Afinal, do altar das suas elevadas convicções, o lavajatismo, como forma de pensar e distorcer o Direito, acredita que chegou para salvar as eleições municipais de 2020 da política, do consenso e da democracia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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