Argentina, 1985 mostra como o Brasil deveria ter agido quando o golpe militar chegou ao fim
Por que o Brasil não fez o mesmo?
O filme baseado em fatos reais Argentina,1985 mostra o trabalho do promotor Julio Strassera, e sua jovem equipe, ao se tornar responsável por processar 9 comandantes das forças armadas, após o término de uma brutal ditadura militar, num tribunal civil - por crimes cometidos contra a humanidade. Mais de 30 mil pessoas foram torturadas, mortas ou estão desaparecidas até hoje.
E por que o Brasil não fez o mesmo?
Um espelho cinematográfico da história
No vasto domínio do cinema, onde as histórias ecoam no tempo e no espaço, certos filmes transcendem o seu estatuto de mero entretenimento - tornam-se janelas para memórias coletivas, espelhos que refletem os fantasmas do passado e pontes que ligam as sociedades através de experiências compartilhadas. Uma dessas obras cinematográficas é Argentina,1985 (2022) - disponível no Prime.
Do diretor Santiago Mitre (A Cordilheira, Elefante Branco), é um filme no qual podemos traçar paralelos com a recente história brasileira - e aprender lições valiosas com os feitos dos nossos hermanos.
Depois dos comandantes das forças armadas argentinas terem sido absolvidos no tribunal militar - com o despeito de culpar as vítimas - a recente democracia, representada pelo presidente Raúl Alfonsin, tinha que tomar uma decisão para dar legitimidade à recente democracia: Valeria à pena julgá-los num tribunal civil? Depois de idas e vindas, a resposta foi sim, e coube ao relutante promotor Julio Strassera - interpretado pelo sempre fantástico Ricardo Darín (Relatos Selvagens, Abutre) processá-los.
Ele não estava relutante por não acreditar que eles cometeram graves crimes contra a humanidade, estava relutante por temer que tudo fosse um teatro. Depois de aceitar a tarefa, afinal era seu trabalho, a preocupação se tornou sua segurança, a segurança da sua família, e quem colocar na sua equipe - que não fosse apoiador dos fascistas - para ajudar a montar o processo.
Sem opções ele é pareado com um jovem promotor-adjunto, Luiz Moreno OCampo, interpretado por Peter Lanzani (O Anjo, O Clã), que dá a ideia de contratarem uma equipe jovem - assim o público que assistiria o julgamento não teria pré conceitos estabelecidos sobre eles… Não os chamariam de "comunistas".
A equipe, assim como o elenco, trabalhou de forma magistral para juntar provas e testemunhas dos sequestros e torturas praticadas pelos militares. Isso com poucos meses até o julgamento, e sendo ameaçados de morte diariamente.
Algo que é repetidamente dito no filme: Foi um regime fascista, e os fascistas deveriam pagar por seus crimes. Muita gente acha que a palavra 'fascista' recentemente foi banalizada no Brasil, felizmente Mitre não pensa dessa forma.
Depois de um difícil e emocionante julgamento - não podemos esquecer que tudo foi baseado em fatos - vem o veredito: Contra todas as chances, 5 dos 9 comandantes foram condenados, sendo 2 à prisão perpétua. Uma pena que o Brasil, que na mesma época encerrava décadas de uma ditadura brutal, não seguiu o exemplo da Argentina.
A mensagem da direção e roteiro - A direção de Santiago Mitre brilha na sua hábil manipulação que infunde vida em eventos históricos, convidando os espectadores a testemunhar as histórias íntimas, dolorosas e emocionantes, de não apenas personagens - afinal tudo realmente aconteceu - que lutam com o peso do passado violento de sua nação. Através de camadas meticulosamente tecidas de emoção, memória e resiliência. Apesar de ser um drama - sobre um assunto pesado - o filme entrelaça de forma impecável momentos emocionantes e tensos, com momentos de bom humor e leveza.
A decisão de Santiago Mitre de dar à luz Argentina, 1985 foi impregnada de convicção pessoal, alimentada pela necessidade de lançar luz sobre um período oculto pelas sombras. Numa entrevista, ele disse “Fazer um filme sobre democracia é importante para esta época”. Certíssimo ele, e essa época também é perfeita para o que acabamos de presenciar no Brasil!
Os roteiristas, Mitre e Mariano Llinás ecoam esse sentimento, destacando o papel do filme em instigar diálogos que desafiam as fronteiras geográficas. Através da manipulação hábil do diálogo e da dinâmica dos personagens, o roteiro torna-se um veículo de envolvimento, encorajando o público a perscrutar os corredores labirínticos da memória histórica não tão distante. O filme torna-se um apelo ressonante de que o silêncio gera sofrimento, enquanto a exposição dos horrendos fatos ocorridos é a única maneira de expor os algozes, reivindicar justiça, e talvez começar um processo de cura pessoal e da sociedade. Vejo o filme como um tapa na cara da justiça brasileira - não só daquela época.
Uma fala memorável e certeira do promotor adjunto, Luiz Moreno OCampo é "A classe média é aquela que precisamos convencer para ter legitimidade, levando em conta a tendência da classe média de justificar qualquer golpe militar."
Não foi extremamente o que observamos nos últimos 4 anos!? Não é essa mesma classe média que tem medo de perder seus bens - que na verdade não possuem - para o fantasma do comunismo? Quantos "patriotas" acamparam na frente de quartéis, depois que Lula foi eleito, pedindo uma intervenção militar?
Argentina, 1985 é intrinsecamente tecido tendo como pano de fundo a turbulência de uma nação que recém saiu de um terrível período de ditadura militar. A Argentina teve períodos diferentes de regime militar ditatorial, mas a época da Junta Militar (1976 -1983) foi a mais violenta. O filme leva-nos numa viagem pela vida de indivíduos cujos destinos se entrelaçam com o legado da ditadura brutal. É um anseio por justiça, uma batalha contra o silêncio, e uma busca pela redenção que unem esses personagens.
O filme foi indicado e recebeu vários prêmios, como o esperado de um filme com esse calibre. Se tivesse que apontar algo que não me agradou no filme foi a trilha sonora, algo que felizmente é irrelevante para a trama e para o debate que o filme oferece.
Histórias Paralelas - Argentina, 1985 faz mais do que oferecer um retrato íntimo de sua própria história; torna-se um espelho comovente que reflete o passado doloroso do Brasil. Os ecos dos regimes autoritários que marcaram ambas as nações ressoam poderosamente no núcleo da narrativa, e serve como um lembrete claro de que as consequências da repressão e da ditadura não estão confinadas a fronteiras – atravessam o tempo e as gerações, deixando marcas indeléveis na consciência coletiva.
A época sombria da Ditadura Militar do Brasil, de 1964 a 1985, encontra um reflexo estranho na narrativa da Argentina. Os temas da procura da verdade, da luta pela justiça, e da reconciliação com o passado são fios que entrelaçam o tecido das histórias de ambas as nações. As jornadas dos personagens no filme, tornam-se metáforas para as lutas mais amplas dos brasileiros que lutaram com seus próprios traumas nascidos da violência e da opressão sancionadas pelo Estado.
Aprendendo com o exemplo da Argentina - Ao examinar a experiência argentina através das lentes de Argentina, 1985, o Brasil pode descobrir lições inestimáveis para guiar seu caminho em direção a um futuro mais justo. É uma verdade universal que a história se repete frequentemente quando as suas lições permanecem ignoradas. O corajoso confronto da Argentina com o seu passado, conforme retratado no filme, fornece um roteiro para o Brasil – um roteiro que o conduz para longe dos ciclos de destruição e em direção a uma sociedade mais inclusiva e compassiva.
A jornada da Argentina para enfrentar sua história de frente,oferece ao Brasil um modelo para superar divisões e curar feridas. O retrato que o filme faz das complexidades da responsabilidade, da verdade e da lembrança serve como uma bússola, direcionando o Brasil para uma trajetória de cura coletiva e transformação social.
No Brasil a Ditadura Militar, que por coincidência - ou não - terminou exatamente no mesmo ano no qual os torturadores argentinos estavam sendo julgados, deveria ter sido encarada da mesma forma: Como fascistas, torturadores que jamais deveriam ficar impunes. Era de se esperar que a atitude do governo argentino servisse de exemplo, que os responsáveis pela tortura e morte de milhares de cidadãos brasileiros fossem julgados e punidos. Mas no Brasil, a Lei de Anistia de 1979, permitiu o retorno de todos os acusados de crimes políticos no período do regime militar - Todos, com ênfase nos militares. São mais de 40 anos de impunidade!
Sem a anistia os covardes torturadores militares, como Ulstra - responsável por torturar a ex-presidente Dilma - e exaltado por Bolsonaro, enquanto votava a favor do impeachment (golpe!) da mesma, existiria base para o atual Bolsonarismo?
Enfrentando as sombras e moldando nosso futuro - À medida que as cenas finais do filme desaparecem na memória, a sua ressonância perdura, obrigando os espectadores a confrontar as sombras da história e a aspirar a um futuro mais justo. O Brasil, enredado na sua própria e intrincada tapeçaria histórica, tem a ganhar imensamente com o exemplo da Argentina. Ao abraçar o toque de clarim do filme – que o ato de confrontar a história pode gerar cura e unidade. Se calar frente aos horrores, nunca é a resposta.
Teríamos passado por tenebrosos 4 anos de presidência de um sujeito que só foi capaz de fragmentar o Brasil, e expor aqueles entre nós com tendências fascistas? Não poderemos descansar nunca mais, enquanto esse tipo de pensamento torpe for considerado "liberdade de expressão".
Tivemos várias oportunidades para aprender, mas deixamos passar. Se Bolsonaro tivesse seu mandato cassado por exultar um torturador - irônico que alguém que foi eleito democraticamente tenha feito isso, mas a extrema-direita não entende ironia - em pleno congresso, talvez hoje o Brasil fosse mais palatável.
A CPMI do 8 de janeiro, que investiga atos terroristas contra a democracia, é uma oportunidade do Brasil começar a agir de maneira correta e punir os comandantes daqueles desprezíveis atos - mais uma oportunidade nos está sendo dada, e não podemos nos dar à alienação de desperdiça-la.
E encerro esse artigo com as palavras proferidas por Julio Strassera, ao final do julgamento - "Nunca mais"! E aproveito para deixar meu recado: Atenção, Brasil, anistia nunca mais!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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