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    Urariano Mota

    Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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    Arlindo Albuquerque, mestre de escola pública

    "Ele era um apaixonado ao nos ensinar língua portuguesa, humanismo e francês"

    (Foto: Reuters)

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    Para o Dia do Professor, divulgo esta página para um professor fundamental, que publiquei no Dicionário Amoroso do Recife.

    O velho Arlindo, como ainda o chamamos, sem a percepção de que temos hoje a mesma idade que o velho possuía quando éramos adolescentes, o mestre Arlindo Albuquerque era um homem de estatura baixa, quase obeso, atleta dos prazeres da boa mesa, prenhe no ventre e no espírito do amor pelo conhecimento. Ele era um apaixonado ao nos ensinar língua portuguesa, humanismo e francês. Eu o vejo a caminhar na sala, com a dicção precisa, mais de uma vez com o entusiasmo na voz, a conversar conosco de igual para igual, quero dizer, de igual para a altura do seu humanismo. Lembro agora o que antes não sabíamos, um fenômeno misterioso, um estranho efeito de mimese: o seu rosto se assemelhava ao de Sartre.

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    De ânimo sempre alto, quase até o delírio, era como se o cotidiano para ele fosse uma continuação imediata, sem transição, dos seus ideais. Daí que ele chegasse a ser esquisito, daí que ele fosse tomado quase como um lunático, até mesmo pelo círculo mais íntimo, da família. A sua esposa nos contava, quando aos domingos íamos à sua casa para almoçar, para comer e beber alimentos e lições, ela nos contava que o professor subia nos ônibus a cantar a Marselhesa, não em voz baixa, mas, esquecido de si, em voz alta, com um sorriso nos lábios, a cumprimentar, a dividir com as pessoas do povo o hino da revolução francesa. Mal satisfeito do alheamento, nessa outra forma de alienação que é a de não estar estúpido como todos em volta, certa vez ele “socializou” os gomos de um pedaço de jaca com que se deliciava um menino pobre. Alertado pela mulher, apressou-se em pagar a injusta desapropriação. Com pedidos de desculpa e de permissão para comer mais.

    — Que maravilha é a sua jaca, meu filho. Que cheiro, que sabor! Vamos, você me vende mais um pouco?

    Esquecido de si, algumas alunas diziam que o professor às vezes se encontrava, quando ao dissertar sobre um autor fundamental, um samba, um compositor, um poema, o mestre encoberto por uma bata azul, óculos de lente espessa, o que lhe dava um ar de erudito nos trópicos, punha-se a remexer e a coçar os testículos, perdido no enlevo.

    — “Aquele aperto de mão não foi adeus. A nossa separação não convenceu...”. Notem a letra deste samba. Como é lindo. Percebam... (E os dedos iam e vinham no alumbramento.)

    É sintomático como os nossos olhos veem numa pessoa aquilo que é conforme a nossa própria natureza. Entre as alunas que foram atingidas pelo calor do seu espírito, o professor não é lembrado por esse livre costume, que distraído exibia em público. Juçara, de beleza morena, com o seu porte de mocinha índia, se viva estivesse, dele evocaria o professor que a chamava de “pequenininha”. Conceição, Nazirdes, do Carmo, onde estiverem no Brasil, dele falarão como o mestre que as saudava a partir das leituras que em pé faziam em voz alta. “Grande, Magnífico”, ele lhes dizia. Até mesmo Solange, a perdição de sensualidade para meninos e professores, ou mais precisamente a Solange de coxas, que ela exibia generosa, até mesmo Solange afirmará que ele era um mestre incorruptível, pior que Robespierre:

    — Dona Solange, sente-se direito! Isto não são modos.

    Nós, os meninos, dele podemos dizer que era o mestre só possível de acompanhar com os nossos queixos erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento seu, com os nossos olhos e ouvidos despertos. Por mim, posso dizer que ele me deu um conselho fundamental, que às vezes consigo cumprir: “seja mais pessoal”, ele escreveu à margem de um texto em que eu imitava o estilo precioso de José de Alencar. Que coisa mais feia, ele poderia dizer, de onde você copiou isso, menino?, poderia perguntar. Mas foi mais longe que um reparo, um conserto, uma censura ocasional – passou um ideal de criação: “seja pessoal”, o que significava: escreva conforme a sua experiência e índole, menino. A outro, ele pediu que o acompanhasse até a sala dos professores. E lá, diante do nosso colega intimidado, que estava com medo de uma reprimenda, de um castigo, o mestre pediu humilde:

    — Por favor, não me faça mais perguntas difíceis. Você me pergunta coisas que vão além da minha capacidade. Eu sou apenas um professor, compreenda.

    Que mentira. Ele era apenas esta coisa rara, um professor de radical honestidade. Porque ele poderia com duas ou três citações destruir qualquer impertinência, mencionar autores sobre os quais nem sonhávamos, mandar-nos de volta para o lugar de estudantes pobres em começo de formação intelectual. Ou mesmo brandir ameaças de notas em provas de perseguição, como os professores medíocres executavam e executam, aprisionavam e aprisionam o espírito de alunos mais rebeldes até hoje. Em lugar disso, ele nos escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau. Acreditam nisso, meninos pobres em uma escola pública a ouvir um mestre em voz alta nos contar sobre o prazer de andar a pé?

    “Je n'ai pas besoin de choisir des chemins tout faits, des routes commodes; je passe partout où un homme peut passer; je vois tout ce qu'un homme peut voir; et, ne dépendant que de moi-même, je jouis de toute la liberté dont un homme peut jouir”.

    Depois, voltava para o livro de Marcel Debrot, Le français au gymnase. Com frequência, muitas vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler este gozo: “Sur la liberté de la conscience”. Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos murmúrios, que o professor em 1964 fora espancado, preso, porque fizera parte da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro de Marcel Debrot vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase que o mestre nos fazia ler “Sobre a liberdade da consciência”.

    — Vejam a beleza. Repitam esta frase. O título é uma coisa extraordinária — e silabava em ritmo lento “sur la liberté de la conscience”.

    E líamos, e passávamos pela Revolução Francesa: “Le peuple, que se croyait de plus em plus trahi, se porta em masse à l'Hotel des Invalides”.... Essas coisas agora retornam como uma canção, como se fossem música, ainda que do francês eu mal consiga conjugar os verbos Avoir e Être. Agora mesmo sou capaz de recordar as primeiras linhas de um texto cujo título era Ma Mère, que assim começava: “Pose tes mains fraïches sur mes tempes. Là, oui, quel repos! Il me semble revivre les temps...”. Eu traduzia no íntimo: “Põe tuas mãos frescas em minhas têmporas. Que repouso! Sinto como se estivesse revivendo os tempos...”. Lia essa frase e olhava para os lados, para não me flagrarem atingido no coração, porque envergonhado eu me encontrava diante do abalo desconcertante que me invadia. A minha mãe havia falecido em meus oito anos de idade. Pose tes mains fraïches sur mes tempes. Là, oui, quel repos!

    Esse francês a gente lembra porque uma lição mais funda vinha naquelas aulas do professor Arlindo Albuquerque. Em lugar da conjugação mecânica de verbos ele nos legava um valor permanente de humanidade. Sem trombetas, de bata azul, em um subúrbio que hoje chamam de periférico, de nome Água Fria.

    “Sur la liberté de la conscience”. Ninguém nunca nos falou tão bem sobre a felicidade que é a liberdade de consciência.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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