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    Laira Vieira

    Economista, tradutora e crítica cultural

    13 artigos

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    As consequências de querer aparentar uma vida perfeita

    Treta não é apenas outra série "Eat the rich", mas um ousado e poético - e por vezes desagradável - mergulho na psique humana

    Treta (Foto: Netflix)

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    Em 2023, a Netflix lançou Treta, uma tragicomédia da produtora A24 (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, A Baleia), com altos níveis de humor ácido, que mergulha no lado mais sombrio do "sonho americano", e fará muitos se sentirem desconfortáveis entre risadas e momentos de tensão. Treta pode até parecer apenas mais uma série que critica a elite, mas é muito mais do que isso. É sobre os aspectos mais sombrios de uma sociedade capitalista adoecida, estratificada em classes, e sobre as lutas íntimas que as pessoas enfrentam quando são forçadas a se adequar às expectativas da sociedade capitalista, onde nossas vidas devem parecer perfeitas - do contrário somos rotulados como fracassados, preguiçosos e inaptos.

    A temática envolvente - Criada pelo escritor, produtor e diretor sul-coreano Lee Sung Jin, também conhecido como Sonny Lee (Undone, Dave), a série segue Amy Lau, interpretada por Ali Wong (Always Be My Maybe) e Danny Cho, interpretado por Steven Yeun (Minari, The Walking Dead) após uma briga de trânsito que escalou rapidamente, à catfishing, destruição de propriedade, sequestro e morte. Quem nunca sentiu - mesmo que por um fugaz momento - esse sentimento de raiva, angústia e desejo de vingança que permeiam a vida dos protagonistas? Poucos são os que admitem essa sombria verdade sobre si mesmos - e esse é um dos motivos da série ser tão atraente, ela é um reflexo do que muitas vezes não conseguimos admitir, nem para nós mesmos.

    No desenrolar da série acompanhamos como esse incidente comum, conecta essas duas pessoas de classes socioeconômicas diferentes, fazendo os confrontar e admitir verdades incômodas sobre si mesmos, e culminando em uma espécie de epifania - regada à cogumelos.

    Fica claro que não há heróis ou vilões nesta série - apesar de alguns espectadores torcerem por um dos protagonistas - os personagens são pessoas como nós, só mais exagerados e viscerais - ou verdadeiros - em suas reações. Todos querem ser ouvidos, mas poucos são os que ouvem além de sua própria voz - ou das vozes nas suas mentes dizendo que "o mundo está contra eles".

    Adentrando a mente dos personagens - A série explora habilmente a complexidade da psique humana, e mostra que a raiva e a violência podem ser uma resposta "natural" à uma sociedade construída sobre a desigualdade sistêmica. Para Jean-Paul Sartre "A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota."

    Em entrevista à GQ, Lee Sung Jin disse: "Até onde duas pessoas quebradas vão para serem vistas? Existem limites ou vale tudo para ser visto?" Essa questão é um reflexo do que observamos nas redes sociais, onde todos querem aparentar terem vidas perfeitas, e fazem loucuras apenas para terem seus 15 minutos de fama… Se tanto! Embora Treta seja focada principalmente nas lutas psicológicas de seus personagens, ela também oferece uma crítica às maneiras pelas quais a sociedade capitalista perpetua as disparidades sociais e econômicas, onde vale tudo para manter as aparências e alcançar status.

    O reconhecimento da exploração sofrida do proletariado, pela burguesia, foi o principal ponto de partida da análise marxista da sociedade - e essa exploração se dá de diversas maneiras, inclusive mentais, levando algumas pessoas a terem colapsos.

    Os personagens e seus perrengues - Amy Lau é uma empresária à beira de fechar um contrato milionário com a ultra-rica e excêntrica Jordan (Maria Bello) que a deixaria com tempo livre para curtir com seu marido George Nakai (Joseph Lee), filho de um renomado artista japonês (e atualmente "dono de casa"), mas sem o mesmo talento e sucesso do pai, e criar sua filha June (Remy Holt). Preciso fazer uma menção à impagável sogra da Amy, Fumi (Patti Yasutake), que tem prazer em criticar tudo que Amy faz.

    Enquanto isso Danny Cho é um faz-tudo deprimido que vive com seu irmão mais novo e alienado Paul (Young Mazino), e que está tentando juntar grana para trazer seus pais coreanos para viver numa casa própria e confortável nos Estados Unidos… Isso depois que seus pais perderam seu negócio no país - um motel - por causa das atividades criminosas de seu primo Isaac (David Choe) e tiveram que retornar à Coreia.

    Embora o elenco seja na sua maioria composto por coreano-americanos, o criador (que é coreano) deixou claro que não queria fazer uma série sobre xenofobia onde vemos um coreano contra um caucasiano, mas que usou de suas experiências, e de amigos, para criar os personagens. Inclusive a cena inicial da série - a briga no trânsito que desencadeou tudo - ocorreu com ele, mas de uma forma mais leve. Felizmente, ele não surtou e perseguiu quem o fechou no trânsito.

    O retrato da saúde mental na série é fundamental, é um tema que lembra a citação de Carl Jung: “Ninguém se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando a escuridão consciente.” A série mergulha nessa escuridão, captura a sensação de estar preso em uma armadilha e a necessidade de se libertar e trazer um pouco de iluminação tanto para os personagens como para os telespectadores.

    Em uma sociedade onde todos querem parecer perfeitos - sobretudo nas redes sociais - os personagens de Treta são apenas seres humanos lidando com seus problemas da melhor forma que conseguem, assim como a maioria de nós. Mas como eles seguraram seus sentimentos de raiva, angústia e medo, por muito tempo, eles explodiram da pior maneira possível, e com consequências trágicas. Em entrevista à Variety, Lee Sung Jin disse:

    “Eu queria explorar a ideia de alienação em nossa sociedade capitalista, onde todos somos forçados a viver pela aparência e apresentar uma certa imagem de nós mesmos para o mundo. Eu também queria explorar a ideia de raiva e como ela se manifesta de diferentes maneiras, e como algumas pessoas podem não ter acesso à terapia ou outros meios de lidar com suas emoções."

    É refrescante assistir uma série sem heróis, num mundo maniqueísta que gosta de idolatrar e demonizar as pessoas sem pensar duas vezes… Sem mencionar a quantidade de filmes e séries sobre heróis e atos heróicos, que surgiram nos últimos anos, reembalando antigos blockbusters.

    Desconfortável mas não gratuito - Uma das cenas mais polêmicas de Treta ocorre quando Amy é mostrada se masturbando com uma arma na mão. É um momento perturbador que destaca o desespero da personagem. É um exemplo da vontade da série de enfrentar assuntos difíceis e desconfortáveis sem pudores. Em entrevista à Rolling Stone, Lee Sung Jin falou sobre a cena e como ela se relaciona com alguns temas da série:

    “Acho que a cena fala sobre a ideia de que as pessoas podem se sentir presas e impotentes em suas vidas, e que estão procurando maneiras de exercer algum controle sobre suas circunstâncias. Para Amy, isso significa usar sua sexualidade como uma arma, e é um momento realmente perturbador e complicado."

    Apesar do assunto sombrio, Treta tem muitos momentos de humor e leveza, e faz um excelente trabalho ao equilibrar os momentos mais leves com os sombrios. A série também destaca o forte contraste entre os estilos de vida opulentos dos ricos e as duras realidades da pobreza e da insegurança econômica. É uma série que entretém, mas também incomoda os telespectadores ao colocar o dedo na ferida de questões polêmicas que muitos gostariam de varrer para debaixo do tapete.

    É simplista classificar a série como uma tragicomédia pois também possui ótimas cenas de ação, referências ocultas, metafísica, e filosofia combinadas perfeitamente em 10 episódios.

    As referências ocultas, a trilha sonora e a metafísica - Existem várias referências "escondidas"- ou Easter eggs para nerds - que são deliciosas para quem aprecia cultura. Alguns dos exemplos são os títulos dos episódios e o significado da tatuagem da Amy. A inspiração para os títulos de cada episódio vem da mentalidade dos personagens e com o que eles estão lidando no momento, e é poético, alguns exemplos:

    "The Birds Don’t Sing, They Screech in Pain" ("Os Pássaros Não Cantam, Eles Gritam de Dor") , é inspirado no documentário de 1982, de mesmo nome, do diretor alemão Werner Herzog;

    "I Am Inhabited by a Cry” ("Sou Habitada por um Grito"), do poema Olmo, de Sylvia Plath; "Such Inward Secret Creatures" ("Essas Criaturas Secretas Interiores"), frase do romance O Mar de Iris Murdoch; “We Draw a Magic Circle”("Desenhamos um Círculo Mágico"), frase extraída do filme Através de um Espelho, de Ingrid Bergman. Inclusive o significado da tatuagem de Amy, o número 22 estilizado é explicado por ela: a tatuagem "22" é uma referência ao famoso romance Ardil-22 de Joseph Heller, citando que o trabalho original era Ardil-18, mas seu editor o mudou arbitrariamente. Assim é a vida: arbitrária.

    A trilha sonora é composta por hits dos anos 90s e começo dos 2000s, pois Lee Sung Jin queria uma trilha que representasse a “fúria angustiada daquela era da música”. Segundo ele, havia uma sensação real de apatia e solidão, uma qualidade muito autoconsciente e confessional nas letras. E elas também remetem a quando Amy e Danny eram jovens e tinham perspectivas diferentes de como suas vidas seriam.

    A música adiciona outra camada de significado à história, ajudando a enfatizar os temas de rebelião, raiva e frustração. É um verdadeiro prazer nostálgico.

    Os aspectos metafísicos da série também são fascinantes, com o criador do programa explorando a ideia de karma, ou as consequências de nossas ações têm consequências, e o papel que desempenham em nossas vidas. Isso é visto ao longo da série, pois as ações dos personagens têm grandes e severas consequências que eles nunca poderiam imaginar.

    Por que assistir Treta? - Sei que muitas pessoas não gostam de assistir séries que tiveram hype, que ficaram entre as 10 mais vistas da Netflix, por acharem que são simplistas para agradar um público mais amplo - e preferem assistir uma série escandinava obscura de duas décadas atrás para se sentirem intelectuais (não que não sejam boas). Mas Treta é uma série profunda - o que pode passar despercebido assistindo apenas o trailer - ela possui crítica social, sensibilidade, humor, ação e suspense.

    Além disso, é fundamental para quem está disposto a encarar as lutas que enfrentamos diariamente, em busca de uma felicidade fugaz - num mundo adoecido pelo capitalismo - com bom humor… humor ácido.

    Assistindo a série lembrei da frase do poeta John Donne "nenhum homem é uma ilha…". Precisamos de conexões significativas em nossas vidas, um propósito que não seja apenas trabalhar para viver, se colocar no lugar do outro para desenvolver empatia, e também devemos reconhecer nossa raiva, nossos problemas e buscar a ajuda e o apoio de qual precisamos para nos curar e crescer.

    Treta serve como um poderoso lembrete dessa verdade e um apelo à ação para enfrentar as duras realidades de nossa sociedade e de nós mesmos, lembrando sempre que a alienação não é a resposta.

    A dúvida ainda paira sobre a criação de uma segunda temporada devido ao estrondoso sucesso da série que já é considerada o melhor lançamento da Netflix em 2023. Uma das razões para o sucesso da série é sua capacidade de atrair uma ampla gama de espectadores. Enquanto o programa explora não só a experiência asiático-americana, mas temas como a alienação do capitalismo, a saúde mental e a busca pelo sucesso. Todos podem se identificar com os personagens ou aspectos da história, tornando a série altamente acessível.

    Treta é uma série que garanto que ficará na sua memória por muito tempo depois de terminar de assisti-la.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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