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    Roberto Amaral

    Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004

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    As esquerdas e a frente antifascista na luta contra o bolsonarismo

    "Todas as formas de luta legais e democráticas devem ser acionadas, mas o seu centro é a organização popular, e, nas contingências da pandemia, a mobilização das massas, pois só as ruas podem ditar o comportamento do Congresso e do judiciário", escreve o ex-ministro Roberto Amaral

    Ato Unificado Contra o Racismo e em Defesa da Democracia • 07/06/2020 • Brasília/DF (Foto: Renato Cortez/Mídia NINJA)

    As considerações que se seguem partem  do princípio de que, no campo das esquerdas e das forças  progressistas e democráticas  de um modo geral, já de há muito foi identificado o adversário comum e primeiro: o bolsonarismo, pelo que é e pelo que representa, enquanto governo e emergência da extrema direita (desafio orgânico e ideológico), mas, igualmente, como projeto, em curso, de ruptura do processo democrático.

    Defender a ordem constitucional resultante do pacto de 1988, bem resumido nos dez primeiros artigos da constituição é, assim, a prioridade tática da esquerda e de todos os democratas. As circunstâncias em que essa luta se trava impõem a formação  de uma frente ampla, ampla o máximo possível em seu espectro ideológico, de sorte a reunir, contra o bolsonarismo, o militarismo e o golpismo, o maior número possível de formações políticas.

    As frentes, por definição, não são partidos, ou seja, não são grêmios de camaradas, mas concerto político de diferentes, e quanto mais seja largo o caleidoscópio das categorias ideológicas mais ela poderá representar o arco social e mais consequente será no confronto político.

    A frente ampla responde a uma necessidade do atual nível do processo político, quando mal principiam as manifestações populares, atrasadas pelo encontro da crise das organizações de esquerda (e nela do partido hegemônico) e pela pandemia, e quando chegam à luz do dia as contradições que militam no seio da classe dominante.

    Eis o ponto nodal e unificador – a passagem do rubicão – de qualquer política de unidade nacional contra o bolsonarismo: a defesa da democracia.

    Cabe-nos, à esquerda socialista, porém, sem prejuízo da unidade na ação, estabelecer nossos próprios limites que implicam divergência irremediável com o projeto da casa grande – a qual,  em nome da “salvação nacional”, nos propõe a coabitação com o bolsonarismo e com o que de pior ele representa para os interesses do país, a “pauta Guedes”, ainda hoje sustentada pelo “mercado” apátrida, nada obstante o flagrante fracasso da política econômica recessivista e antinacional, a serviço do sistema financeiro nacional e internacional, fabricante de desempregados, mas com o apoio das Fiesps da vida.  A contrário senso, na frente ampla que o Brasil reclama cabem todos os que estiverem contra o regime de hoje, mas cabem principalmente os trabalhadores e a defesa de seus interesses e dos seus direitos surrupiados, o que precisa ser explicitado em qualquer debate. Por isso, devem estar conosco, nessa grande e amplíssima frente democrática, os sindicatos e os movimentos sociais, como o MST, MTST, Contag, CPT, Apib e tantos outros.

    A unidade na luta contra o bolsonarismo – e o que ele representa política e socialmente – é de nossos dias, e o confronto não pode esperar expectativas sinceras ou não em torno das eleições de 2022, até porque elas só estarão asseguradas se a frente ampla for vitoriosa no enfrentamento ao golpe. Na grande batalha é preciso saber eleger os embates prioritários.

    A democracia liberal burguesa, nada obstante suas limitações, é o regime no qual as lutas populares (e nelas a organização sindical e ainda os partidos progressistas) podem avançar. Por isso os socialistas a defendem (lutando para estender seu curso e alargar suas margens) e por isso mesmo a direita civil-militar sempre a combateu, impondo golpes de Estado, repressão (policial, militar, judicial), regimes de exceção jurídica e ditaduras. Por isso a ruptura democrática é o golpe com o qual nos acena o bolsonarismo para levar a cabo o que Walter Sorrentino batiza de “neo-autoritarismo fascistóide”, que se imiscui em nossa vida como um  dos legados da crise dos regimes representativos que corrói as chamadas democracias ocidentais. Ele, esse golpismo, agora e entre nós representado pelo bolsonarismo, é o nosso inimigo – ainda forte e poderoso--,  e para derrotá-lo é que se propõe a frente ampla, quanto  mais ampla mais consequente, embora, também quanto mais ampla mais difícil de ser  de ser concertada.

    Quem estiver, no momento, lutando contra o bolsonarismo e defendendo a democracia, qualquer que seja sua visão de mundo, estará no mesmo barco e remando na mesma direção. Seremos companheiros de viagem, embora tenhamos como objetivos portos diferentes. No caminhar, vencido o inimigo comum, cada um tomará seu rumo. É assim, foi sempre assim

    As esquerdas não têm contradições com o projeto de uma frente ampla democrática, antigolpista, antifascista, e têm consciência de que ele não é o espaço para a disputa de hegemonias. Cabe estimular e fortalecer a política de frente  e contribuir para a agregação das forças populares, o que não impede que os socialistas, presentemente tão silentes, digam que seu objetivo estratégico – que pretendem realizar  no seio das garantias democráticas pelas quais lutam presentemente – é construir uma nova sociedade, sem luta de classes, fundada no trabalho e livre da ditadura da burguesia. Mas de imediato temos uma luta mais ampla e ingente em comum com diversas forças políticas, na defesa do pacto democrático, que, nas circunstâncias históricas brasileiras, interessa  a todos.

     O sincero pleito da unidade não implica, porém, renúncia à batalha ideológica. Os liberais e outras correntes democráticas, aliados de hoje, certamente não nos acompanharão até o final da viagem, mas isso não torna menos valiosa sua companhia nas batalhas do presente, nem impede que cada um ponha de manifesto seus respectivos valores políticos. O caráter de cada luta indica o caráter da política de aliança presente; o caráter da luta de hoje nos diz que a política correta é a de massas, e essa só pode ser levada a cabo a partir de uma política de frente ampla, mediante a qual o conjunto transforma em força a fragilidade das unidades dispersas. Aliás, a esquerda se orgulha de sua política de frente, que esteve sempre no seio de todas as mobilizações populares que ajudaram este país a avançar, e o exemplo e modelo mais conspícuo e mais recente é o sempre lembrado movimento das Diretas já, que, reproduzindo a unidade que se construía nas ruas, reuniu nos palanques e na ação concreta o mais largo arco ideológico jamais alcançado entre nós. Para aquela unidade foi crucial a compreensão e o desprendimento das organizações de esquerda. Naquela altura o império das circunstâncias sobre a vontade impusera a aliança de dissidentes da ditadura e agentes do mercado com trabalhistas, democratas, liberais, socialistas e comunistas. No inesquecível comício da Candelária, no Rio de Janeiro – que reuniu em 1984 mais de um milhão de pessoas – vi, no mesmo palanque, Sobral Pinto e os comunistas do PCB de então. Era o certificado da correção da linha política; a convergência de diferentes, ali simbolizada, apressou o fim da ditadura. Não trouxe a sociedade que cada um de nós tinha em seus sonhos, mas doou-nos o legado de uma ordem democrática que, aos trancos e barrancos, nos chega até hoje.

    Cumpre à esquerda brasileira consolidar, programática e estruturalmente, a frente ampla em defesa da democracia, compreendendo, como tal, para além do óbvio, o combate ao bolsonarismo, que não se reduz ao “Fora, Bolsonaro!”, palavra de ordem unificadora, mas que não encerra a complexidade do desafio, pois esse não se trata da troca de Manuel por Joaquim, de Jair por Mourão, de um capitão por um general, ou seja, de seis por meia dúzia. Nosso alvo é o complexo que dá sustentação ao bolsonarismo: uma engrenagem social, econômica e militar com sólidas vinculações com a direita internacional. Com o capitão ou o general, e mesmo depois deles, teremos de enfrentar, como a uma enfermidade, a ideologia  protofascista, antinacional e anti-povo que veio à tona com o capitão, instalando no planalto o primeiro governo de extrema-direita de nossa História ungido pelo voto popular.

    De outra parte, as forças democráticas em geral precisam ser conquistadas para a denúncia  e combate ao regime de golpe de Estado permanente em que estamos vivendo desde 2016, mediante o qual as forças reacionárias, no poder a partir de então, vêm, desfigurando a ordem constitucional,  destroçando a democracia, a seguridade social e os direitos dos trabalhadores. São  mudanças no regime econômico, político  e social que se efetivam nas sombras  da própria Constituição e da permissividade de um poder judiciário que talvez só tardiamente tenha descoberto que a aliança com o inimigo nem sempre é passaporte para a salvação. Na sua tática de rupturas progressivas, não decisivas mas constantes, o governo, que tem o capitão à frente e os generais Heleno, Villas Bôas et caterva na sua escolta, vai estruturando o novo regime, promovendo o caos na  expectativas de criar as condições militares facilitadoras da ruptura. A primeira tarefa da  frente ampla, em um confronto que pode ser longo, não nos iludamos, será deter esse processo corrosivo. Todas as formas de luta legais e democráticas devem ser acionadas, mas o seu centro é a organização popular, e, nas contingências da pandemia, a mobilização das massas, pois só as ruas podem ditar o comportamento do Congresso e do judiciário. Para isso precisamos unir forças, aumentar sempre nossas bases de apoio e enfrentar o governo em todas os flancos, fortalecendo a oposição, animando as contradições numa guerra de movimento que visa a  isolá-lo e por fim derrotá-lo.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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