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    Flávio Ricardo Vassoler

    Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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    Bodas de arame farpado

    Leia a crônica de Flávio Ricardo Vassoler

    Cracóvia (Foto: Reprodução)

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    Por Flávio Ricardo Vassoler 

     Cracóvia é uma bela e histórica cidade situada ao sul da Polônia, a pouco mais de 1 hora e meia, se tanto, de Oświęcim, município que os nazistas amaldiçoaram como Auschwitz. 

     Ao largo da praça central de Cracóvia, entre arcadas cinzentas que despontam como o reverso melancólico do sorriso, se esgueiram 11 degraus irregulares de uma escada que desembocam em uma enorme e espessa porta subterrânea de madeira — eis a sentinela da taverna medieval Fausto. 

     Com um teto baixo que quase me faz ajoelhar o pescoço (eu meço 1,81m), a taverna é transida pelo amarelo bruxuleante e pelas múltiplas sombras que velas disformes projetam a partir das mesas de madeira fosca e bojuda, ao redor das quais cadeiras toscas, também de madeira, se escoram nas paredes de pedra. 

     Antes de tomar mais um trago de vodca de batata junto ao balcão, um senhor espirituoso, com uma verruga entre marrom e vermelha no queixo flácido, me segreda:

     — Se aprumar bem os ouvidos, você conseguirá auscultar, entre as muitas frestas dessas paredes, as súplicas dos servos e prisioneiros de guerra, que, hoje soterrados pelo esquecimento, empilharam, sob o estalar do chicote, essas pedras sem rosto.

     Quando faço menção de me apresentar, o senhor tira a boina puída com solenidade e saca a luva direita, desvelando tocos de dedos, que, vistos em conjunto, lembram as esculturas de argila que eu fazia no pré-primário, nas aulas de Educação Artística da professora Cleide. 

     — Woźniak, Władysław, prazer em conhecê-lo. 

     Diante dos meus olhos esbugalhados, o senhor Woźniak sentencia:

     — Não se assuste, rapaz: o manuseio ansioso de uma granada dá nisso… 

     — O senhor esteve na guerra? 

     — Não propriamente na guerra, já que a Polônia tombou em menos de um mês, mas na resistência contra os piratas nazistas. Eu era muito jovem, sequer alcançara a adolescência, mas eu me lembro. 

     — O senhor deve ter visto e vivido muitas histórias, senhor  Woźniak… Me conte uma delas… 

     — Por que é que você quer revirar os escombros fumegantes da guerra, rapaz? 

     — Eu sou escritor, senhor Woźniak… Parte essencial do que eu faço é exumar histórias… 

     — Cuidado, rapaz, muito cuidado… Ao escavar a terra, você pode acabar exumando uma vala coletiva na floresta de Katyn, onde os criminosos stalinistas jogaram os cadáveres fuzilados de milhares de oficiais do nosso exército, depois de a Polônia ter sido pilhada e retalhada por Hitler e Stálin. 

     — O senhor já esteve lá? 

     — Não foi preciso. Eu estive aqui, nesta taverna, na semana passada… 

     — Aqui? Na semana passada? Como assim, senhor Woźniak?!

     — Está vendo aquela garçonete? (O senhor Woźniak aponta para uma moça loira e magrinha de avental, cuja tiara cravejada de pedrinhas brilhantes contrasta com a palidez de seu rosto.) A Anna começou a trabalhar aqui há poucos dias, já que a Zuzanna, em choque desde a semana passada, jamais vai voltar a pôr os pés por aqui…

      — Mas o que foi que aconteceu, senhor Woźniak? 

     — Na última quinta-feira, a Zuzanna estava especialmente bonita e bem vestida. Eu lhe fiz notar isso, e ela, de bochechas coradas, me revelou que Tomek, seu namorado, viria buscá-la ao fim do expediente. Ela suspeitava, com uma alegria difícil de conter, que Tomek a levaria para jantar e a pediria em noivado. 

     — Ah, mas que expectativa singela como o orvalho! 

     — Quem dera o orvalho não se esfacelasse quando pisado pelos coturnos da vida, rapaz…

     — Mas o que foi que aconteceu, senhor Woźniak? 

     — Você vê aquela mesa naufragada em penumbra ali no canto da parede?

     — Sim. 

     — Pois então: lá estava um velho taciturno e ensimesmado, que parecia entrincheirado por detrás da gola em riste do sobretudo. Zuzanna mal conseguia discernir o grunhido de seus pedidos, como se também a voz do velho quisesse submergir no bunker de sua boca. A imagem trêmula do velho projetada nas paredes pela vela mais parecia uma enorme aranha. 

     Um calafrio vai escalando minhas vértebras e sobe até a nuca como uma pequena aranha. 

     — Zuzanna e eu nos entreolhávamos: quem diabos é esse velho e de onde ele vem? O velho parecia exalar algo estranho e denso, o ar aqui da taverna, já turvo pelo tabaco, ficou pegajoso e quase irrespirável. Mas eis que, como de costume pelo horário, chegou à taverna o senhor Kaminski, e a porta de madeira, também como de costume, bateu às suas costas como um trovão. 

     — Por acaso o senhor Kaminski é judeu, senhor Woźniak? Eu lhe pergunto isso, porque a família do meu pai tem ascendência sefaradita. 

     — O senhor Kaminski era judeu. 

     — Era?! Como assim, senhor Woźniak? O senhor está me contando algo da semana passada, que história é essa? 

     — E a morte lá tem data marcada para acontecer, rapaz? 

     — Como? O senhor Kaminski morreu? 

     — Morreu… aqui… 

     — Meu Deus! Como assim?

     — O senhor Kaminski era metódico e solitário — acima de tudo, silencioso. Ele pendurava o chapéu, o sobretudo e o cachecol à entrada da taverna e se dirigia para aquela mesa ali, que, já há muito, era conhecida como “mesa rabínica”. Antes que o senhor Kaminski tivesse tempo para arregaçar as mangas de sua camisa de linho surrado, Zuzanna já depositara na mesa uma taça de vinho tinto e biscoitinhos já devidamente esfarelados (antes de levar os restos de bolacha à boca, o senhor Kaminski tresandava os dedos pelo potinho, como quem tenta revolver — ou escamotear — reminiscências de que não consegue se livrar). Ao arregaçar a manga direita, o velho deixava entrever, no meio do antebraço, uma tatuagem verde e fosca, que mais lembrava uma nódoa de bolor no teto de um quarto abandonado, com uma sequência numérica: 111.181. 

     — Meu Deus! O senhor Kaminski é um sobrevivente de um campo de concentração nazista! 

     — Era… O senhor Kaminski sobreviveu a Auschwitz. 

     — Meu Deus! 

     — Dentre as poucas coisas que o senhor Kaminski dizia, eu me lembro de uma máxima dura e seca como os tacões de um coturno contra um assoalho de madeira: “Em Auschwitz, a piedade de Deus, que precisa existir para ser culpado, tem apenas um sentido: a morte”. 

     — O senhor Kaminski chegou a dizer, alguma vez, se ele se sentia culpado por ter sobrevivido? 

     — Nunca. Dentre as poucas coisas que o senhor Kaminski dizia, eu me lembro de outra máxima dura e seca como um tiro à queima-roupa: “Aquele que ainda não perdeu a sensibilidade para velar a morte de um inocente é quem mais quer exumar os cadáveres da história. Aquele que já viu seres humanos serem devorados como lenha por fornos crematórios não quer e não pode se lembrar, mas, definitivamente, não consegue esquecer”. 

     — Meu Deus…

     — “Deus está exilado no céu” — assim falava o senhor Kaminski. 

     — Mas o que é o que o senhor Kaminski vinha fazer por aqui? 

     — Creio que, para um sobrevivente de Auschwitz, a expressão “passar o tempo” é uma verdadeira chicotada. Então, eu diria que talvez, e não mais do que talvez, o senhor Kaminski quisesse estar entre estranhos, que, diferentemente dos carrascos nazistas, não lhe fariam mal algum; talvez ele quisesse estar entre estranhos que o acossassem menos do que os fantasmas tangíveis de seus muitos e recorrentes pesadelos. (Você já imaginou o que é não encontrar refúgio nem mesmo enquanto se dorme, rapaz?!) 

     Um calafrio vai escalando minhas vértebras e sobe até a nuca como uma enorme aranha. 

     — Mas o que foi que aconteceu com o senhor Kaminski? Como foi que ele morreu aqui nesta taverna na semana passada, senhor Woźniak?!

     — Enquanto tomava mais uma taça de vinho tinto e revolvia a ponta dos dedos, como de costume, entre os farelos de bolacha, o senhor Kaminski discerniu o vulto do velho (um intruso?) entre a penumbra. Ele espichou o pescoço, como um periscópio, e, ato contínuo, suas mãos começaram a tremer a ponto de o vinho alagar a toalha de mesa. O sempre comedido senhor Kaminski, naquele momento, estourou o cativeiro do seu passado: “Ei, você aí! É você mesmo! Você aí, escondido no escuro — quem é você?”. 

     — Como assim? Por que o senhor Kaminski intimou o outro dessa forma? O que ele havia pressentido? 

     — Ora, rapaz… Você já foi acossado como um inseto indefeso a ponto de o mais primitivo instinto de sobrevivência revestir você como a sua própria pele? Então, o que é que você sabe de intuições afiadas como traumas e punhais? 

     — Mas o que foi que o velho refugiado na penumbra respondeu? 

     — Nada. 

     — Nada?!

     — Nada. O velho permaneceu encouraçado em sua penumbra. 

     — Mas o que foi que o senhor Kaminski fez?

     — Totalmente fora de si (por quê?, como?), o senhor Kaminski jogou longe a taça de vinho, deu um tapa no potinho com a bolacha esfarelada, se levantou abruptamente e foi até a mesa do velho exilado na pemumbra. Ao chegar lá — o senhor Woźniak tenta apontar o canto onde estava a mesa com o que lhe resta do indicador direito —, o senhor Kaminski jorrou como um gêiser e, com um murro no tampa da mesa, passou a exigir: “Quem é você? O que é que você veio fazer aqui?!”.

     — Mas o que foi que o velho refugiado na penumbra respondeu? 

     — Nada. O velho permaneceu encouraçado em sua penumbra. 

     — E o senhor Kaminski? 

     — Com um tom de voz cada vez mais furioso e inescapável, o senhor Kaminski exigia respostas para as perguntas que disparava como latidos à queima-roupa: “Quem é você? O que é que você veio fazer aqui?!”. Súbito, algo se mexeu na penumbra, e o senhor Kaminski recuou, prontamente, com a fragilidade célere de um coelho. Antes que Zusanna pudesse perfurar nossos tímpanos com um grito agudo como picada de agulha, o velho emergiu com uma pistola cromada em riste. 

     — Meu Deus! Como assim?! Quem era esse velho?!

     — Bem naquele momento, Tomek chegou à taverna. Ao ver Zusanna percolada ao balcão do bar sem poder se mover, o rosto dele simplesmente se voltou para o olho do furacão: o velho apontava a pistola para o peito do senhor Kaminski. 

     — Meu Deus! Como assim?! Por que tudo isso?!

     — Antes de o velho disparar, eu só tive tempo de ouvi-lo dizer o seguinte: “Eu devia ter te matado em Auschwitz, quando você, menos do que um saco de ossos, implorou para morrer”. 

     — O velho atirou no peito do senhor Kaminski?!

     — Não… O senhor Kaminski morreu depois. O primeiro disparo varou a testa de Tomek. 

     — De Tomek?! Como assim, meu Deus?!

     — Como se o dique de um castor pudesse conter a avalanche de uma catarata, Tomek voou até o olho do furacão para proteger o senhor Kaminski e tentar dissuadir o velho daquela covardia atroz. Tudo em vão: diante da primeira súplica, o corpo de Tomek despencou, inerte, como um saco de batatas. 

     — Meu Deus…

     — “Deus está exilado no céu” — assim falava o senhor Kaminski.

     — O velho assassino matou o senhor Kaminski logo em seguida? 

     — O senhor Kaminski ainda tentou balbuciar o kaddish, a oração sagrada para os mortos, mas o velho o cortou violentamente: “Eu devia ter te matado em Auschwitz, quando você, menos do que um saco de ossos, implorou para morrer”. 

     — Mas o senhor não fez nada, senhor Woźniak? Viu tudo isso à queima-roupa e não fez nada?! 

     — Ora, rapaz… Eu não tive o privilégio daquele que pode se sentir indignado diante de uma história de que apenas ouviu falar… É só dentro da frigideira que você descobre se tem vocação para mártir, rapaz. E meu nome não é Tomek, meu nome ainda é Władysław. 

     Depois de engolir em seco um caco de vidro, eu ainda lhe perguntei:

     — E o que aconteceu por fim? O velho assassino fugiu sem mais? 

     — Antes de escapar, o velho pisa em algo: com uma mão grande como uma luva de beisebol, ele recolhe do chão uma caixinha revestida de veludo que caíra do bolso de Tomek. São as alianças de noivado. Ao passar por Zusanna, petrificada como uma estátua junto ao balcão do bar, o velho coloca a aliança no anelar direito da moça com o cuidado de um pássaro a alimentar o filhotinho no ninho. Em seguida, ele coloca o anel de Tomek em seu próprio dedo e sentencia: “Cale-se para sempre — e boa sorte”.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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