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Paulo Henrique Arantes

Jornalista há quase quatro décadas, é autor de “Retratos da Destruição: Flashes dos Anos em que Jair Bolsonaro Tentou Acabar com o Brasil”. https://noticiariocomentado.com/

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Bom domingo, velha São Paulo

"São Paulo elegeu Luiza Erundina, Marta Suplicy e Fernando Haddad, mas nunca deixou de ser conservadora"

Cidade de São Paulo (Foto: Diogo Moreira / Divulgação)

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No domingo, 27 de novembro, Ricardo Nunes deverá ser apontado pela maioria dos eleitores paulistanos para continuar à frente da Prefeitura de São Paulo, se as pesquisas se confirmarem. Guilherme Boulos é um digno representante da esquerda, inteligente, bom orador, ousado. Possui honestidade de princípios, mas a máquina pública municipal é fortíssima, assim como é fortíssima a onda reacionária que se elevou com Jair Bolsonaro e ainda não retrocedeu, a despeito do ocaso político do capitão. 

Salvo advento inusitado de última hora, São Paulo não dará ao Brasil no domingo a surpresa que deu em 1988, quando Luiza Erundina, então quadro do PT, mandou Paulo Maluf (PDS), José Serra (PSDB), João Leiva (PMDB) e João Melão (PL) para casa, surpreendendo a quase todos. Recordemos: aquele fora o ano da promulgação da Constituição Cidadã, as feridas da ditadura não estavam cicatrizadas (de certa forma, ainda não estão), a primeira eleição presidencial depois de 25 anos de escuridão só aconteceria no ano seguinte.

A vitória de Erundina foi um marco histórico, numa época em que o preconceito contra mulheres e nordestinos era um tanto mais saliente do que é hoje. São Paulo elegeu uma mulher nordestina de esquerda contra um candidato favorito que simbolizava o conservadorismo paulistano. Paulo Maluf, “Doutor Paulo” para os aduladores de plantão, carregava a imagem de “realizador”, “tocador de obras”, que até hoje seduz os incautos, além da justíssima pecha de corrupto.

São Paulo elegeu Luiza Erundina, Marta Suplicy e Fernando Haddad, mas nunca deixou de ser conservadora. Sente uma estranha “segurança” na figura insossa de Ricardo Nunes, numa nítida demonstração de que tem medo de mudar, ainda que o presente seja o de uma cidade em que não se consegue chegar em casa quando chove e onde se acostuma com a falta de energia elétrica. Às vezes, parece ecoar as praguejadas de Jânio Quadros. 

Por medo e teimosia, São Paulo continuará a ser a cidade do cidadão que conversou com este jornalista anos atrás e descreveu sua caminhada habitual por áreas centrais da cidade. O momento atual merece a rememoração. Ele era morador dos Campos Elísios, ali pela esquina Eduardo Prado – Barão de Limeira. Nosso cidadão ia a pé até a Praça da Sé. Uma boa caminhada de meia hora. Ao colocar a cara na rua, o sujeito sempre deparava com corre-corres na subida em direção à Praça Marechal Deodoro – eram egressos da ex-Cracolândia da Praça Princesa Isabel, saídos em debandada após um “espalha” da Guarda Metropolitana.

Na outrora bucólica Praça Marechal, aproveitando a proteção contra chuvas dada pelo Elevado João Goulart, pessoas acomodavam-se colchões furados, fogões quebrados, cobertores rasgados. Elas estavam se mudando para o local. Como estavam em frente a uma estação do metrô, provavelmente seriam enxotadas dali.

Andando pela sombria Avenida São João, o sujeito cruzava a Rua Helvétia e via bares, pequenos armazéns, chaveiros e salões de cabelereiros com as portas cerradas, enquanto gente – como diz a polícia – de comportamento suspeito ia se instalando por ali mesmo. Eram migrantes da ex-Cracolândia da Princesa Isabel em busca de um novo gueto. Nosso amigo não conseguia comprar cigarros.

O andarilho dobrava para o descaracterizado Largo do Arouche, onde um restaurante especializado em massas, de passado glorioso, adquirira uma fachada horrorosa e passara a servir uma lasanha com overdose de sal. Já na Praça da República, um pouco à frente, ele recebia convites para programas sexuais. Recusava-os. Cruzava a Ipiranga, onde a imponência do Edifício Itália marca o começo da arborizada Avenida São Luís, um curto hiato livre do aspecto degradado do centro da cidade, cujos edifícios de apartamentos gigantescos erguidos na metade do século passado parecem preservados.

Dali a poucos metros, quando ele dobrava à esquerda na Xavier de Toledo em direção ao Teatro Municipal, o cenário depreciava-se novamente. Eram filas duplas de ônibus na via esburacada, semáforos quebrados e muitos adolescentes de olhar vidrado pedindo qualquer coisa insistentemente, em abordagens do tipo quase-assalto. A escadaria do Municipal era um misto de dormitório e banheiro, e o odor de urina já empurraria obrigatoriamente o andarilho para a direita, a cruzar o Viaduto do Chá, ao cabo do qual se situa a sede da Prefeitura, no Edifício Matarazzo, cuja arquitetura de inspiração fascista hoje abriga Ricardo Nunes. 

Dali à Praça da Sé era só cruzar o Largo São Francisco e sua fedentina, escapar de uma tentativa de assalto e estacionar os olhos por um minuto na Faculdade de Direito da USP, que parecia - e ainda parece - exalar certo ar democrático. Reto pela Benjamin Constant, o nosso amigo que partira dos Campos Elísios chegava ao seu destino. 

A Praça da Sé ainda retrata a São Paulo legada por João Doria, Bruno Covas e Ricardo Nunes, apesar de uma “limpeza” de aspecto higienista feita ali, onde residia uma populosa comunidade em barracas ou a descoberto, famílias inteiras com panelas e fogareiros, bêbados desacordados, usuários de maconha e crack, trabalhadores desempregos e assaltantes. A Catedral lhes fez vista grossa.

Se no domingo, 27 de novembro, os paulistanos escolherem a continuidade, estarão manifestando seu apreço por esse cenário.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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