BRICS, Celac e as ameaças para a hegemonia dos EUA na América Latina
A América Latina deve e pode buscar seu (nosso) próprio caminho de desenvolvimento, sem necessariamente imitar sistemas políticos dos novos sócios
Estamos diante de uma nova etapa, a inauguração de novo longo ciclo de desenvolvimento econômico, disputa intra-capitalista e possibilidades de crescimento ou estagnação no redesenho da hegemonia mundial. Impulsionado pela China e secundado por Índia e Rússia, a economia asiática integrada é o motor da expansão mundial, ameaçando seriamente o poder ocidental, ainda liderado pelos Estados Unidos. Na América Latina, o paradoxo é ainda maior. Nossas economias regionais (estados, departamentos e províncias, governos subnacionais em geral) são mais vinculadas e dependentes para a China (e Índia também), do que aos EUA. Já no fluxo financeiro e na liquidação de contratos, o dólar segue sendo a moeda corrente tanto do comércio mundial, como da estabilidade e dos fundos que proporcionam as finanças públicas. Se o dólar, o Império perde uma de suas bases de exercício de poder – talvez a mais relevante. Esta possibilidade, de perda de poder da moeda estadunidense e do crescimento das relações BRICS e os países latino-americanos, é o objeto deste artigo.
CELAC e BRICS: pontenciais e fragilidades internas
A Cúpula dos Países Sul-Americanos, realizada no Brasil no dia 30 de maio de 2023, implicou na retomada formal da União das Nações da América do Sul (UNASUL, fundada em maio de 2008, mais de um ano antes do golpe de Estado em Honduras, que inaugura a era da Lawfare em nosso continente). A versão ainda mais expandida da UNASUL é a CELAC (fundada em dezembro de 2011, menos de um antes do golpe contra Fernando Lugo no Paraguai), a Comunidade dos Estados Latino-Americanos, o guarda-chuva mais amplo das relações intracontinentais e que refletem uma projeção estratégica de nossos Estados Nacionais. Em janeiro deste mesmo ano, a 7a Conferência da CELAC em Buenos Aires marcou o retorno do Brasil para a montagem desta grande aliança. Não por acaso, o evento seguinte foi um encontro entre a CELAC e a União Europeia (3a Cúpula, em Bruxelas, julho 2023), cujas condições para uma aliança, um acordo entre blocos, são bastante invasivas. É por esta razão que o acordo tangível, entre o Mercosul e a Europa Unificada (na zona euro) não prosseguiu, considerando a exigência de Bruxelas e da Comissão Executiva Europeia (o governo de facto não eleito e balizado no poder financeiro de Frankfurt) para que os países do Cone Sul abrissem as “compras de governo” para fornecedores externos, gerando com essa medida – caso fosse aceita – em mais desemprego e perda de indústrias e sistemistas.
Já na 15a Cúpula dos BRICS, realizada em agosto em Joanesburgo (África do Sul), implicou um passo importante, com o aval para o ingresso da Argentina no bloco (assim como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia e Irã). A partir de janeiro, a aliança econômica vai congregar três gigantes na produção de alimentos, Brasil, Argentina e Rússia (nesta ordem), além de líderes da produção de petróleo e os dois motores da economia mundial, China e Índia. A dimensão do que está por vir, com transações financeiras não dolarizadas dentro do bloco, implica em uma rigorosa análise. Na perspectiva de médio prazo, os prováveis resultados indicam que a CELAC pode ganhar fôlego com a União dos Países do Sul (Unasul), esta com o Mercosul, e tudo passa pela projeção internacional do Brasil e sua aliada estratégica, a República Argentina (sob ameaça direta da extrema direita ocicental incidindo em seu processo eleitoral).
Todos os cálculos do governo Lula implicam em trazer o futuro mandatário da Casa Rosada junto, mas Brasília sabe que isso pode não acontecer e necessita uma constante política de fomento da engenharia pesada na África (a exemplo do que volta a ocorrer através do BNDES em Angola). Já na frente interna, em ambos países a situação é delicada. A patética e anti-econômica propaganda destrutiva do neofascismo operando no Brasil implica em que a “solução produtiva” é a aplicação da linha chilena (pinochetismo) em larga escala, aprofundando a primarização de nossos países, como enormes fazendas e minas pós-coloniais, vendendo grãos e minérios até o fim dos tempos. Na Argentina a pregação de suicídio econômico é a mesma. Logo, tudo o que vier no sentido contrário é alentador, ainda mais se a aliança econômica não implicar em intervenções nas finanças públicas (tal é o caso do FMI) ou na política doméstica. Neste último caso, a família Bolsonaro e o sionismo estão a frente, projetando a aliança neofascista e ultraliberal, através de entidades como o Congresso Conservador, CPAC, e outras excrescências.
O Fórum Econômico de Vladivostok e a aproximação com os BRICS
Enquanto os Estados Unidos projetam discursos mais de tipo moralista, ou então exportam a desinformação estrutural através de aparelhos de difusão comandados por gente como Donald Trumpo ou Steve Bannon, as políticas econômicas voltadas às parcerias internacionais são o forte dos países membros dos BRICS. Tal é o caso de um importante evento que irá ocorrer justamente em Vladivostok, no extremo leste russo, em plena costa do Pacífico asiático e geograficamente próximo da Península da Coreia. Segundo a página oficial do evento, o 8º Fórum Econômico do Oriente de 2023 irá ocorrer de 10 a 13 de setembro de 2023 em Vladivostok, no campus da Universidade Federal do Extremo Oriente (FEFU). Segundo seus organizadores:
“O Fórum Económico do Oriente é uma plataforma internacional fundamental para estabelecer e reforçar laços dentro das comunidades de investimento russas e globais, e para uma avaliação especializada abrangente do potencial económico do Extremo Oriente russo, das oportunidades de investimento que oferece e das condições de negócios no âmbito económico especial avançado. zonas.”
A possível – provável - dos desenvolvimentos recentes e do impacto de seus resultados na Conferência do BRICS importância do fórum em fortalecer as relações russas com os países latino-americanos pode estar localizada nesta parte específica do evento e na programação. Se observarmos o programa central, além das diversas oportunidades abertas com os debates e os possíveis investimentos ou expansão de tipo “ciclo virtuoso”, temos as seguintes partes diretamente vinculadas aos BRICS – o que amplia o espaço para os países latino-americanos – partindo da liderança de Brasil e a partir de janeiro de 2024, de Argentina. O encontro de Vladivostok não por acaso começa no mesmo dia em que se encerra reunião anual do G20, em Nova Deli, na Índia. Vejamos o que o Fórum apresenta:
Refino de petróleo e gás: um motor de crescimento econômico
Agro e Biotecnologia: Como Alimentar 8 Bilhões de Pessoas?
Da molécula ao produto: o desenvolvimento de cadeias de processamento profundo de matérias-primas (focando na produção de polímeros)
Desafios Globais da Agenda Verde: Teste de Resiliência e um Catalisador para a Cooperação entre os Países BRICS
Um novo modelo político e econômico para o mundo
Logística Marítima: Estratégias para Crescimento Exponencial
O Oceano Mundial: Oportunidades Globais para a Frota Russa
EAEU (União Econômica Eurasiática: Rússia, Bielorússia Casaquistão, Quisguistão e Armênia) e BRICS: papel na formação de um novo mundo multipolar
Logística Ferroviária numa Nova Era: Realidades, Desafios e Oportunidades
Clusters Industriais: O Caminho para a Soberania Tecnológica
Uma alternativa global ao domínio ocidental: os desenhos e contornos do futuro
Os tópicos acima são uma parte considerável do Fórum Econômico de Vladivostok, especificamente nos temas e debates que transcendem as políticas e iniciativas de integração do extremo oriente (Far East do termo-conceito em inglês) e podem gerar o excedente de poder necessário para intervir com os BRICS e através destes (incluindo os novos membros). Já a parte da programação do evento especificamente relacionada com os BRICS – e de forma ampliada, com a América Latina – diz respeito à urbanização das megalópoles do Sul Global e as manchas urbanas latino-americanas.
Cruzando as linhas de financiamento do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, o Banco dos BRICS) e as necessidades de vivermos em cidades mais sustentáveis, menos poluídas e poluidoras, o Fórum tem na sua programação focada no seguinte:
“Os principais desafios e a modernização da legislação na esfera do desenvolvimento territorial integrado, do planejamento diretor e do desenvolvimento da cooperação com os países do BRICS serão discutidos pelos participantes na sessão plenária da plataforma de discussão internacional Roscongress Urban Hub no 8º Fórum Econômico Oriental a ser realizado de 10 a 13 de setembro em Vladivostok. A EEF é organizada pela Fundação Roscongress.”
A Fundação Roscongress tem como um de seus projetos ao “Roscongress Urban Hub, uma plataforma de discussão internacional dedicada ao desenvolvimento da investigação e da cooperação empresarial no desenvolvimento urbano. A parceria internacional baseia-se nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e na Nova Agenda Urbana da ONU. Ele foi projetado para se tornar um centro intelectual para ideias inovadoras da economia urbana. A plataforma foi inaugurada como parte do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo em 2023.”
Neste mesmo portal escrevemos a respeito do Fórum de São Petesburgo e em seu frutífero esforço de aproximação econômica com os países africanos e a própria União Africana, através da parceria com o Afreximbank (African Export-Import Bank). Nada é por acaso. A temporalidade e a concomitância do avanço de uma nova hegemonia interna e aliança com a Rússia na África subsaariana, em especial no Sahel (com ênfase em Burkina Faso, Mali e Níger) não são nenhuma coincidência.
Considerando a cooperação chinesa e russa que avançam no continente africano, e a possibilidade concreta de que a hegemonia do ocidente seja secundarizada, nos parece óbvio que a projeção de poder dos EUA sobre a América Latina não deixe de incidir e nem operar para não admitir essa perda.
BRICS e o fim da hegemonia do dólar?
O professor de economia Paul Craig Roberts ocupou postos-chave na administração dos Estados Unidos, mas como acadêmico estudou planejamento econômico no modelo soviético, economia política internacional e a relação entre política externa e economia doméstica. Suas considerações a respeito da perda da hegemonia do dólar estadunidense e as implicações inflacionárias para a sociedade concreta da ainda Superpotência se relacionam diretamente com o destino da América Latina. A conta petróleo fora do dólar pode ser o caminho de saída para o financiamento do Tesouro dos EUA através da subordinação de países inteiros. Vejamos:
A Arábia Saudita anunciou o fim do petrodólar quando começou a aceitar o pagamento do petróleo em outras moedas. Os BRICS estão tentando alguma forma de fazer comércio entre si sem recorrer ao dólar americano, o que, de fato, põe fim ao papel do dólar como moeda de reserva mundial.
O que isto significa para Washington é que os EUA vão começar a ter problemas de financiamento para os seus grandes déficits orçamentais e comerciais. Enquanto o dólar foi a moeda mundial, os bancos centrais estrangeiros mantiveram as suas reservas em dívida do Tesouro americano. À medida que os déficits orçamentais e comerciais dos EUA aumentavam, o mesmo acontecia com as reservas do sistema bancário mundial.
A situação vai mudar. Se uma dúzia de países que constituem cerca de metade da população mundial e 40-45% do PIB mundial deixarem de usar o dólar, o mercado dos bancos centrais estrangeiros para a dívida dos EUA diminui consideravelmente. Tendo externalizado a sua produção, os EUA dependem das importações. A diminuição da utilização do dólar significa uma diminuição da oferta de clientes para a dívida dos EUA, o que significa pressão sobre o valor de troca do dólar e a perspetiva de aumento da inflação devido ao aumento dos preços das importações.
Já podemos dimensionar a perda de influência dos EUA na América Latina?
Esta é a pergunta-chave. É possível dimensionar a perda de influência de Washington nos poderes de fato em nossas sociedades. O paradoxo é do tamanho do desafio. Por um lado, as relações econômicas se voltam cada vez mais para o eixo asiático, portanto, mais próximas dos BRICS. Por outro, nas relações sociais e produção de opinião e preferências circulantes, nossas sociedades se moldam de forma subalterna aos Estados Unidos.
As semelhanças são várias: trabalho precário, economia financeirizada, um absurdo poder empresarial, o lobby sionista lado a lado com o sionismo neopentecostal, guerra cultural enfrentando a um progressismo tímido e esvaziado, assim como a distância que se nota com Ásia e África. A América Latina deve e pode buscar seu (nosso) próprio caminho de desenvolvimento, sem necessariamente imitar sistemas políticos dos novos sócios. Mas para isso, será sempre preciso derrotar o inimigo interno, mais preocupado com seus próprios rendimentos e a condição pós-colonial subalterna, do que se aventurar a disputar poder no Sistema Internacional.
Esse é o desafio do tempo presente, no “longo século XXI”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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