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    Raphael Machado

    Politólogo, Bacharel em Direito, colaborador da RT, Radio Sputnik e TeleSur

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    BRICS: Expandir ou Não?

    A posição multipolarista tende a defender a ampliação dos BRICS e a aceleração do processo de sua transformação no esqueleto de uma ordem mundial alternativa

    Bandeiras dos países dos BRICS (Foto: Telesul)

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    Dia 22 de agosto começa a 15ª Cúpula do BRICS, reunindo lideranças de alto nível dos países membros dessa articulação para uma cimeira de importância ímpar, e que se dá no esteio de uma miríade de outras cimeiras relevantes, como a da OTAN em Vilnius, a Rússia-África em São Petersburgo, a do G7 em Hiroshima, a EU-CELAC em Bruxelas e a da ASEAN em Jacarta.

    Todas essas realizadas nos últimos 3 meses e marcadas por manobras e articulações indissociáveis do conflito entre a Eurásia e o Ocidente atlantista, que apesar de estar quente apenas em pontos localizados da cartografia global, como a Ucrânia, pode ser já descrito como uma guerra mundial multidimensional, híbrida, pela prerrogativa de desenhar a futura ordem mundial.

    Portanto, apesar de países como o Brasil e outros atores do cenário internacional terem tentado abordar essas cimeiras principalmente como oportunidades para negócios, investimentos, parcerias e intercâmbios, “business as usual”, inevitavelmente todos foram, em alguma medida, pautados pela Ucrânia e por Taiwan. Ou, mais especificamente, por um lado pelos esforços do Ocidente atlantista de isolar e enfraquecer Rússia e China, e, pelo outro lado, pelos esforços russo-chineses de romper o cerco e aliviar a pressão, tanto no campo diplomático quanto no campo financeiro.

    A Cúpula dos BRICS não será diferente. Ao contrário, ela promete ser ainda mais central que as outras cimeiras para os esforços por desenhar o futuro. Ou, pelo menos é assim que muitos atores a veem. Vide o fracassado esforço de Macron por participar no evento, e as circunstâncias complexas que levaram Putin, corretamente, a decidir não comparecer pessoalmente na cimeira.

    E um dos temas mais importantes a ser abordado será o do ingresso de novos parceiros na formação.

    Nesse momento, Arábia Saudita, Argélia, Argentina, Bahrein, Bangladesh, Belarus, EAU, Egito, Etiópia, Indonésia, Irã e Venezuela, pelo menos, fizeram solicitações formais de ingresso no bloco. Com mais algumas dúzias de países tendo expressado interesse em participar no bloco.

    Não há, porém, consenso sobre o tópico. E para entendermos o motivo é necessário retornar às origens do BRICS e à “crise de identidade” pela qual ele passa hoje. 

    A Origem dos BRICS - Criado em 2009, por Brasil, Rússia, Índia e China (apesar de diálogos informais se darem desde 2006), com a África do Sul se somando em 2010, o BRICS surge como uma coordenação relativamente informal de países interessados em se apoiarem mutuamente em oportunidades de investimentos segundo uma linha multilateralista, ou seja, visando a descentralização dos processos da globalização capitalista em uma direção mais equânime.

    O próprio nome, inclusive, se origina de um relatório preditivo do Goldman Sachs de 2001, que buscava delinear as futuras transformações econômicas mundiais provocadas por novos atores em rápido crescimento.

    O projeto se complexificou gradativamente, levando à criação de um Banco de Desenvolvimento e de uma Reserva de Contingência. Muitos outros projetos não avançaram, porém, e por volta de 2015 certos veículos midiáticos ocidentais diziam que o projeto havia fracassado. O próprio Goldman Sachs decretava, nesse ano, a morte dos BRICS. Apesar do tom propagandístico, não raro questionando a própria existência do grupo, deve-se notar que a natureza informal e “frouxa” do arranjo criou obstáculos para que os BRICS alcançassem seu potencial.

    Podemos dizer isso pelo seguinte: a inundação do mercado pelo petróleo de xisto dos EUA em 2014 levou à maior queda de preços de petróleo na história. Isso afetou sobremaneira todos os países com economias baseadas em exportação de commodities como efeito colateral, incluindo aí Brasil, Rússia e África do Sul, que entraram nesse período em uma fase de atribulações econômicas. Enquanto isso, China e Índia, engajadas em estratégias de desenvolvimento baseadas no setor industrial, continuaram crescendo. As respostas a essa crise de 2014-2016 foram assimétricas e díspares entre os países. Ora, a própria assimetria, com caminhos e resultados completamente diferentes, é um indício dos problemas dos BRICS.

    Os BRICS, portanto, ao não se constituírem efetivamente como uma organização inter-nacional à época, mas como mero “grupo de países”, perdeu inúmeras oportunidades importantes de articulação, estruturação e planejamento que poderiam ter conduzido a respostas mais eficazes às crises da época.

    Compreendemos as limitações da proposta inicial, mas se se pretendia uma certa coordenação comercial e infraestrutural para melhor distribuir as oportunidades e ganhos da globalização, então era necessária maior integração no âmbito do planejamento e da construção de estratégias de desenvolvimento, o que envolveria troca de conhecimento sobre experiências bem-sucedidas nos campos de interesse. Nada disso aconteceu. No momento de crise foi cada um por si.

    Mudanças de Expectativa - O início da operação militar especial russa na Ucrânia, porém, gerou uma reação em cadeia com ramificações multidimensionais. Como diz Platão, na República, “A verdadeira criadora é a necessidade, mãe de nossa invenção”.

    Como a Europa, que não possui autonomia estratégica, sancionou em peso a Rússia, seguindo as orientações dos EUA, a potência eurasiática foi forçada a olhar, primeiramente, para seus vizinhos meridionais e orientais e, mais além concentricamente, para seus parceiros situados na América Latina e África.

    Até então, é importante recordar que apesar das muitas iniciativas dirigidas para essas outras esferas, a prioridade geoestratégica da Rússia era a Europa, como disposto no Discurso de Munique, dado por Vladimir Putin em 2007. E isso por um motivo muito óbvio: geografia é destino. A Europa é uma península da Eurásia. A Europa é o prolongamento da Rússia.

    E tendo passado a estudar febrilmente a geopolítica clássica após a desintegração soviética, a classe intelectual russa, como Alexander Dugin, Alexander Prokhanov e outros, sempre enfatizou a necessidade de construção de uma parceria com a Alemanha (e, se possível, também com a França). Isso, nos termos do próprio pensamento geopolítico atlantista (vide Halford Mackinder ou mesmo Zbigniew Brzezinski), garantiria para a Rússia o nível de poder e segurança necessários para alcançar o patamar de hiperpotência mundial, livre dos riscos do assédio marítimo da Talassocracia anglo-saxã.

    Pode parecer algo pertencente a outra dimensão, mas já se especulou seriamente sobre a possibilidade da Rússia ingressar na União Europeia há alguns anos.

    Enfim, os EUA conseguiram, através da OTAN, o que sempre quiseram, romper a aproximação euro-russa, e a Rússia reagiu naturalmente: As importações chinesas de gás russo bateram recordes, e a Rússia pretende substituir o Nord Stream 2 com a Power of Siberia 2, ligando Rússia, Cazaquistão e China. Enquanto isso, a Rússia está construindo uma “OPEP do gás” com o Irã, investindo tanto no desenvolvimento dos campos de gás como na construção de gasodutos no Irã. A Índia, por sua vez, está comprando boa parte do petróleo russo (e revendendo, bem mais caro, para a Europa). Integrando esses atores, a Rússia foi forçada a acelerar o desenvolvimento e uso do Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul, uma rede multimodal (rodoviária-ferroviária-portuária) para transporte de carga entre Rússia, Cazaquistão, Turcomenistão, Irã e Índia. Impossível, também, esquecer da busca de uma Rota Ártica capaz de livrar a Rússia da dependência tanto em relação ao Bósforo como ao Suez, e tudo que isso implica. 

    Naturalmente, apesar dos principais impulsos russos terem se dado em relação aos seus vizinhos meridionais e orientais (geografia, afinal, é destino), a África e, em um grau menor, a América Latina também cresceram em importância nessa tentativa ocidental de isolar a Rússia, que no longo prazo pode acabar até mesmo levando a um autoisolamento desse Ocidente. 

    É interessante notar, de forma paralela, que enquanto a Rússia se engajava em um conflito armado aberto com o Ocidente (nunca é demais repetir que a guerra não é contra a Ucrânia, ela é na Ucrânia, mas contra o Ocidente), a China acelerou importantes movimentações econômicas e financeiras que também terão repercussões radicais, com destaque para o impulso de desdolarização e a pacificação do Oriente Médio para abrir caminho para a Nova Rota da Seda.

    Naturalmente, Brasil e África do Sul não recebem a mesma escala de atenção nessas articulações. A geopolítica clássica explica. Tanto o Brasil como a África do Sul pertencem ao “Crescente Exterior”, como espaços maximamente distantes e circundantes no que concerne a Ilha Mundial afroeurasiática, nos termos de Halford Mackinder.

    Não obstante, a África do Sul pode se reconectar na Ilha Mundial (da qual ela foi apartada pela ação histórica britânica) através da integração com o Heartland subsaariano, esforço no qual o país já está engajado.

    O Brasil, por sua vez, desfruta de uma posição geoestratégica nada invejável, partilhando o continente com os EUA, que se recusa a aceitar o fim da unipolaridade e parece pretender lançar a cartada de um pan-americanismo cosmopolita tardio para compensar as suas perdas na Afro-Eurásia. Nesse sentido, por um lado, o Brasil está longe demais dos parceiros dos BRICS e próximo demais do hegemon unipolar; ao mesmo tempo, a ascensão do Brasil é conditio sine qua non para a transição multipolar.

    A lógica é simples: se os EUA conseguirem fagocitar o Brasil (independentemente da fachada utilizada, como a do “meio ambiente”) não haverá uma ordem multipolar estável e de longa duração. Se o Brasil, por outro lado, se afirmar em sua soberania, a transição multipolar será um fait accompli.

    As perspectivas sobre os BRICS, portanto, acabaram se transformando pela força das circunstâncias e é aqui que se coloca o problema da expansão do projeto.

    Rumo a uma nova arquitetura multipolar? - Para além das questões econômicas, financeiras e logísticas, a operação militar especial russa na Ucrânia com a consequente tentativa de aniquilar a Rússia, associada ao crescente cerco militar, econômico, financeiro, comercial, diplomático e cultural à China, convenceram as duas potências de que o atual “sistema internacional”, com a sua “ordem internacional baseada em regras”, não pode ser reformado.

    O modelo e a maioria de suas instituições são obsoletos, tendo origens em Yalta, no contexto da Guerra Fria ou no imediato pós-Guerra Fria. Trata-se de um modelo e de instituições eivados de um óbvio ocidentocentrismo, fruto da húbris dos que consideravam o Ocidente uma “civilização universal”, “a” Civilização, e não apenas uma civilização entre outras, com valores relativos, circunstanciais e locais, em vez de universais e “naturais”.

    Após duas décadas de tentativas de conciliação e apaziguamento com esse Ocidente, Rússia e China ficaram sem opção além de reconstruir a arquitetura internacional sobre novas bases.

    É aí que entra a ideia de multipolaridade.

    O filósofo russo Alexander Dugin explica a multipolaridade da seguinte forma: 

    “Cada sociedade tem seus próprios valores, sua própria antropologia, sua ética, seus próprios padrões, sua identidade, e suas próprias ideias sobre espaço e tempo, sobre o geral e o particular. Cada sociedade tem seu próprio ‘universalismo’ ou, pelo menos, sua própria compreensão do que é dito ‘universal’. Nós sabemos muito bem o que o Ocidente considera universal. É hora de deixar o resto da humanidade falar.

    É isso que chamamos de multipolaridade em sua dimensão mais fundamental: um polílogo livre de sociedades, povos e culturas”.

    O conceito é relativamente simples e, na prática, tem sido exemplificado pelo próprio Pensamento Xi Jinping, ou “socialismo com características chinesas”, que apesar de partir do maoísmo tem concretizado níveis cada vez mais profundos de síntese dialética com o confucionismo e com outros elementos da própria tradição chinesa.

    Não obstante, a ocidentalização foi uma realidade da modernização sob Deng Xiaoping, de modo que a construção do próprio caminho chinês nas condições do mundo contemporâneo não é uma tarefa acabada, mas um labor permanente de redescoberta de si. 

    A Rússia se depara com os mesmos desafios, na medida em que aceita o seu destino eurasiático e consolida o seu reencontro com a tradição ortodoxa. No Irã, o pensamento da Revolução Islâmica e o “xiismo vermelho” permanecem vivos. Na África ocidental, onde vemos processos nacional-revolucionários se desdobrando no Mali, Burkina Faso, Guiné Conacri e no Níger, a influência do pan-africanismo de Kemi Seba é notória.

    Imagina-se que veremos fenômenos semelhantes em outras partes do mundo conforme os povos forem percebendo que o Ocidente não descobriu quaisquer “princípios universais”, mas apenas se projetou a nível planetário, crendo ser a própria imagem civilizacional de Deus.

    O desafio, porém, é traduzir tudo isso institucionalmente, transformando teoria do mundo multipolar em práxis do mundo multipolar.

    É aqui que entra a disputa sobre a expansão dos BRICS. O tema emergiu com força a partir da operação militar especial, impulsionado fundamentalmente pela Rússia e pela China, na medida em que estes países percebem que as atuais principais instituições e fóruns transnacionais não são realmente independentes dos interesses atlantistas e, ao contrário, tem servido historicamente principalmente para validar, com um verniz de legitimidade jurídica, o excepcionalismo ocidental. Basta pensarmos em Haia ou no FMI.

    A expansão dos BRICS fortalece a plataforma em sua capacidade de pressão e questionamento das estruturas do atual “sistema internacional baseado em regras”. Quanto mais membros no BRICS menos isoladas estarão as potências que lideram a transição multipolar e menor a capacidade dos EUA e seus aliados de imporem a sua vontade.

    Conforme o BRICS se complexificar com o acréscimo de membros, maior a tendência para o surgimento de instituições e estruturas transnacionais paralelas em todos os setores. Muitas nações contra-hegemônicas possuem, por exemplo, as suas reclamações quanto à OMS ou à UNESCO, para não falar no FMI, acreditando que essas e outras das instituições vinculadas à ONU não são realmente independentes e não têm em mente realmente as múltiplas perspectivas dos vários povos e civilizações que compõem o planeta. Ao contrário, existe a crescente percepção de que há uma pressão pela padronização universal em todas as áreas, inclusive com um fortíssimo lóbi (atuante até mesmo no Brasil) para que tratados e decisões tomadas no âmbito transnacional não precise mais da aprovação dos representantes democráticos de cada nação para que sejam adotados em âmbito nacional.

    Nesse sentido, a posição multipolarista consistente tende a defender a ampliação dos BRICS e a aceleração do processo de sua transformação no esqueleto de uma ordem mundial alternativa, porque apenas nessas condições torna-se possível construir um mundo com vários centros, várias perspectivas, várias tábuas de valores, etc.

    Isso não significa, porém, que não deva haver critérios de ingresso. Mas, data vênia, ao contrário do que disse recentemente o nosso nobre chanceler Mauro Vieira, o Brasil não deve impor critérios político-ideológicos à entrada nos BRICS.

    A democracia, como sabiamente indicou o Presidente Lula, é polissêmica. Povos diferentes se autogovernam de maneira diferente, segundo princípios diferentes. 

    É possível pensar tanto em critérios políticos conjunturais, como o país que deseja ingressar não estar em guerra, como em critérios vinculados a indicadores econômicos analisados não em um patamar universal, mas conforme cada continente ou civilização. Nesse sentido, é possível pensar tanto no PIB ou em grau de industrialização, quanto no patamar militar, bem como indicadores de estabilidade institucional.

    No caso dos BRICS, ademais, a representatividade realmente importa, razão pela qual faz falta na formação um país islâmico, como o Irã. É necessário pelo mesmo motivo deixar as portas abertas para algum representante europeu, conforme a Aliança Atlântica vá se fraturando em meio às contradições que opõem EUA e Europa.

    Quanto a nosso próprio país, não devemos temer o ingresso potencial de uma Venezuela ou Argentina no bloco. O Brasil não é tão pequeno assim a ponto de precisar temer perder o seu protagonismo continental, garantido por sua geografia e sua história. Esse papel de liderança continental não se define por uma atitude de bloquear os caminhos alheios, mas ao contrário por ser o “irmão maior” que, portanto, conduz e abre as passagens para os nossos vizinhos na Pátria Grande.

    Ao contrário das perspectivas pessimistas, o fortalecimento da Nossa América dentro dos BRICS pode nos dar um maior poder de barganha para que não percamos o bonde da construção da multipolaridade e tenhamos maiores chances de usar a plataforma dos BRICS para alavancar o próprio projeto de integração continental ibero-americana.

    Um maior nível de ousadia e de iniciativa por parte do Brasil nessa fase de transição geopolítica planetária nos colocará como autênticos protagonistas do novo Nomos da Terra.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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