Carnaval, cerveja e direitos suspensos
No Carnaval de Salvador só se pode beber Itaipava; "Se chegar um caminhão da Skol, a gente enxota", disse-me um dos fiscais da Prefeitura. Além disso, o direito constitucional de ir e vir fica suspenso, em nome dos lucros milionários da indústria da folia
Um iluminista francês (creio que Rousseau), explicou a origem da propriedade privada com uma anedota de causar inveja a Marx. Contou que, na comuna primitiva, um espertalhão cercou um terreno, bateu o pé e disse que era dele. Os bestas acreditaram. No Carnaval de Salvador, trios elétricos, blocos e camarotes tomam as vias públicas, dizem que a rua é deles durante seis dias e o rebanho dócil acredita. Durante a folia, o direito constitucional de ir e vir – o simples ato de atravessar a rua, para voltar para casa, visitar um amigo ou prestar socorro a alguém do outro lado da avenida no circuito da festa - – fica suspenso, em nome dos lucros milionários da indústria da folia.
Ora, de quem é o espaço público, inclusive no Carnaval. Da Prefeitura? Dos empresários de Momo? Das empresas patrocinadoras do megaevento? Dos foliões? Em nome de que lei se proíbe o cidadão de circular livremente em sua cidade? Ninguém reclama. O silêncio não é só omissão. É concordância. Já dizia Sartre que a aquele que diante de uma situação (um problema crucial específico) não toma uma decisão, já decidiu.
Podem até encontrar filigranas jurídicas para justificar a interdição das ruas. São convincentes? Então, durante o resto do ano, a praça é do povo, mas no Carnaval é exclusividade dos foliões, dos trios elétricos e dos camarotes lotados gente endinheirada e em busca de diversão cara e passageira ? A rua não é boate pública para balada privada. É o espaço da alteridade e, por excelência do pleno exercício da cidadania, pois, cidadão fora da rua, não conhece a cidade em que vive. Querem privatizar o espaço? Construam uma passarela do axé e do pagode, em algum lugar mais distante, liberando a cidade para quem, de fato, justifica e legitima sua ocupação, o cidadão comum.
A guerra das cervejarias
Neste Carnaval inovaram na magia momesca: impuseram dois selos para que os proprietários de automóveis possam sair e voltar para casa. Dois. Porque não três, quatro ou cinco mil? Daria no mesmo. A exclusão, antes restrita aos deserdados do axé-music, atingiu, agora em cheio, a classe média, que não reclama. Mas, como reclamar, se seus filhos saracoteiam nos blocos e se refestelam nos camarotes?
Agora, a alquimia maior: o acordo de exclusividade celebrado entre a Prefeitura e duas cervejarias para obrigar o consumidor (não apenas folião) a beber as marcas Itaipava no circuito Barra-Ondina; o Schin no Centro da cidade. Para além do gosto do cervejeiro, estão empurrando goela abaixo do consumidor o que querem que ele beba. Essa absurda imposição me faz lembrar André Gide. O escritor francês demonstrou toda resistência do inconformismo com uma frase mercurial: "Não sei onde fica Irkusk, mas, se alguém, um dia, me proibir de ir até lá, Irkusk passará a ser o objetivo fundamental da minha vida". Parafraseando, diria, que se alguém me impuser uma marca de cerveja, beber a outra será o objetivo central da minha sede.
Para garantir o cumprimento desse conchavo mercadológico, a "milícia das cervejarias" tomou conta do circuito carnavalesco desde terça-feira. Seus integrantes, na maioria homens jovens e fortes, usam a camiseta oficial da Prefeitura (aquela com a estampa que celebra os 40 anos do bloco afro), mas com a inscrição nas costas: fiscalização. Andam em grupo rondando os bares e restaurantes. Sua missão é impedir o abastecimento de cervejas de outras marcas.
- Se chegar um caminhão da Skol, a gente enxota – disse-me um desses fiscais, no Largo Dois de Julho, no centro da cidade.
Quem está pagando essa gente? A Prefeitura com dinheiro público para salvaguardar os lucros astronômicos de empresas privadas? É a guerra das cervejarias. A pax carnavalesca e a alegria de uma legião que não está aí para nada; pois grudada no Chiclete e em outras bandas (e bundas) até a Quarta-feira de Cinzas.
Elieser Cesar é jornalista e escritor
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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