Carona
Uma crônica sobre rodas e o bilhete exclusivo do transporte solidário
Aquela manhã quente e azul começou bem. Embaixo do Pau Ferro encontrei vaga fresca e larga. Estacionei e subi com minha filha para o dentista.
Uma hora depois, nos entreolhamos assombrados: o Pau Ferro continuava lá, a sombra também, o carro não.
Primeiro a dúvida, até me perguntei se tinha mesmo vindo de carro. Então, procuramos o porteiro do prédio em frente. Porteiro, aí está um trabalhador bem informado.
- Sim senhor, tinha um carro desse jeitinho mesmo parado aqui.
- Cadê ele?
- Faz nem 5 minutos, um moço bem apessoado, “precisava de o senhor vê”, saiu nele.
- O carro era meu!
- Não dava pra saber, não senhor. Sinto muito.
Solidário, nos ofereceu água e mostrou a imagem da câmera. Um jovem alto, de tênis colorido, bermuda de surfista e camiseta abre a porta com uma chave. Em segundos sai dirigindo meu carro. Quer dizer, meu ex-carro.
Nada demais, todo dia 250 carros são furtados no estado. Furto, diferente de roubo, é para ladrões profissionais. Nada de escândalo ou violência física. O gatuno pisa macio e leva. Na moral.
Dias depois, a tristeza se transformara em tímido entusiasmo. A indenização da seguradora, maior que o preço do carro, quitava as poucas dívidas e ainda pagava uma longa viagem com acompanhante – ao Japão, por exemplo. O melhor: me livrei do estresse ao volante, da gastança de seguro, IPVA, estacionamento, combustível, multas.
10 anos se passaram, as pequenas dívidas resistem e continuo sem conhecer o Japão, mas como pedestre e passageiro, conheço melhor a cidade. Aos 63 anos, só boto a mão no bolso para pegar o bilhete do idoso.
Rodar catraca nos leva a outras viagens. Durante alguns anos embarquei no 7245 pontualmente às 6:47. Logo percebi que, assim como a dupla de cobradora e motorista, os passageiros eram os de sempre.
A doutora Laura e as duas estudantes de Comunicação entravam no ponto inicial. Logo depois, um senhor de sapatos brancos embarcava para Santo Amaro. Na esquina da Consolação com a Paulista, três adolescentes seguiam juntos para escola em Pinheiros com pesadíssimas mochilas. Dulcineia, Cleide e Ubirajara deixavam o hospital exaustos do plantão e cada um sentava ao lado da janela.
Todos se conheciam, conversavam. Pessoas interessadas umas nas outras. Perto do Natal, teve amigo secreto. A troca de presentes foi em trânsito, claro.
Para o aniversário da cobradora, os passageiros fizeram lista. Francisca chorou de alegria com o cartão assinado por todos e o kit de perfume, xampu e sabonete.
Tenho viajado por outras linhas. Semana passada, o destino era Itapecerica da Serra. O busão é intermunicipal e o motorista, que trabalha sem cobrador, conhece quase todos os passageiros.
Marleia carregava uma mochila infantil e pediu a ele que parasse no próximo ponto, mas a parada estava vazia. Vinte metros depois, vimos uma mulher correndo no acostamento com os braços levantados.
“Para! Para! Minha mãe tá vindo ali”. Marleia alertou.
Em plena Regis Bittencourt, a “rodovia da morte”, o motorista Rogério acendeu o pisca alerta e diminuiu bem a velocidade. Então abriu a porta da frente e a passageira entregou a mochila para a mãe com o ônibus em suave movimento.
- Valeu, m...
- Beij...
Sem que eu perguntasse, Marleia explicou.
- Minha filha dormiu com ela e agora vai pra escola. Se eu paro e desço para entregar a mochila, atraso a viagem, perco tempo.
- Você sempre faz isso?
- Muitas vezes. Mas só com motorista legal. Na volta mesmo, lá pro meio da tarde, eu combino com minha mãe pelo celular. Aí ela me espera com a minha filha no ponto do outro lado da rodovia. O Rogério - ou o Gerson – dá essa paradinha, a Aline sobe e segue comigo.
- Que mais que você entrega ou recebe?
- Ontem, minha prima Fabiana me deu um bolo de laranja. Duas fatias ficaram pro Rogério. Semana passada, me entregou a calça do meu marido que a vizinha fez a barra e eu devolvi a sandália dela que tava no sapateiro. Sempre no esquema da meia paradinha. Eu cá dentro e elas lá fora.
O esquema vai mais longe.
Em locais afastados e à noite, Rogério, em vez de parar no ponto, deixa o passageiro na porta de casa. “Só acelero depois que ele abre o portão. É que nem quando a gente dá carona a um amigo.”
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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