Casa cinza
A casa verde, que visitamos na semana passada, não existe mais
As leitoras e os leitores mais atentos lembram do assunto da última crônica: a especulação imobiliária, gananciosa, apressada e demolidora.
É o bota-abaixo de casas e lojas mais antigas para a construção de prédios enormes e seus apertadíssimos apartamentos. Com quase quarenta anos de São Paulo, nunca vi nada igual.
A casa verde da Vila Buarque, perto do centro, parecia a próxima vítima. Parecia e foi, mas não da maneira que imaginávamos: destruída a golpes de máquinas até virar entulho.
Já conto o que aconteceu e te peço um pouco de paciência para dar mais detalhes da casa de dois andares, janelas largas e sua gente.
Ela foi loja na frente e nos fundos era pensão. Endereço de 8 pessoas.
Juntos, eles usavam a lavanderia, a cozinha, viam TV. Quase todos dormiam em quartos duplos, em média pagavam 600 reais por mês.
A maioria trabalha. Otávio é cozinheiro na padaria da rua de trás. Dona Lola é funcionária de uma loja que conserta rádios e televisores. Ali também moravam estudantes e aposentados.
Na madrugada de ontem, todos acordaram com um calor infernal, muita fumaça e barulho.
Sabe-se lá de onde, o fogo veio forte, engoliu portas, telhado, móveis.
Quem pôde correu pra rua e quem não pôde pulou pela janela. Foi assim com a dona Lola, uma senhora de olhos vivos e corpo esguio. Há 16 anos na pensão, ela sabia que não conseguiria sair pela frente. Saltou pra vida do segundo andar e foi resgatada pelos bombeiros. Sofreu um arranhão no cotovelo.
Já as roupas e a pequena mobília, que comprou no crediário, não existem mais.
- O que o fogo não queimou a água do bombeiro estragou, moço.
- A senhora tem pra onde ir? Eu pergunto.
- Meu patrão vai me ajudar, os vizinhos daqui também. Ganhei essa camiseta que estou vestindo, pasta e escova de dentes. Por enquanto vou para outra pensão ali na frente.
Dona Lola é mulher forte, que venceu mais uma dificuldade. Porém, chorou junto com o amigo Otávio – o cozinheiro da padaria - a morte do vizinho aposentado. Um homem de 88 anos, que não conseguiu fugir das labaredas. Morreu queimado.
- Ontem mesmo a gente conversou. Eu vi quando ele levou o lixo pra fora. Agora é Otavio que me conta.
A notícia foi pra internet e pra tv. A prefeitura ofereceu abrigo e cesta básica. Os vizinhos chegaram pra ver as ruínas da casa e dar uma força, mesmo sem saber o que se diz para quem perdeu o pouco que tinha. E o pouco era tanto...
Um homem abraçou em silêncio outra mulher, que parecia moradora da pensão. Os dois choraram
- Se tivesse mais tempo, a gente salvava alguma coisa...ele repetia baixinho.
Pois é, o tempo. Em meia hora o quarto desapareceu.
- Era pequeno, limpo e bem ajeitadinho. Outra vez é a Dona Lola quem me explica.
Ao lado dela, um jovem com o rosto sujo de fuligem fala ao celular
- Pai, a gente virou desabrigado e agora?
“Foi tudo embora,” os inquilinos repetem. O “tudo” vai muito além da mobília e das roupas. São fotos, uma ou outra carta, livros, lembranças. O celular com as mensagens, os contatos.
A casa verde ainda está de pé. Agora cinza, semidestruída e interditada pela polícia.
São Paulo ganhou mais 8 desabrigados e uma pergunta sem resposta.
Quem é o trabalhador aposentado de quase 90 anos que morreu sozinho e queimado num quarto fechado?
Apesar da tristeza, não houve minuto de silêncio. O ruído da obra é o mesmo de ontem, de anteontem, da semana passada.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, catiripapos e Borogodó, da Kotter
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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