Casa verde
Boteco, salão de beleza, pensão já são entulho. Vem aí mais um gigante de cimento e ferro
Em São Paulo há um bairro chamado Casa Verde, é na beira do rio Tietê e, pelo que se conta, foi uma fazenda em que a casa “do sinhô” imitava a cor do mato e das árvores. O crescimento compulsivo da cidade engoliu a várzea e devastou quase tudo. A boiada mansa e a lavoura desapareceram. Só o nome resistiu.
No bairro em que moro também tem casa verde. Uma casa mesmo, dessas de morar ou abrir negócio. Tornou-se famosa por que ali se consertavam malas, bolsas e sapatos. Fosse o que fosse, de meia sola ou sola inteira, de fecho ou zíper, de remendo ou troca de rodinhas. Porfírio, uruguaio falante e habilidoso, não devolvia serviço. Trabalhava muito, cobrava pouco e freguesia nunca faltou
Na semana passada, Porfírio encheu as próprias malas e se mudou. Uma placa avisa do novo endereço.
Até as sábias sabiás sabiam. A casa verde pode ir ao chão a qualquer momento.
Uma construtora comprou a área para levantar um arranha-céu.
As vizinhas mais próximas à casa verde viraram poeira. Um boteco de refeição boa e farta, um salão de beleza especializado em depilação e um mercadinho que tinha de tudo.
Junto deles uma pensão para rapazes solteiros e moças de família. O quarto sem banheiro custava 700 reais por mês, com pagamento adiantado.
Assim como restaurante de beira de estrada com muito caminhoneiro é sinal de preço honesto e comida saborosa, na cidade pode apostar: se tem fila de motorista de táxi ou de motoboy, ali come-se bem e barato. Foi assim por muitos anos no restaurante do Osmani.
Na porta ao lado, a vendinha funcionava como pronto-socorro doméstico: água sanitária, pregador de roupa, vassoura, graxa de sapato e barbante, o que o freguês queria, achava. Seu Francisco entregava em casa e sempre tinha troco. Aceitava cartão e pix.
Já o salão, me conta a manicure Cleide, era pronto-socorro da auto estima. As clientes vinham com pouco tempo e muitos desejos: depilação cuidadosa, escova e corte e, se possível ao mesmo tempo, fazer mãos e pés. Entravam tensas, saíam lindas e felizes. E agora? Eu pergunto. Cleide não tem resposta.
Da pensão, ninguém sabe, ninguém viu. Sumiu.
A casa verde, a da sapataria, mesmo vazia, ainda está de pé. É construção sólida, dois andares, um janelão na parte de cima e uma porta larga no térreo. Imagino os primeiros moradores com sala ampla, mais cozinha e banheiro embaixo. Em cima, pelo menos dois quartos com mais banheiros. É provável que nos fundos tivesse quintal, quem sabe um abacateiro?
É mais que um teto, um cep, um carreto de mudança. Uma casa ou loja que cai enterra um ecossistema de sentimentos, de histórias.
Serve para moradores e também para trabalhadores. Pedreiros e ajudantes emprestaram talento e suor para construir cada parede. Pergunte a eles o que pensam dessa onda de demolições. Se preferir indague a um escritor o que ele acha de rasgarem um de seus primeiros livros porque as páginas estão amareladas.
A arte esmerada dos construtores de antigamente desaba diante das pancadas das máquinas demolidoras. Então, surgem tratores e caminhões a recolher o entulho com a pressa dos envergonhados
O bate estaca atordoa a rua inteira das 8 da manhã às 6 da tarde. É transtorno semelhante ao da frota de betoneiras a misturar concreto e fechar metade da rua, que já perdeu a calçada.
A cidade e sua gente sofrem desde a aprovação de uma lei que permite construções maiores perto das estações do metrô.
Na rua em que moro um prédio que brilhou na Era do Rádio não existe mais. Naquele terreno nasceram grandes coberturas jornalísticas. Notícias de última hora, furos de reportagem, programas de auditório. Entre as paredes derrubadas, vozes inesquecíveis contaram a história do Brasil
Num dia qualquer de novela, esvaziaram o imóvel e com o apetite dos cupins estraçalharam os tijolos e devoraram até as maçanetas.
Curioso que sou, fiz uma enquete: se você pudesse escolher o que seria feito nesse terreno?
Ezequiel, morador de rua e carroceiro, construiria um abrigo bem protegido, com chuveiro, muitas camas e canil. “Eu moraria aí numa boa”.
A jovem mãe, com o cabeludo Miguel no carrinho, escolheria uma praça, com árvores, lago com peixes, brinquedos e biblioteca pública. “Ia arejar a rua e a vida da gente.”
Bruna, jornalista, nem demoliria o prédio, faria um museu do rádio. “São Paulo tem museu de tudo, de rádio acho que não existe”.
Celso, caixa do sacolão, também tem fome de cultura: “Faria um cinema. Cinema popular, baratinho e com matinê, para todo mundo ir.”
Uma semana depois a resposta veio num tapume. Mais um prédio grande de apertados apartamentos.
Milhões de pessoas vivem em apartamentos em São Paulo, eu sou uma delas. É certo, que o prédio subiu sobre as ruínas de uma casa. Por isso, pode parecer injusto não querer que outras pessoas exerçam o mesmo direito. Viver perto do transporte público é um benefício justo e as moradias menores podem ser a opção para os mais humildes.
O desafio é dar essa oportunidade sem desfigurar a cidade. Isso tem nome: chama-se boa administração pública.
2024 é ano de eleição, pode ser a chance de salvar nossas casas verdes.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites., Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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