Combate ao trabalho escravo
O racismo na base do trabalho em condições análogas à de escravidão
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Alguns dados sobre a situação das trabalhadoras e trabalhadores negras e negros no Brasil
Conforme demonstram as estatísticas do IBGE, 54% da população brasileira é negra. Diante desta informação, e considerando o escopo da presente audiência, é importante indagar: onde estão e o que fazem estas cidadãs e cidadãos brasileiras e brasileiros?
Pois bem. Vejamos alguns dados a respeito.
(1) No Seminário Questões Raciais e o Poder Judiciário, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em junho de 2020, se procurou responder à pergunta: “Por que os negros são a maioria nas penitenciárias brasileiras?”. No evento se destacou a existência de um “racismo velado que faz com que o negro já seja considerado criminoso, antes mesmo de ser processado” e se apresentou a informação de que “praticamente toda a população carcerária do Brasil é negra”.
Ainda no mesmo evento, Washington Clark dos Santos, diretor-geral substituto do Depen “enfatizou que as pessoas negras recebem penas mais duras quando cometem os mesmos crimes de pessoas brancas”. Edinaldo César Santos Junior apresentou dados de uma pesquisa da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em São Paulo que demonstrou que a quantidade de maconha apreendida com pessoas brancas é, em média, maior do que as negras (1,15kg contra 145 gramas). No entanto, os negros são os mais condenados (71,35% contra 64,36% dos brancos). Isso acontece na apreensão de todos os tipos de entorpecentes. ‘Brancos acabam sendo classificados como usuários enquanto os negros, como traficantes’, explicou” (https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/).
(2) São recorrentes os casos de pessoas negras que perdem o direito à liberdade ao praticarem um furto, mesmo de pequeno valor ou para conseguir comida. Em 2021, uma mulher negra, mãe de cinco filhos, foi mantida presa por decisão do TJ-SP, por ter furtado de um supermercado um pacote de miojo, no valor de R$ 21,69 (https://www.band.uol.com.br/noticias/brasil-urgente/ultimas/justica-mantem-presa-mae-que-furtou-r-2169-em-comida-de-supermercado-16453607).
(3) No último ano, conforme o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o número de mortes por policiais de pessoas negras aumentou 5,8%. Entre 2020 e 2021, pretos e pardos representaram 84,1% das vítimas de intervenções policiais, o que reflete em 54% dos brasileiros. No caso das pessoas brancas, o número de mortes teve queda de 30,9% no mesmo período, segundo a pesquisa (https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/).
(4) Segundo avaliação feita pelo IBGE, a renda média de trabalhador branco é 75,7% maior do que a de pretos e 70,8% maior que a de um pardo. (https://www.infomoney.com.br/carreira/renda-media-de-trabalhador-branco-e-757-maior-do-que-de-pretos-diz-ibge/).
Nesta mesma linha, pesquisa feita pela Associação Brasileira de ONGs (Organizações Não Governamentais – Abong) demonstra que são bastante discrepantes a remuneração e os cargos ocupados por negros e brancos nas organizações da sociedade civil. Segundo o levantamento, feito a partir de informações da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério da Economia, no período de 2015 a 2019, apurados nas 27 capitais brasileiras, em 2019, as pessoas negras ganharam em média 27% menos que as brancas nas ONGs. “Entre as pessoas que receberam, em 2019, mais de 20 salários mínimos nas ONGs, 44,42% eram homens brancos; 31,45% mulheres brancas; 12,97% homens negros; e 10,01% mulheres negras”. (https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-12/estudo-expoe-diferenca-de-salarios-entre-negros-e-brancos-em-ongs)
(5) Reportagem de Renata Coutinho, publicada na Revista Carta Capital, traz dados de pesquisa do Instituto Ethos, segundo os quais “apenas 1,6% da gerência e 0,4% do quadro executivo das empresas com maior destaque nacional são compostos por mulheres negras, no trabalho terceirizado seguem maioria”, enquanto que, no Sindilimpeza, 80% da categoria de asseio e conservação é composta por mulheres, sendo 90% delas mulheres pretas ou pardas, sempre ‘escolhidas’ para as atividades mais precárias”. (https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/terceirizacao-tem-cara-e-preta-e-feminina/)
(6) Também no setor bancário esta desigualdade se pronuncia: “Os bancários negros (que incluem pretos e pardos) ganham 24% menos do que os colegas brancos. Os empregados pretos de instituições financeiras têm rendimento médio 27,3% menor do que o rendimento médio dos brancos. E as mulheres pretas sofrem ainda mais discriminação, ganhando 59% menos que a média dos homens brancos”. (https://spbancarios.com.br/11/2022/diferenca-salarial-entre-brancos-e-negros-chega-59-nos-bancos)
(7) Mesmo no plano daqueles que não ostentam a condição formal de empregados, capturados pelo discurso do empreendedorismo, as diferenças raciais se mantém, isto porque “enquanto os empreendedores negros tinham renda média mensal de R$ 2.079 no segundo trimestre de 2022, os brancos ganhavam R$ 3.040. Ou seja: o rendimento de empreendedores negros é em média 32% inferior ao de empreendedores brancos”. Considerando o gênero, “as mulheres negras têm o mais baixo rendimento entre os empreendedores, de R$ 1.852, comparado a R$ 2.188 para homens negros, R$ 2.706 para mulheres brancas e R$ 3.231 para homens brancos, mostra o levantamento do Sebrae”. (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64477594)
(8) Também no setor público esta diferenciação odiosa se mantém, tanto que somente no dia 21 de março deste ano, o Estado brasileiro deu o primeiro passo no sentido de sua minoração, fixando uma reserva mínima de 30% dos cargos de confiança para ocupação por pessoas negras (https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/03/governo-determina-reserva-de-30-de-cargos-de-confianca-para-pessoas-negras).
(9) Como resultado, no quarto trimestre de 2020, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelava que “os negros representam 72,9% dos desocupados do país, de um total de 13,9 milhões de pessoas nessa situação” (https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/trabalho-e-formacao/2021/03/4913182-pretos-no-topo-desemprego-recorde-entre-negros-e-resultado-de-racismo.html).
O racismo na base do trabalho em condições análogas à de escravidão
E por qual razão trazer todos esses dados neste instante? Para demonstrar que o objeto do nosso debate aqui hoje, a regulamentação do art. 243 da Constituição Federal, por meio de uma nova lei, não é meramente uma questão de técnica legislativa e sim uma questão racial.
Afinal, de forma estruturalmente ligada a todos os dados antes apresentados, a realidade é que os “negros são 84% dos resgatados em trabalho análogo à escravidão em 2022”. (https://www.brasildefato.com.br/2022/05/13/negros-e-pardos-sao-84-dos-resgatados-em-trabalho-analogo-a-escravidao-em-2022#:~:text=Negros%20s%C3%A3o%2084%25%20dos%20resgatados%20em%20trabalho%20an%C3%A1logo%20%C3%A0%20escravid%C3%A3o%20em%202022).
E deve ser destacado, também, que o trabalho escravo inicia com o trabalho infantil, mantendo-se entre ambos estreita relação, e, obviamente, o maior número de crianças (desde os 5 anos de idade) submetidas a esta violência são negras (https://livredetrabalhoinfantil.org.br/especiais/trabalho-infantil-sp/reportagens/trabalho-infantil-negro-e-maior-por-heranca-da-escravidao/).
Isto, primeiro, nos obriga a lembrar que o Brasil foi o último país do mundo a abolir, juridicamente, a escravidão, sem ter realizado qualquer política pública de ressarcimento e inclusão dos(as) ex-escravizados(as) e, segundo, nos impõe uma reflexão sobre os reais motivos pelos quais, até hoje, em 2023, estamos, em uma audiência pública no Senado Federal, “debatendo” uma regulação que possa punir pessoas e entidades pelo cometimento do ato, já definido como crime, de explorar trabalhadores e trabalhadoras em condições análogas à da escravidão.
A propósito, cumpre recordar que a fiscalização do trabalho “escravo” no meio rural somente se expressou institucionalmente como tal a partir de 1994, por meio da edição da Instrução Normativa no. 24, e expandiu em 1995, com a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho, sendo que isto se deu apenas porque, em 1993, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgou um relatório que trazia dados relativos a 8.986 denúncias de trabalho escravo no Brasil. A presença mais ostensiva e organizada do Estado no meio rural não foi muito bem recebida e isso motivou, em 28 de janeiro de 2004, o assassinato de três auditores-fiscais e de um motorista, servidor do Ministério do Trabalho, em Unaí/MG.
E desde então se tem tentado fixar legalmente punições para quem pratica este ato criminoso e odioso. Não foram poucos, é verdade, os esforços para se tentar fixar esses efeitos jurídicos.
A denominada PEC do trabalho escravo, prevendo o confisco das terras onde se verificasse o trabalho nestas condições, foi proposta pela primeira vez em 1995, na Câmara dos Deputados, chegando ao Senado, em 1997. Diante das inúmeras resistências, só se chegou à aprovação final da PEC em 2014, gerando a Emenda Constitucional no. 81, de 5 de junho de 2014, que conferiu a atual redação do art. 243 da Constituição Federal, com o seguinte teor: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”.
Em meio a este embate, em 2003, já se tinha aprovado a Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que alterou o art. 149 do Código Penal: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”.
Não nos faltam leis
Os artigos 243 da Constituição Federal e 149 do Código Penal não deixam margens a dúvidas quanto ao seu conteúdo e não requerem qualquer tipo de regulamentação para terem efetividade, ainda mais quando se lembra que tais dispositivos estão plenamente amparados por diversos outros dispositivos constitucionais e legais.
(i) Na Constituição Federal: (a) “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (….)III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
(b) “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
(c) “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”;
(d) “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:” (artigo que, cumpre perceber, está inserido no Título ii – dos direitos e garantias fundamentais)
(e) “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: (….) III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
(f) “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (….) III – função social da propriedade”;
(2) No Código Civil:
(a) “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
(b) “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
(c) “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
(d) “Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.”
(3) No Código de Processo Civil:
(a)“Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
(b) “Art. 824. A execução por quantia certa realiza-se pela expropriação de bens do executado, ressalvadas as execuções especiais.”
4) No Código Penal:
(a) “Art. 197 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça: I – a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência;
II – a abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.”
(b) “Art. 198 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.”
(c) “Art. 199 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a participar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação profissional: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.”
(d) “Art. 203 – Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho: Pena – detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998). § 1º Na mesma pena incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998) I – obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida; (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998).
II – impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998). § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998).
(e) “Art. 207 – Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena – detenção de um a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998). § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998). § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998)”.
(5) No Código de Processo Penal:
(a) “Art. 124. Os instrumentos do crime, cuja perda em favor da União for decretada, e as coisas confiscadas, de acordo com o disposto no art. 100 do Código Penal, serão inutilizados ou recolhidos a museu criminal, se houver interesse na sua conservação.”
(b) “Art. 91 – São efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; (b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.”
Destaque-se, ainda, que, conforme as lições do jurista civilista Caio Mário da Silva Pereira, no contexto da ordem jurídica abarcada pelos Direitos Humanos, a proteção jurídica aos direitos fundamentais e de personalidade não depende de delimitações fixadas em lei. A proteção dos direitos à vida, à dignidade e à integridade física e moral, dos quais todas as pessoas, sem distinção, são titulares, não depende de uma lei que assim consagre.
A persistência e até aumento da violência
Apesar de todo este conjunto normativo, contam-se nos dedos as condenações penais pelo crime previsto no art. 149 do CP e quase nunca a eventual (e raríssima) condenação resulta em efetiva prisão, já que, como destaca Sakamoto, as penas “tendem a ser baixas, gerando o cumprimento da pena em regime que não o fechado ou mesmo a substituição de reclusão pela pena restritiva de direitos” (https://www.conjur.com.br/2020-jan-22/aplicacao-rara-artigo-juiz-condena-prisao-trabalho-escravo).
E, apesar da intensa atuação do Ministério do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e também da Justiça do Trabalho, promovendo resgates e condenações ao pagamento dos direitos trabalhistas sonegados e indenizações, o trabalho em condições análogas à da escravidão só tem aumentado nos últimos anos, isto também por influência da aprovação da “reforma” trabalhista, com ampliação da terceirização, em 2017, que, além de rebaixar a proteção jurídica trabalhista e impor obstáculos para o acesso à justiça, ainda conferiu aos empregadores o sentimento de impunidade e de poder ilimitado, o que ainda se reforçou com as políticas e os valores explicitados pelo governo Bolsonaro, que, inclusive, iniciou sua gestão extinguindo o Ministério do Trabalho.
Nunca é demais lembrar que a terceirização está intimamente ligada ao trabalho escravo, pois a precarização das condições de trabalho e o reforço da impunidade são as razões que movem aqueles que se valem da intermediação promovida. E a estratégia, aliás, tem dado certo, tanto que, apesar de várias grandes empresas já terem sido relacionadas ao trabalho escravo nenhuma delas consta da “lista suja”, com 174 nomes, organizada pelo Ministério do Trabalho, explicitando-se apenas pessoas físicas e pessoas jurídicas de pequeno e médio porte, muitas delas, certamente, intermediadoras de mão de obra (https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/areas-de-atuacao/cadastro_de_empregadores.pdf).
O resultado é que, em 2022, 2.575 pessoas foram encontradas em situação análoga à de escravizado, sendo este o “maior número desde os 2.808 trabalhadores de 2013, segundo informações do Ministério do Trabalho e Emprego”. E com isso, o Brasil atingiu “60.251 trabalhadores resgatados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995.” (https://reporterbrasil.org.br/2023/01/com-2-500-vitimas-em-2022-brasil-chega-a-60-mil-resgatados-da-escravidao/)
E não é que o Estado não seja efetivo quando quer, para a proteção da população branca, sobretudo na condição de consumidora: “Vigilância Sanitária interditou 40 estabelecimentos no primeiro quadrimestre” – Brasília, 06/05/2021 (https://www.saude.df.gov.br/web/guest/w/vigilancia-sanitaria-interditou-40-estabelecimentos-no-primeiro-quadrimestre).
Em 27 de março deste ano, ao se constatar que matéria-prima utilizada na fabricação de alguns produtos, a Anvisa suspendeu a fabricação, a comercialização, a distribuição e o uso de todos os alimentos da marca Fugini, produzidos pela empresa Fugini Alimentos Ltda. (CNPJ 00.588.458/0001-03) na sua fábrica localizada em Monte Alto (SP).
No entanto, não se tem notícia de interdição de estabelecimento onde se constatou a exploração de trabalho em condições análogas à da escravidão ou proibição de comercialização das mercadorias ou matérias-primas produzidas com este tipo de trabalho. Os vinhos produzidos com trabalho escravo continuaram sendo comercializados e consumidos livremente e as vinícolas atuando.
O que nos falta
Tudo isto somado, a única conclusão que se pode chegar é que a plena erradicação do trabalho escravo (que vai muito além do “combate”) não é um problema de falta de leis.
A aprovação de uma lei que busque superar as resistências à aplicação do art. 243 da Constituição Federal, como a que se anuncia no PL 5.970/2019, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues, pode ser importante, mas está longe de ser o suficiente, até porque, como já se pode razoavelmente prever, sem uma verdadeira vontade, disseminada entre todas as pessoas e instituições proveniente de plena indignação com esta situação, novos argumentos, supostamente jurídicos, para não aplicar a lei, serão produzidos e acolhidos.
O próprio Projeto de Lei em questão, ao tratar da expropriação, parece querer garantir mais o direito de propriedade do que ressarcir o dano e o sofrimento experimentado pelos(as) escravizados(as), de tal modo que uma expropriação de terras pelo cometimento deste crime, seguindo todos os trâmites propostos, que não fazem menção alguma a medidas antecipatórias de cunho preventivo e até punitivo, só viria a se concretizar cinco (para ser bem otimista) ou dez anos, após a vigência da lei.
Fato é que sem um autêntico compromisso social e institucional, continuaremos a não aplicar com o rigor necessário todos efeitos jurídicos aplicáveis a este hediondo crime e, assim, tomando mais as dores do “escravista” do que a dos(as) escravizados(as).
Neste sentido, é importante, sobretudo, perceber que as indenizações impostas às empresas cuja produção está atrelada ao trabalho em condições análogas à escravidão têm sido extremamente módicas e acabam preservando incólume os direitos de propriedade e de empreender, enquanto o direito à vida violado fica em segundo plano, naturalizando-se, de certo modo, a escravização de corpos negros.
Sobre restrições comerciais, com recolhimento das mercadorias produzidas nestas condições, e da interrupção da produção nem se ouve falar. Além disso, muitas das grandes empresas flagradas com uma produção à base de trabalho escravo são financiadas, a juros subsidiados, pelo Estado e mesmo após explicitado o fato criminoso continuam recebendo tal favorecimento. (https://www.brasil247.com/regionais/sul/vinicolas-gauchas-ligadas-a-trabalho-escravo-tem-r-66-milhoes-em-emprestimos-ativos-no-bndes)
O que nos falta, pois, é algo que vai muito além da elaboração e aprovação de leis (as quais não deixam de ser importante, obviamente).
A resistência histórica e institucionalizada à imposição de efeitos jurídicos efetivamente rigorosos e mais eficazes contra o escravista e as empresas que se valem econômica e estruturalmente deste crime, atuando, pois, no mínimo, como co-autoras, nos remete à expressão cunhada pela doutora em psicologia Maria Aparecida da Silva Bento, Cida Bento, no sentido de que se estabeleceu na sociedade brasileira um “pacto narcísico da branquitude”. Fazendo referência à figura mítica de Narciso, famoso por ser apaixonado pela representação da própria imagem, a expressão revela o compromisso das pessoas brancas em manter a estrutura de opressão e de desigualdade racial, porque assim podem continuar se autopreservando e se privilegiando.
Precisamos, pois, refletir se o que nos move – a esmagadora maioria branca nos centros de poder (o que é, por si, uma comprovação do escravismo histórico e estrutural) – é efetivamente um problema de ordem técnico-jurídica.
Tenta-se justificar a demora para se promover uma concreta expropriação de terras e de levar à prisão um escravista pelos cuidados que se deve ter para evitar excessos e prevenir erros judiciais. No entanto, não nos incomodam os excessos, os erros judiciais, as discriminações e as opressões que proliferam contra a população negra, assim como o fato, internacionalmente reconhecido, de que o Brasil continua sendo marcado pela chaga do trabalho escravo.
Já estamos extremamente atrasados no cumprimento dessa obrigação e é, portanto, necessário e urgente não tergiversar mais. Com ou sem regulamentação específica, deve ser prioridade absoluta, verdadeiramente assumida, a pauta de erradicar de nosso cotidiano as práticas, cometidas em nome da eficiência econômica, da desconsideração das vidas negras e da descartabilidade da trabalhadora e do trabalhador.
E, para tanto, passo fundamental é o de conferir efetividade a outra lei (também já existente), que é a Lei nº 10.639/2003, que determina a inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Para romper com o ideário racista, colonial e escravista sem que é muito importante que essa legislação seja realmente aplicada.
Por fim, tratando de forma mais específica do Projeto de Lei no. 5.790/2019, é fundamental fixar a competência da Justiça do Trabalho para declarar e impor os efeitos jurídicos ao trabalho em condições análogas à de escravo, incluindo medidas preventivas, inibitórias e expropriatórias, valendo sempre lembrar que às pessoas escravizadas não se respeitaram, no caso concreto e historicamente, direitos fundamentais e não se garantiu o trânsito em julgado.
Cumpre também advertir para o fato de que neste assunto, como em qualquer outro ligado aos Direitos Humanos e aos Direitos Sociais, não é possível retroceder. Desse modo, nenhum dispositivo legal, sob o pretexto de tornar mais explícita a configuração do trabalho escravo moderno ou promover “segurança jurídica” aos negócios (como se diz), pode reduzir o patamar de proteção jurídica já fixado nas normas acima referidas, ou ir ao ponto de tornar praticamente impossível a configuração do crime e a produção de efeitos efetivamente proporcionais à gravidade do fato, até porque esta forma de regulação (ambígua e ineficaz) acaba por legitimar e, com isto, também incentivar, a exploração do trabalho em condições que aviltam a condição humana de quem, por necessidade, depende do trabalho para sobreviver e que se apresenta, tragicamente, cada vez de forma mais numerosa em nossa realidade, sendo certo que este tem sido o destino reservado à população negra.[1]
Texto-base da fala proferida na audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, em 29/03/23.
Nota
[1] Agradeço à Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal e, em especial, ao Senador Paulo Paim, pelo convite para participar deste importante evento.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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