Construindo polêmicas
Considerações sobre o debate acerca da cientificidade da psicanálise
A vantagem de entrar em uma polêmica quando ela parece estar acabando é poder avaliar seu saldo. E no mais das vezes, quando ela é uma polêmica intelectual feita a partir do ritmo, das frases de impacto e das imagens próprias à mídia, seu saldo é muito próximo do zero. Talvez seja esse o caso da última versão nacional do já centenário debate sobre a cientificidade da psicanálise, impulsionada por uma pesquisadora da área de biológicas, a sra. Natalia Pasternak, e seu marido jornalista, o sr. Carlos Orsi.
E é bom lembrar do caráter centenário desse debate, porque teríamos o direito de esperar que sua versão nacional pudesse trazer alguma novidade, algum argumento astuto, alguma pesquisa nova a uma discussão sobre o destino de uma prática clínica que, para o bem ou para o mal, moldou a sensibilidade ocidental a respeito de questões tão centrais como: família, sexualidade, corporeidade, memória, desejos e seus conflitos. Pois é materialmente impossível descrever o século XX, suas aspirações, tensões e transformações, sem entendermos como nossa cultura é, em larga medida, uma “cultura psicanalítica”. Isso significa: uma cultura forjada pela circulação da psicanálise em consultórios, hospitais, escolas, filmes, literatura, mas também em periferias, lutas sociais, entre outros.
Entender tal força de influência de uma prática clínica exige um trabalho de sociologia das ideias que muito poderia acrescentar ao debate. Trabalho que poderia trazer elementos para responder, de forma mais objetiva, a questões como: por que a psicanálise se inseriu de forma tão orgânica na história das sociedades ocidentais? Foi porque Freud era um “ótimo publicitário”, um “astuto prestidigitador”? Ou foi porque a psicanálise efetivamente diz algo de relevante a respeito da estrutura de nossa subjetividade e cultura?
Olavo tinha razão
Antes de abordar esse ponto, seria o caso de fazer uma contextualização histórica. Livros contra a psicanálise contam-se aos montes há décadas. Em 2011, por exemplo, o Brasil recebeu a tradução de um deles, o então famoso Livro negro da psicanálise. Quem o reler encontrará praticamente todos os argumentos e críticas que animam o Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. O primeiro deve, inclusive, ser mais barato, pois o seu destino foram principalmente os sebos de ocasião. Pois quando o Livro negro foi traduzido, sua recepção foi morna, como quem ouve a mesma piada contada várias vezes.
O que aconteceu então com o Brasil para que a mesma discussão aparecesse agora de forma mais explosiva, sem que nenhum elemento novo ou dado relevante fosse acrescentado ao debate? É possível creditar parte do fenômeno à desorientação produzida pela pandemia. Diante de um governo que praticou uma sequência sistemática de crimes contra a saúde pública, não faltaram aqueles que se viram no meio de uma verdadeira reedição da guerra das luzes contra a superstição, da ciência contra o obscurantismo, da civilização contra a barbárie. Pesquisadores em ciências biológicas e exatas foram elevados à condição de guardiães da razão aos quais a política deveria se submeter, se não quisesse abraçar as vias do populismo ou de algum “irracionalismo” em política.
Só que agora talvez seja o momento de dizer que, nesse caso, o medo fez o pensamento crítico regredir duas casas. Primeiro, porque nunca estivemos em um combate da ciência, das luzes, da civilização, da razão, da bondade etc. contra as forças da regressão e do atraso. Seria bom começar por lembrar o quanto há de sombra nas luzes, o quanto há de barbárie na civilização, o quanto há de obscurantismo no positivismo científico. Um pouco de dialética do esclarecimento faz bem nesses momentos.
A luta contra o fascismo nacional não foi nem é uma luta contra forças obscurantistas, um termo mais apropriado aos debates teológicos do que às análises políticas. Analiticamente “obscurantismo” não diz nada, até porque, se me permitem, sempre se é o “obscurantista” de alguém. O que não poderia ser diferente, já que o conceito de racionalidade é um conceito histórico e em disputa, a ciência não é um espelho da natureza, e não há nada de “relativista” nessa posição. Não sendo uma luta contra o “obscurantismo”, nossa guerra contra o fascismo é uma luta política (sublinho, uma luta política) contra uma junção devastadora de ultraliberalismo econômico, indiferença social, violência estatal e organização da sociedade a partir da generalização da lógica de milícias.
Dito isto, sugiro que aqueles que gostariam de fazer debates de divulgação científica para o grande público não esquecessem de outro biólogo, o sr. George-Louis Leclerc, mais conhecido como conde de Buffon, quem nos lembrava que “o estilo é o próprio homem”. Maneira de dizer que a rudeza do estilo é expressão da simplicidade do conteúdo do pensamento. Ninguém faz discussão séria sobre nada com o tom bonachão do monopolista do bom senso que olha para as ditas “verborragia pseudocientíficas” e exclama, como se estivesse fazendo uma repreensão às impertinências de um adolescente: “Que bobagem!”. Isso deveria ser deixado com o finado Olavo de Carvalho e seus seguidores.
Tanto é assim que falta simplesmente tudo, do ponto de vista de uma reflexão epistemológica séria, nessa versão mais recente do debate nacional sobre a cientificidade da psicanálise. Há uma longa bibliografia recente, tanto nacional quanto internacional, de reflexões epistemológicas sobre a psicanálise e seus regimes de objetividade. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito. Há uma história de respostas aos argumentos clássicos contra a psicanálise. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito.
Não vou fazer aqui o papel do professor de teoria das ciências humanas e passar a lista exaustiva e ausente, mas o mínimo que se pode dizer é que um debate sério sobre a objetividade da psicanálise levaria em conta, por exemplo, as discussões daqueles que pensaram nos últimos anos psicanálise e neurociências (como Mark Solms e as reflexões do Nobel de medicina Erick Kandel).
Ele poderia, ainda, fazer pesquisas com pacientes que passaram pela psicanálise e sentiram mudanças importantes em suas vidas, fazer a mesma pesquisa com pacientes que não perceberam tais mudanças e avaliar os resultados. Seria interessante fazer tais pesquisas no Brasil dos últimos anos. Tudo isso seriam contribuições significativas para o debate, mas nada foi feito, o que nos leva àquela sensação tão bem descrita por Shakespeare: Muito barulho por nada… mais uma vez.
Sofrimento e autorreflexão
Digo “mais uma vez” porque o debate sobre a psicanálise como pseudociência sempre foi muito pobre intelectualmente, já que foi feito em larga medida por quem se via mais na posição de esconjurar um embuste primário do que de efetivamente analisar uma prática clínica e uma crítica da cultura complexa que merece, ao menos, paciência nas análises. Por exemplo, uma dessas figuras, cuja crítica retorna pela enésima vez nas páginas do livro que analisamos, é, não poderia deixar de ser, Karl Popper.
Afinal, Popper foi responsável pela ideia de que a psicanálise não poderia ser ciência, já que as interpretações de um analista não são enunciados que podem ser verificados. Se o paciente aceita tais interpretações, o psicanalista se sente confirmado; se ele recusa, o analista pode sempre alegar resistência do analisando e continuar sentindo-se confirmado.
No entanto, não é difícil imaginar que a crítica é pedestre. Interpretações psicanalíticas podem, sim, ser incorretas. O critério de correção em uma análise está ligado à produção de novas associações. Se o analisando ou analisanda simplesmente nada faz com a interpretação, ela é incorreta; se ele ou ela se abre a novas associações, ela é correta. Claro que o critério não está em uma versão correspondencialista de verdade, ou seja, na ideia de que um enunciado verdadeiro corresponderia a algo em um estado de coisas dotado de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O critério de verdade é pragmático e consequencialista.
Isto não é estranho para uma prática clínica desmedicalizada, ou seja, que não compreende o sofrimento psíquico como expressão causal de marcadores biológicos, como se fôssemos obrigados a assumir uma relação estritamente biunívoca entre estado cerebral e estado mental, ou como se estados mentais fossem apenas maneiras “metafóricas” de falarmos sobre estados cerebrais. Por ser desmedicalizada, a psicanálise opera por uma forma muito específica e singular de reconhecimento. Isso não poderia ser diferente porque, quando estamos a falar em sofrimento psíquico, a maneira com que um paciente se autocompreende interfere em seu quadro clínico.
Levar um depressivo a compreender-se de outra forma tem, sim, efeitos em seu quadro clínico. Mas, é claro que isso não se dá por simples “redescrição simbólica”. Nossas formas de autocompreensão estão enraizadas em experiências sociais e históricas, em violências reiteradas, na forma de circulação de discursos e práticas, em nomeações que têm o peso do aparentemente intransponível. Tais autocompreensões se organizam através de nossos usos de linguagem, de nossas disposições de ação, da história de nosso desejo, que é sempre uma história social composta de mortos e vivos, de disposições conscientes e inconsciente.
A modificação desse quadro não se dá com incitações empresariais à “vontade de mudar”. Ela se dá através do aprofundamento dos conflitos e da crítica, ela se depara com várias formas de angústias e de suas defesas, ela faz queimar narrativas que tínhamos de nós mesmos, não teme a desorientação que tal combustão produz, ela deve lidar com repetições que irão modificar-se a despeito de nossa vontade. É disso que uma análise é composta.
O lugar das ciências humanas
Aqui vale uma consideração de ordem geral a respeito do que chamamos de “ciências humanas”. Podemos dizer que a diferença ontológica fundamental entre as ciências humanas e as ditas ciências exatas é a autorreflexividade de seus objetos. Você pode pegar uma pedra e explicar a ela, em várias línguas, a lei da gravidade. Ela vai se comportar da mesma forma. O mesmo não acontece com seres humanas e suas produções sociais. Eles integram as explicações que fazemos sobre seus comportamentos, seus sofrimentos, seus afetos. Tais explicações produzem novos efeitos. Ou seja, a explicação não é apenas uma descrição. Ela tem força performativa.
Isso explica porque toda e qualquer ciência humana é indissociável de modalidades de intervenção. Um sociólogo que descreve a sociedade como uma totalidade antagônica marcada por lutas de classe necessariamente intervém no seu objeto, porque se a sociedade se autocompreender dessa maneira, ela produzirá efeitos que não produzia anteriormente. Ter essa consciência é algo muito mais honesto do que se esconder sob o manto de qualquer neutralidade axiológica que seja.
As ciências humanas não são neutras em relação a valores, pois suas explicações e descrições serão reflexivamente integradas pelos próprios objetos, redimensionando seus horizontes de ação no presente, no passado e no futuro. Mais honesto é, então, entender o vínculo indissolúvel entre descrição e valor no campo das ciências humanas, perguntando-se continuamente sobre a partir de que valores pesquisadoras e pesquisadores das ciências humanas intervêm no corpo social e em seus sujeitos.
Nesse sentido, a psicanálise é efetivamente uma ciência humana modelo, e por isso ela é tão atacada. Pois ela tem consciência plena do caráter performativo de suas explicações e intervenções. Isso explica porque o eixo de sua racionalidade clínica encontra-se no que chamamos de “manejo da transferência”. Uma maneira de explicá-lo consiste em lembrar que as relações de autoridade nos fazem sofrer.
Elas determinam obrigações, normas, leis, modos de ser, disposições de conduta, valores e sentimentos morais. Eu me constituo socialmente internalizando princípios e figuras de autoridade. O médico, o discurso médico, o psiquiatra são também autoridades que têm força constituinte de sujeitos e subjetividades. Nossa vida psíquica é uma relação intersubjetiva constante com as marcas dessas figuras, com suas internalizações, suas idealizações. Por isso, há sempre muitos outros em um Eu.
Um psicanalista é alguém que entende que modificações na autocompreensão de uma paciente ou um paciente são indissociáveis da capacidade de modificar tais relações de autoridade constituintes e sempre reiteradas. E a principal delas acaba se tornando a relação com o próprio analista, ou seja, com alguém que procurei por supor um saber sobre meu desejo, alguém que por uma série de razões entrou em uma cadeia de figuras e representações constituintes de saber.
Por isso, a experiência que a psicanálise procura pôr em prática é uma experiência sobre o caráter constituinte de relações de saber e poder que estão presentes em várias estruturas sociais, até porque a transferência não é um fenômeno exclusivamente clínico. Ela está presente em todo lugar no qual há relação constituinte de autoridade. O psicanalista age sobre essas relações, procura dar corpo a elas em situação clínica a fim de permitir que elas caiam e desamparem. Ele irá então lidar com tal desamparo, na crença de que ele será um caminho capaz de produzir emancipação e fazer dos sintomas um campo de produção de singularidades.
O que não se diz em uma polêmica
Por fim, seria o caso de lembrar que uma polêmica é sempre composta daquilo que ela diz e daquilo que ela não diz. Nesse sentido, é sintomático que em um debate sobre práticas clínicas de sofrimento psíquico nada seja dito sobre as verdadeiras aberrações epistêmicas que encontramos no quadro psiquiátrico atual. Digo “aberrações” porque vemos uma ciência que demonstrou um desenvolvimento absolutamente anômalo nos últimos 60 anos. Por exemplo, quando foi publicado em sua primeira versão, em 1952, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) continha 128 categorias para a descrição de modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, em sua última versão, ele apresentava 541 categorias. Ou seja, em cerca de 60 anos, 413 novas categorias foram “descobertas”. Não há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tão anômalo e impressionante desde o fim do degelo glacial.
Bem, seria interessante se perguntar por que isso está a ocorrer agora. Estaríamos a passar, neste exato momento, por uma verdadeira revolução científica que teria nos permitido enxergar aquilo que não conseguíamos enxergar antes? Como se, durante décadas, não tivéssemos percebido que havia entre nós pessoas sofrendo de “transtorno de acumulação” (comportamento caracterizado por excesso de aquisição de itens e incapacidade de descartá-los) e “transtorno desafiador opositivo” (comportamento excessivo de quem está geralmente raivoso, irritado ou questionando figuras de autoridade)? Ou há algum outro a ocorrer e que diz respeito à extensão das tecnologias de intervenção nos corpos e desejos através da extensão dos procedimentos de patologização?
Alguns querem nos fazer acreditar que estamos em direção à clarificação inconteste de marcadores biológicos para as estruturas do sofrimento psíquico. Mas poderíamos nos perguntar, apenas para ficar em um exemplo pedagógico, quais são então os marcadores biológicos para o transtorno de personalidade histriônica? Seus critérios diagnósticos são, entre outros, “desconforto em situações em que ele ou ela não é o centro das atenções”, “uso constante da aparência física para chamar a atenção para si”, “demonstração de autodramatização, teatralidade e expressão exagerada de emoções”.
Tais critérios devem ser avaliados como expressão de marcadores biológicos específicos ou como comportamentos de recusa, inconsciente ou não, a padrões de socialização que, por sinal, são bastante imprecisos? Pois se estamos a falar em “expressão exagerada de emoções”, havemos de perguntar onde estaria a definição de um “padrão adequado” de emoções, a não ser na subjetividade do médico ou no manual de boas maneiras de nossa avó.
Na verdade, isso demonstra a profunda insegurança epistêmica que atravessa aquilo que a gritaria sobre “pseudociências” faz questão de esquecer de discutir. Seria o caso de refletir com vagar sobre as razões que levaram nossas sociedades a modificar de forma tão dramática sua maneira de intervir através da distinção entre saúde e doença, por que ela estendeu tanto suas patologias e quais consequências podemos esperar disto.
Seria o caso, ainda, de lembrar dos problemas profundos que a guinada farmacológica da psiquiatria contemporânea produziu. Por exemplo, estudos desenvolvidos por Michael Hengartner e Martin Plöderl publicados na revista Psychotherapy and Psychosomatics defendem que adultos começando tratamento com antidepressivos para tratar a depressão têm 2,5 chances a mais de cometer suicídio do que aqueles que se servem de placebos. Sim, você leu corretamente, é isso mesmo. Se os resultados de estudos dessa natureza forem reiterados, bem, temos um problema sério a resolver. Uma boa discussão epistemológica não seria indiferente a tais questões e dinâmicas. Mas, mais uma vez, ela nos falta.
(Publicado originalmente na revista Cult.)
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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