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    Danos sociais à vista: ameaçado o direito de greve no serviço público

    Cercear o direito à greve dos servidores, como ensaia o projeto que está tramitando no Senado, vai de encontro a qualquer preocupação efetiva com os interesses da população

    Cercear o direito à greve dos servidores, como ensaia o projeto que está tramitando no Senado, vai de encontro a qualquer preocupação efetiva com os interesses da população (Foto: Roberto Bitencourt da Silva)

    Há poucos dias foi aprovado relatório do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que visa regulamentar o direito de greve dos servidores públicos. A aprovação foi dada pela comissão mista de Consolidação das Leis e Regulamentação da Constituição no Senado (leia mais). O relatório apoia-se em projeto apresentado, em 2011, pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e destaca a participação das centrais e demais entidades sindicais nas deliberações.

    Levando em conta os princípios políticos mobilizados e as normas estabelecidas no documento parlamentar, é difícil acreditar que as organizações dos trabalhadores tiveram alguma ingerência decisiva na redação final. Isso por que, em vez de uma regulamentação, em diversos sentidos o texto anula o direito à greve dos servidores. Ainda assim, "Exame" – publicação que consiste em porta-voz do universo empresarial – teve a capacidade de definir o relatório como "brando" (leia aqui).

    De acordo com o cientista social Samuel Braun, eis algumas regras estabelecidas: "os serviços considerados essenciais terão que manter 60% do quadro trabalhando"; "os demais servidores" serão "obrigados a impedir 40% a aderir à greve, independente de não serem serviços essenciais"; "a comunicação da deflagração de greve deve ser feita com 10 dias de antecedência (hoje em média são três)" (leia aqui). Acrescente-se ainda a suspensão do pagamento da remuneração correspondente aos dias não trabalhados, como "efeito imediato da greve", conforme art. 13 do relatório.

    Não há qualquer contrapartida exigida ao Poder Público. Uma norma simples, como um período anual fixo para a revisão salarial (data-base), sequer é mencionada. Essa norma guardaria o potencial de reduzir ao menos as tensões por correções inflacionárias dos salários. Em todo caso, princípios que norteiam a percepção sobre o Estado, destacados na introdução do relatório do Senado, ordenam o conjunto de regras e esclarecem bastante as limitações do texto parlamentar.

    A análise introdutória frisa especificidades nas relações entre os servidores e o agente empregatício, o Estado, atenuando as divergências entre as partes. Segundo o relatório parlamentar, o conflito capital/trabalho caracteriza exclusivamente o setor privado da economia, estando ausente das relações de trabalho no setor público. Desse modo, permeia todo o projeto a ideia de uma razoável harmonia de interesses em meio ao Poder Público.

    Em diferentes oportunidades o projeto dá ênfase ao destinatário dos serviços públicos, ou seja, a população. O Legislador parece muito preocupado com a população. Mera aparência. Deixando um pouco de lado a concepção marxista do Estado – em sua versão original do século XIX –, como um "comitê gestor da burguesia", integralmente confundido com o capital, não é desrazoável, entretanto, sublinhar que a avaliação feita pelo relatório é idílica. Um Estado a serviço da sociedade, que apenas zelaria pelo bem comum. Quem dera o Estado assim fosse.

    Acompanhando reflexão desenvolvida por Pierre Bourdieu, se pode entender o Estado capitalista no mundo contemporâneo como um conjunto de instituições marcadas por controvérsias e tensões. Como sugere o sociólogo, os "braços direito e esquerdo do Estado" brigam pela alocação de recursos públicos, com disputas respectivas entre as áreas econômico-financeiras, de um lado, e sociais/assistenciais, de outro. Sob o influxo da hegemonia neoliberal e dos poderosos interesses rentistas e das corporações multinacionais, o "braço direito" do Estado é muito mais bem atendido há décadas. Isso proporciona motivos suficientes para a criação de querelas entre servidores e poderes do Estado, sobretudo nas desvalorizadas áreas da saúde e da educação.

    A realidade brasileira apresenta um problema adicional: a intensa privatização dos recursos públicos. Os capitalistas tupiniquins adoram se apoiar no Estado, extrair o que for possível do erário público para alavancar negócios e maximizar lucros. "Livre iniciativa" é conversa pra boi dormir, papo de quem desconhece o funcionamento do capitalismo, principalmente no Brasil.

    Por meio de obras públicas, privatizações e terceirizações, são inúmeras as empresas que vivem da captura dos fundos públicos: construtoras; empresas particulares prestadoras de serviços públicos; fornecedores de uma miríade de bens e serviços às distintas esferas do Estado. Para ampliar as fatias orçamentárias abocanhadas por tais empresas, como também beneficiar corporações com isenções fiscais – onerando as receitas do Poder Público –, usualmente são congelados os salários dos servidores e sucateados os serviços públicos. Duas conhecidas medidas de adaptação dos orçamentos aos interesses empresariais. Interesses tidos como prioritários pela maioria dos parlamentares e dos chefes do Poder Executivo no país.

    Por outro lado, o clientelismo campeia na administração pública. A utilização de empregos temporários nos órgãos públicos como moeda de troca eleitoral, especialmente nas órbitas municipais e estaduais, é prática comum entre parlamentares e agentes de governo. Contratos temporários que também reduzem direitos trabalhistas. Fenômenos que amesquinham os serviços oferecidos à população e causam expressiva insatisfação entre os servidores públicos.

    Quem, senão o servidor público, melhor pode zelar pelo atendimento prestado à população e denunciar as mazelas que ocorrem nas instituições do Estado? Os conglomerados da mídia? Estes gostam de se auto-representar como guardiões da coisa pública. Piada de mau gosto, pois se apropriam do erário via publicidade e, muito pior, defendem a rapinagem empresarial do mesmo. Com isso, contribuem para reduzir os recursos destinados à satisfação das necessidades públicas.

    Cercear o direito à greve dos servidores, como ensaia o projeto que está tramitando no Senado, vai de encontro a qualquer preocupação efetiva com os interesses da população. Fará, isso sim, a alegria de muitos políticos, partidos e empresas. O direito à greve – além de ser um histórico direito dos trabalhadores – é um importante instrumento de denúncia dos problemas no Poder Público. Nesse sentido, é vital que a sociedade e, em especial, as entidades dos trabalhadores do serviço público, nas diferentes esferas administrativas, fiquem atentas e pressionem o Congresso Nacional para que tão danoso projeto não seja aprovado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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