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    Flávio Ricardo Vassoler

    Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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    Deixa que os mortos enterrem seus mortos?

    Não precisamos ler Sigmund Freud para sabermos que a pulsão de morte, Tânatos, é um vampiro voraz a sugar a jugular de Eros, a pulsão de vida

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    Pergunta: O que é o ser humano?

    Resposta: Um paradoxo bípede.

    Potencialmente racional, o homo sapiens caminha, ereto, com o vestígio da cauda entre as nádegas. (O cóccix e a culpa.)

    Consta que as orcas, para além de matarem suas presas em busca da sobrevivência, chegam a torturá-las. Mas, ora, nenhum animal alcança os requintes de crueldade (e a ambivalência) do animal humano. 

    O sociopata Adolf Hitler, fascista de direita, foi o responsável pela morte industrial de milhões de seres humanos nos campos de concentração nazistas espraiados como metástases (rematados cemitérios dos vivos) pela Europa Oriental. 

    Quem já ouviu os latidos de Hitler ao discursar — peço desculpa aos cães, que apenas rosnam de fome e medo — pôde sentir a tangibilidade viscosa do ódio. Ainda assim, o jovem Hitler costumava pintar aquarelas durante seu período de mendicância em Viena e, no auge do poder, chegou a sentenciar que só entenderia o nazismo quem tivesse ouvidos para a música de Richard Wagner. 

    O sociopata Ióssif Stálin, fascista de esquerda, foi o responsável pela morte industrial de milhões de seres humanos torturados, julgados farsescamente, fuzilados e deportados para os campos de concentração (o arquipélago gulag) espraiados como metástases (rematados cemitérios dos vivos) pela Sibéria. 

    Quem já viu as cenas de deificação de Stálin — nauseante culto à personalidade — pôde sentir a reversão da utopia em distopia a infantilizar camaradas reduzidos a súditos, que, após mais um discurso monocórdio do “guia genial dos povos”, ficavam batendo palmas por dezenas de minutos a fio — e ai de quem ousasse sustar a ovação antes dos demais… Ainda assim, o jovem Stálin costumava compor poemas panteístas a respeito dos cumes nevados e sinuosos de sua Geórgia natal e, no auge do poder, chegou a sentenciar para os muy amigos estadunidenses, em meio à partilha da Europa realizada pelos Aliados na conferência de Potsdam, ao fim da Segunda Guerra Mundial, que a música tem o dom de apaziguar a besta-fera que há no ser humano. 

    Era uma vez um show de música faroeste a ocorrer numa casa noturna da cidade de Utópolis, situada num país chamado Macondo. Eis que um soldado à paisana se envolve numa briga com um multicampeão de luta greco-romana. Após ameaçar o lutador com uma garrafa, o militar se vê prontamente imobilizado e desguarnecido de sua clava de uísque. Depois de ser enxotado, o soldado dá quatro passos centrífugos, saca um revólver, volta à mesa do lutador e o alveja na testa com um tiro à queima-roupa. 

    Grandes veículos de comunicação de Utópolis noticiaram que, após o tiro sem misericórdia, o militar à paisana se dirigiu a um famoso prostíbulo da cidade, contratou uma acompanhante e a levou a um motel, onde o casal facultativo permaneceu por cerca de 12 (doze) horas. Consta que a transfusão de sêmen beirou os US$ 1,000 (mil dólares). 

    Não precisamos ler Sigmund Freud para sabermos que a pulsão de morte, Tânatos, é um vampiro voraz a sugar a jugular de Eros, a pulsão de vida. Basta que nos lembremos de que o sociopata Júlio César, fascista avant la lettre, concedia a seus batalhões imperialistas dois dias de butim após as vitórias militares repletas de escombros e cadáveres fumegantes, período durante o qual a soldadela alucinada tinha permissão para pilhar, violar e incinerar, não necessariamente nessa ordem, a população civil trêmula e indefesa. 

    A imagem de um soldado ensanguentado e de pênis ereto, que, uma hora antes (se tanto), rasgara as tripas de seus inimigos com o falo de sua espada nos explica por que os franceses chamam o orgasmo de “la petite mort” (“a pequena morte”). Como Tânatos submete Eros a um encarniçado Estado de sítio, a história humana nos desvela o submundo necrófilo do desejo.

    Disparo de sêmen, ejaculação de pólvora. 

    E se a história ainda nos puder ensinar que o belo é irmão do bélico, assim como Abel é irmão de Caim? 

    Ouçamos, com consternação, o relato de dois sobreviventes do campo de concentração de Chełmno, situado a pouco mais de 200 km a noroeste de Varsóvia, na Polônia. 

    O primeiro sobrevivente, o senhor K. (chamemo-lo assim), era coagido pelos criminosos da SS nazista a carregar os corpos das vítimas asfixiadas na câmara de gás até a clareira de um bosque pertencente ao campo. Antes da construção dos fornos crematórios, os cadáveres eram empilhados por lá, e o senhor K. devia incinerá-los.

    — Jamais vou me esquecer daquela gigantesca pira humana! — exclama, entre lágrimas, o senhor K. — De tão altas as labaredas, parecia que a fogueira queria arranhar o céu… (Talvez ela quisesse culpá-lo…) As chamas aspergiam e exalavam, como gritos, como súplicas, quase todas as cores do arco-íris: amarelo, laranja, violeta, vermelho… Parecia o adeus de uma borboleta infinita! Boquiaberto, eu sentia o gosto ácido das lágrimas que me invadiam. 

    Por ter uma voz de tenor, o segundo sobrevivente, o senhor D. (chamemo-lo assim), era coagido por um carrasco da SS aficcionado por música a entoar canções folclóricas polonesas a bordo de uma canoa que ia singrando, lentamente, o riacho a ladear a pira humana. 

    — Eu cantava as mais belas e lúdicas canções do nosso povo enquanto os nazistas violavam o último respeito aos mortos, já que a fuligem expelida pela fogueira coletiva não tem rosto e não tem corpo. Quem é meu pai? Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? 

    Coagido a atuar como Caronte, o barqueiro que leva os defuntos ao Hades, o reino dos mortos, o senhor D. compreendeu, enquanto cantava os refrões folclóricos cuja felicidade só fazia chicoteá-lo, como os nazistas haviam asfixiado uma das máximas de Cristo: “Quem é meu pai? Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Deixa que os mortos enterrem seus mortos”. 

    Órfãos da vida e exilados de qualquer sentido, o senhor K. e o senhor D. descobriram que, no campo de concentração de Chełmno, rematado cemitério dos vivos, a compaixão é um sepulcro, e Deus é a Morte. 

    Ainda assim, numa mescla incicatrizável de ímpeto de vingança (é preciso ter alguém a quem culpar!) e vontade de acalento e proteção, o senhor K. e o senhor D., que jamais trocaram uma só palavra em Chełmno, ouviram dentro de si, reclusa por uma cerca de arame farpado ao redor do coração, a seguinte questão ajoelhada em súplica:

    — Pai, por que me abandonaste? 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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