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Heraldo Campos

Graduado em geologia (1976) pelo Instituto de Geociências e Ciências Exatas (UNESP), mestre em Geologia Geral e de Aplicação (1987) e doutor em Ciências (1993) pela USP. Pós-doutor (2000) pela Universidad Politécnica de Cataluña - UPC e pós-doutorado (2010) pela Escola de Engenharia de São Carlos (USP)

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Do Botucatu ao Guarani

O Brasil tem 70% da área do Aquífero Guarani em seu território

(Foto: ecodesenvolvimento.org)

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Mais ou menos no final do curso de graduação em Geologia, no ano de 1976, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, que ao final desse mesmo ano viria a fazer parte da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, hoje UNESP, juntamente com outros institutos isolados do Estado de São Paulo, foi quando cursei a disciplina de Hidrogeologia.

A vaga lembrança dessa época é que existia muito cálculo no conteúdo da disciplina. Não que isso causasse qualquer tipo de medo ou distanciamento da matéria que vinha sendo ministrada, mas, digamos, que passou meio batido e confesso que só fui entender o que era um aquífero, ou reservatório de água subterrânea, alguns anos depois, em meados do ano de 1978, quando fui trabalhar no Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), autarquia do Estado de São Paulo e órgão gestor das águas.

Foi durante o trabalho de campo, cadastrando poços tubulares nas então regiões administrativas 10 e 11 - Presidente Prudente e Marília (DAEE, 1979) e, em seguida, nas regiões 5 - Campinas (DAEE, 1981a) e 4 - Sorocaba (DAEE, 1981b), que convivendo e aprendendo com colegas geólogos mais experientes e que haviam trabalhado em estudos hidrogeológicos anteriores como nas regiões 6 - Ribeirão Preto (DAEE, 1974) e 7, 8 e 9 - Bauru, São José do Rio Preto e Araçatuba (DAEE, 1976), que ouvi pela primeira vez se falar sobre o Aquífero Botucatu e sua área de ocorrência em território brasileiro. Desse modo, o relato aqui apresentado deve-se aos dados coletados por eles, entre outros profissionais atuantes na área de hidrogeologia no Brasil e em países vizinhos.

Posteriormente, tendo em vista a magnitude e abrangência desse reservatório de águas subterrâneas, localizado no Cone Sul, em uma região constituída pelos territórios da Argentina, Brasil (oito estados), Paraguai e Uruguai, perfazendo uma área de 1,2 milhão km² de extensão, o atualmente conhecido Aquífero Guarani, incluindo o Aquífero Botucatu e outras denominações regionais, acabou sendo batizado com esse nome pelo geólogo uruguaio Danilo Anton, como uma homenagem à população indígena que dominava a bacia platina na época do descobrimento da América (CAMPOS, 2003a).

O Brasil, por ter 70% da área do Aquífero Guarani em seu território, vem acumulando ao longo desses últimos 40 anos e, particularmente, o município de Ribeirão Preto, que é 100% abastecido pelas águas subterrâneas desse reservatório, sempre teve uma atenção especial.

Desse modo, pode-se dizer que o marco da investigação hidrogeológica e hidrogeoquímica nessa área específica iniciou-se no fim da década de 60 com os seguintes trabalhos pioneiros: SINELLI & GARLA (1969), DAEE (1974, 1976, 1979, 1981a e 1981b), SINELLI (1979), GALLO & SINELLI (1980), SINELLI & SOUZA (1982), SILVA (1983) e WENDLAND et al. (2007). Merece também uma citação o termo de referência elaborado pelo DAEE (1985), no qual se propõe uma ação conjunta com o então Departamento de Águas de Ribeirão Preto (DAERP) para o “Desenvolvimento de um modelo para o aproveitamento das águas subterrâneas em Ribeirão Preto”.

Com relação ao uso do Aquífero Guarani, há mais de quatro décadas se conhece uma superexplotação do aquífero na região de Ribeirão Preto com valores na ordem de 45 x 10^6 m³/ano (GILBOA et al., 1976). Baseado em estudo geoestatístico de 160 poços distribuídos no sítio urbano de Ribeirão Preto, STURARO & LANDIM (1988) identificaram uma zona mais rebaixada, perto do centro da área, na qual está localizada uma maior concentração urbana e de poços com superexplotação de água subterrânea.

Em função do intenso bombeamento de poços na região de Ribeirão Preto, MONTENEGRO et al. (1988) também já haviam observado que: a) o rebaixamento de 15 a 25 metros dos níveis da água em comparação com os níveis originais; b) a precariedade na determinação dos níveis estáticos na área em função das interferências de poços vizinhos em bombeamento; e c) os níveis dinâmicos na porção urbana apresentam sensível rebaixamento a partir da década de 60. Estes autores concluem que a respeito dos estudos desenvolvidos sobre a hidrogeologia de Ribeirão Preto, os dados disponíveis são insuficientes para o modelo hidrogeológico.

Para o município de Ribeirão Preto, com uma população aproximada de 570.000 habitantes, segundo dados da FIPAI (1996), a retirada de água do Aquífero Guarani é de 95.700.000 m³, 13 vezes superior à recarga direta de chuva (7.168.127 m³). Ainda de acordo com este estudo, a evolução da superfície piezométrica para 20 anos apontou a formação de um cone de abatimento com o vértice localizado na região central do perímetro urbano.

MONTEIRO (2003, p.159) observou que, a partir da análise de tendências, existem anomalias negativas nas superfícies piezométricas do Aquífero Guarani na área municipal como consequência do rebaixamento de níveis pela superexplotação do reservatório.

No que diz respeito à qualidade química natural das águas do Aquífero Guarani na região de Ribeirão Preto, o conteúdo de sólidos totais dissolvidos varia de 22 a 150 mg/l, têm pH entre 4,3 e 8,0 aumentando de Leste para Oeste e são predominantemente bicarbonatadas cálcicas (DAEE, 1974). A vulnerabilidade natural do Aquífero Guarani para a área Noroeste de Ribeirão Preto é classificada como alta, sem considerar as partes inferiores do reservatório (porção confinada), e as cargas poluentes de saneamento in situ no meio urbano do município são elevadas (IPT, 2000).

Na época desses últimos estudos citados destacou-se, ainda, o trabalho de um sistema de informação regional e os antecedentes relacionados com a Fase 1 do “Projeto Baviera”, uma cooperação técnica efetivada entre a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo e o Governo da Baviera (Alemanha) para a transferência de tecnologia, conhecimentos e capacitação técnica em questões relacionadas com a gestão e a proteção dos recursos hídricos subterrâneos. Neste Projeto participam, entre outras entidades, as seguintes instituições da Secretaria: Instituto Geológico, Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB) e Instituto Florestal.

Neste contexto apresentado, a região de Ribeirão Preto foi escolhida como uma área-piloto para estudo mais detalhado, como parte integrante do “Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani”, sob o auspício da Organização dos Estados Americanos (OEA), por estar ocorrendo nessa região um importante processo de crescimento urbano, com intensificação das atividades agrícolas e industriais que demandam uma crescente retirada de água subterrânea do Aquífero Guarani. Os estudos nesta área-piloto foram iniciados em outubro de 2005 e foram

 representados pelos territórios de Ribeirão Preto e de mais 12 municípios (total ou parcialmente), perfazendo uma área com 2.500 km² de extensão.

Na região de Ribeirão Preto ocorreram, ainda, importantes projetos de pesquisas, com suporte financeiro próprio e de outras agências de fomento. A Universidade de Ribeirão Preto estudou o emprego de métodos para a remoção da água (superficial e/ou subterrânea) de herbicidas utilizados na cultura da cana de açúcar, no qual o Aquífero Guarani foi contemplado no processo de investigação. O então Instituto Geológico do Estado de São Paulo desenvolveu o estudo da recarga vertical pelos basaltos, através de fraturas, em uma faixa próxima da área de afloramento do Aquífero Guarani. O Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas desenvolveu o projeto de ensino de Ciência do Sistema Terra na formação continuada de professores, com subprojeto que envolveu o tema do Aquífero Guarani. O Centro Universitário Barão de Mauá trabalhou com Educação Ambiental, na sensibilização do público envolvido na área-piloto, nesse mesmo período.

Assim, nesse cenário apresentado, podem ser citados, complementarmente, os trabalhos de CAVICCHIA (2007) e da FIPAI (2007), no desenvolvimento de um modelo numérico pelo “Método de Elementos Finitos” para auxiliar no gerenciamento de recursos hídricos subterrâneos na área. Posteriormente, na área do município de Ribeirão Preto e dos seus entornos mais próximos, podem ser citados, também, os estudos de CAMPOS & CANESIN (2008), CAMPOS et al. (2010), GOULART et al. (2012) e CAMPOS (2013).

Nesse contexto, pode-se dizer que os trabalhos mais recentes na área do município de Ribeirão Preto são os da GEOWATER (2019 e 2021) que, respectivamente, tiveram como objetivos (p.1) “[...] analisar e interpretar os dados e informações gerados pelo contrato FEHIDRO-348/2010-FUNDAG-819, durante o período de 2014-2016, relativos ao projeto “Piezometria e Qualidade da Água: Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani – Área Piloto de Ribeirão Preto.” e (p.2) “[...] prosseguir com o detalhamento e aprofundamento do conhecimento do Aquífero Guarani no município de Ribeirão Preto, com ênfase na proteção e desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos subterrâneos [...]”.

Para encerrar, ressalta-se que a sistemática de trabalho que envolve este tipo de levantamento de dados e estudos hidrogeológicos, relatado nesse breve histórico, serviu de base para os trabalhos desenvolvidos pelo autor ao longo desses 47 anos de vida profissional (CAMPOS 1987, 1993, 2000a, 2000b, 2003a, 2003b e 2013) e, portanto, dedica-se, modestamente, esse texto “Do Botucatu ao Guarani” aos vários profissionais atuantes na área de hidrogeologia na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, na área de ocorrência do Aquífero Guarani.

“A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba.” (Guimarães Rosa).

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