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Ricardo Lodi Ribeiro

Foi Reitor da UERJ (2020-2022), onde é professor associado de Direito Financeiro

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E depois do coronavírus?

A pergunta ética e economicamente relevante não é se podemos sacrificar os idosos para salvar a sociedade. Pelo colapso do sistema de saúde, em qualquer país do mundo, a pergunta é se morrerão milhares ou milhões

(Foto: AFP 2020 / CESAR MANSO)

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Nesses tempos de combate à pandemia do coronavírus, é apresentada à sociedade brasileira, pelo Presidente da República, a dicotomia entre a proteção da vida, promovida pelo amplo isolamento social, e a defesa da economia, com a adoção de medidas mais tênues, como o isolamento vertical, a partir da restrição limitada aos idosos e pessoas já contagiadas.

Como o exemplo britânico pelo isolamento social vertical e a leniência italiana em adotar qualquer medida mais dura de distanciamento demonstraram, o atraso na adoção de providências mais restritivas coloca a epidemia “em outro patamar” do ponto de vista do número de vítimas e da sua letalidade. Por isso, tais medidas, embora tardiamente, foram substituídas nesses países por vigoroso programa de isolamento social mais amplo.  É que o custo econômico e social do aumento da “curva” da doença, é exacerbado pela demora na adoção de medidas inevitáveis.

No fundo, a pergunta ética e economicamente relevante não é se podemos sacrificar os idosos para salvar a sociedade. Pelo colapso do sistema de saúde, em qualquer país do mundo, provocado pela rápida elevação do número de doentes, a pergunta é se morrerão milhares ou milhões. Não há economia que se mantenha no meio de corpos por todos os lados. E de todas as idades como se têm visto na Itália, na Espanha, nos EUA e em todo lugar.

Por outro lado, como até os economistas liberais já reconhecem, as medidas para atenuar a crise econômica não passam pela circulação perigosa de pessoas em suas rotinas normais de trabalho. Mas no forte aporte estatal de recursos na sociedade. Como todos os países, em maior ou menor grau, já estão fazendo, é hora de aportar, com urgência, um enorme volume de recursos nos serviços de saúde, nas pessoas vulneráveis socialmente e nas pequenas e médias empresas com a condição de manterem os postos de trabalho para os trabalhadores que estão em casa. Nossa história recente demonstra que as medidas serão inócuas se seus destinatários forem bancos e grandes empresas, pois não há garantia de que o esforço governamental preserve empregos.

Esse papel, no Brasil, tem que ser exercício pelo Governo Federal, que precisa superar seus dogmas neoliberais na economia e abandonar a belicosidade eleitoral na política, para apoiar Estados e Municípios, financeira e institucionalmente, no combate à pandemia.

Assim, ser de direita ou de esquerda não deve influenciar a decisão do Estado sobre a necessidade do isolamento social e do amplo gasto público neste momento. Essas medidas são exigidas pela sobrevivência do povo e da própria economia. Não é à toa que, mesmo os governos mais conservadores ao redor do mundo, estão implementando medidas keynesianas dirigidas à manutenção da atividade econômica a partir de transferência direta aos mais pobres. Não adotar tal direção é contribuir para ampliar a disseminação do vírus espalhando um rastro de morte pelo país. Ou seja, não é uma questão ideológica, mas de responsabilidade pela vida das pessoas. Quem vai pagar a conta depois, esta sim, é uma questão ideológica, baseada nas discussões sobre a justiça fiscal, que já demandam, há muito tempo, uma reflexão profunda em um país tão desigual como o nosso. E vamos ter que enfrentar esse tema quando a vida voltar ao normal, pois outro mundo deverá surgir depois que a tempestade passar.  

Vale recordar que os Estados nacionais, vêm sofrendo, desde a década de 1980, um paulatino enfraquecimento que, hoje resta claro, fomenta a escalada da desigualdade em decorrência não só dos efeitos naturais do modelo de acumulação de capital adotado, mas de políticas públicas dirigidas aos que estão no topo da pirâmide.   No entanto, nos momentos de crise, são os recursos estatais, ou seja, dos contribuintes, que são carreados para salvar os mercados, como na crise das hipotecas subprime norte-americanas, em 2007, viabilizada pela  desregulamentação do setor financeiro, que desaguou na grande recessão da economia mundial em 2008.  Na época, e os efeitos seguem até hoje, quem pagou a salgada conta foram os direitos sociais.  Neste momento de pandemia, uma vez mais, o Estado nacional se lança a salvar as pessoas e os mercados.  Para que essas tragédias humanas não se repitam, é indispensável superar este modelo em que os ganhos são dirigidos ao topo e os prejuízos compartilhados por toda a sociedade, a partir da lógica da austeridade seletiva.

A pandemia mundial nos revela o que muitos já vem alertando há tempos: esse modelo do estágio atual do neoliberalismo, que destrói as estruturas do Estado Social, levando ao desenvolvimento da espiral da desigualdade, empurrará a humanidade ao colapso.  Não é possível se conceber que, após a experiência que a humanidade vem passando, acreditar que o mundo permanecerá igual ao que conhecíamos, assim como o mundo nunca mais foi mais o mesmo após a gripe espanhola que, entre 1918 a 1920, infectou um quarto da população global da época, abrindo o caminho, dentre outros fatores, para o desenvolvimento das políticas públicas voltadas à assistência social da população.

Para vencer a pandemia as sociedades modernas estão sendo obrigadas a resgatar o espírito de coesão social indispensável ao êxito de projetos que partam de uma visão menos individualista da sociedade, a exemplo do que ocorreu na Europa, no segundo pós-guerra, onde a coesão social forjada durante o esforço para a expulsão do invasor estrangeiro serviu de fundamento para a ampliação do Estado Social nos países que mais o levaram a sério. 

Durante os trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, predominou uma visão mais igualitária que levou ao estreitamento das diferenças de renda.  Aos poucos, as teorias anti-igualitárias da Nova Direita, que se desenvolveram nos anos de 1950 e 1960, começaram a ganhar terreno.  Nos últimos quarenta anos, não apenas o Reino Unido, mas uma série de outros países anglo-saxões, incluindo os EUA, têm realizado uma audaciosa experiência humana em massa que alçou os níveis de desigualdade a patamares muito elevados. E esse modelo foi globalizado a partir da década de 1990.

De fato, o aumento da desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres é um grande fator desagregador da coesão social, tornando inviável que as pessoas considerem que estão no mesmo barco com a construção de paredes físicas onde os mais ricos vivem em condomínios cercados de seguranças, e mantêm com os pobres uma relação de medo, distância, mal-entendidos, desconfiança de classe e antagonismos raciais, e perda da solidariedade social, que sempre pressupõe que as pessoas se conheçam, frequentem as mesmas instituições escolares e culturais. Nos dias atuais, os ricos criaram o seu próprio país virtual, construindo um mundo completamente fechado em si mesmo, com o seu próprio sistema de saúde, sua rede de viagens, seus clubes, sua própria economia, não apenas ficando ainda mais ricos, mas tornando-se financeiramente estrangeiros com a criação de seu próprio país dentro do país, sua própria sociedade dentro da sociedade, sua própria economia dentro da economia.  

Com a pandemia esta ilusão de construção de um éden individual em meio ao caos nacional revela-se desfeita, demonstrando que a fragilização dos serviços públicos e a exacerbação da desigualdade não são problemas que se relacionam apenas com os mais pobres.  É sabido que a epidemia será superada em nosso país, para ricos ou pobres, pelo  Sistema Único de Saúde e pelos esforços das universidades públicas e centros de pesquisa financiados por recursos estatais.  

A fragilização dos serviços públicos e o aumento da desigualdade são fatores que afetam toda a sociedade, como o comprometimento da estabilidade econômica, mais sujeita a crises em ambientes em que a concentração de riqueza estrangula o consumidor, deixando o mercado suscetível às oscilações internacionais.  Para além da economia, a desigualdade extrema compromete o sentido de coesão social que une um povo em laços de solidariedade e pertencimento a uma comunidade, estabelecendo uma barreira entre nós e eles, o que acaba por perturbar a normalidade democrática, aumentar os índices de violência, de encarceramento, comprometer a saúde da população como um todo e não só a mais pobre, e todos os indicadores sociais.   E nos momentos de crise, como agora, são capazes de promover verdadeiros desastres humanitários, suscetíveis de corroer todo o tecido social.

Se nada for feito pelos governos e pela história, a concentração de riqueza tende a aumentar, o que coloca em risco da democracia e o atendimento às necessidades mais basilares da população mais pobre.  E o instrumento que os Estados possuem que maior efeito revela para a redistribuição de rendas é a tributação igualitária, que, ao mesmo tempo em que financia as prestações sociais, preserva a livre iniciativa e a livre concorrência, sendo a progressividade fruto da ponderação entre os interesses da sociedade e os do mercado, a partir de uma lógica cara ao liberalismo.

A aplicação de uma tributação justa com mais razão se aplica ao Brasil, cujo sistema tributário é marcado por uma iniquidade regressiva escondida por trás do discurso hegemônico quanto ao caráter asfixiante de uma carga tributária afugentadora dos investimentos, mas que onera muito mais os mais pobres. É preciso desmontar essas armadilhas deixadas pelos beneficiários da concentração de renda, promovendo a maior tributação do patrimônio, heranças e rendas dos mais ricos, a fim de aliviar a carga fiscal dos consumidores e dos assalariados, a partir de uma verdadeira reforma tributária igualitária, que aproxime a matriz tributária nacional dos modelos dos países desenvolvidos que, uns mais outros menos, conseguiram oferecer à população uma estrutura social mais robusta.

Embora, neste momento, a prioridade, aqui e em outros países, seja a de salvar vidas e colocar rapidamente dinheiro no bolso das pessoas vulneráveis, ainda que pelo endividamento estatal, é preciso não só nos prepararmos para dividir de forma equânime a conta desses gastos públicos tão necessários neste momento.  É indispensável também compreender que não é possível mais prosseguir nesta espiral que concentra a renda em poucos indivíduos em detrimento da saúde, da vida digna e da felicidade de quase todos. 

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