É tempo de repensar a “polícia” municipal
O patrulhamento ostensivo é, por força de lei, bem como da Constituição Federal e das constituições de alguns estados, função da Polícia Militar
Desde o dia 20 de fevereiro, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que é constitucional no âmbito dos municípios, a realização de ações de segurança urbana pelas guarda municipais, vem sido noticiado proposição de leis municipais alterando os nomes das (antigas) guardas municipais para, agora, “Polícias” municipais. Além destas, noticia-se críticas destas alterações por parte do comando da Polícia Militar do estado de São Paulo e, até mesmo, proposição de Ações de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O caso concreto julgado pelo STF analisava decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que entendia inconstitucional a Lei do município de São Paulo (Lei nº 13.886/2004) que atribui a Guarda Municipal daquela cidade a função de policiamento para evitar a prática de delitos e infrações administrativas. Então, o que julgava o Supremo Tribunal Federal era se a legislação municipal poderia expandir as funções da guarda municipal para além da proteção de bens, serviços se logradouros públicos municipais, conforme ainda dispõe a Lei Federal nº 13.022/2014 (Estatuto das Guardas Municipais). O STF entendeu que é constitucional a legislação municipal impugnada e, expandindo o entendimento para todo o país, afirmou que compete também às guardas municipais o patrulhamento ostensivo e comunitário.
Neste cenário, cabe o questionamento: na prática, o que altera na segurança pública municipal? Porém, para responder esta questão devemos, antes, nos perguntar: por qual motivo o Supremo Tribunal Federal entendeu tal caso com tamanha importância ao ponto de estender o alcance da decisão a todo o país (o que se chama de Repercussão Geral).
Ao entender que as guardas municipais integram os sistemas de segurança, tornam-se lícitas as diligências, especialmente de prisões em flagrante e buscas pessoais, realizadas pelas guardas municipais. Isto quer dizer que, por exemplo, uma apreensão de drogas realizada pela Guarda Municipal não será considerada ilícita somente por ter sido realizada por essa. Essa era uma discussão realizada em diversos casos nos Tribunais Superiores que divergiam sobre tal possibilidade, mas que, agora, perdeu o objeto.
Sendo assim, do ponto de vista jurídico, as funções das guardas foram efetivamente ampliadas, em maior ou menor medida a depender do leitor, em relação ao Estatuto da Guarda, que, ressalta-se, continua vigente. Para além disso, a Suprema Corte autorizou os municípios a criarem leis para instituir guardas municipais com estas funções. Ou seja, o município que desejar realizar uma legislação neste sentido não será barrado por questionamento de inconstitucionalidade.
Até aqui, tudo parece bastante simples. Porém, a decisão do Supremo Tribunal Federal não termina por aí. A mesma decisão determina que as guardas devem atuar de forma conjunta e harmônica com os demais órgãos de segurança (Polícias Civil e Militar) desde que – e aqui está o ponto de confusão – respeitadas as funções dos mesmos órgãos de segurança.
O patrulhamento ostensivo é, por força de lei, bem como da Constituição Federal e das constituições de alguns estados, função da Polícia Militar. Assim, à primeira vista parece que a decisão do STF mistura, por si só, as competências atribuídas a polícia militar e, agora, as guardas municiais. Porém, a decisão da Corte é mais restrita, pois apenas torna lícitas as diligências e diz ser constitucional legislações municipais sobre guardas municipais como equipamento de segurança pública. Portanto, a decisão não aborda o conteúdo da lei municipal, o que certamente será feito caso a caso, mas somente a competência do município legislar neste sentido.
O debate que vem sendo travado acerca do nome devido para esta “nova” guarda municipal advém justamente deste mau entendimento da decisão tomada pela Suprema Corte. Alterar o nome da instituição (que traz um sentimento de reconhecimento, justo e legítimo, aos integrantes das guardas municipais) deixa de cumprir a decisão do STF, uma vez que a própria decisão delimita que as funções da polícia militar (como o patrulhamento urbano ostensivo) não podem ser invadidas. Logo, alterar o nome, sem nada dispor sobre as funções desta nova polícia, não está no alcance da decisão do STF.
Deste modo, em verdade, está lançado um desafio aos municípios para que apresentem um novo plano de segurança pública, o qual, contemple a nova decisão do Supremo Tribunal Federal, sem esquecer a legislação já vigente. Portanto, deve-se lembrar que o Estatuto das Guardas Civis, o qual advém de lei federal e, por isso, deve ser respeitado por todo o território nacional, continua vigente. O que quer dizer que as legislações municipais não poderão estar em contradição a esta lei federal e, mais importante, que as guardas municipais devem continuar exercendo as funções constantes nesta lei.
Depois disto, do ponto de vista prático, ainda que seja mais instagramável a divulgação de apreensões e prisões por parte da Guarda Civil Municipal, ainda há necessidade de guarnecer e proteger os bens públicos municipais. Afinal, estas guardas foram instituídas pois existia tal necessidade, que não foi superada.
No mais, a criação de uma polícia não se dá de forma automática com a alteração do nome da instituição, mas pela produção e organização de uma estrutura jurídica, política e administrativa que contemple todos os requisitos para tanto. É preciso que seja instituída uma carreira aos seus servidores; sejam estabelecidos protocolos de atuação, seja para o uso da força ou para seu relacionamento com os demais membros do sistema de segurança; sejam criadas corregedorias autônomas e independentes capazes de fiscalizar e punir desvios de conduta e tantas outras medidas. Ainda, é preciso pensar se esta força de segurança integrará a administração municipal direta, hipótese em que, por exemplo, a representação jurídica se daria via as procuradorias do município, ou indireta, em que a instituição desfrutará de orçamento próprio e administração independente.
O que se quer dizer é que pensar uma polícia não é simples como uma mudança de nome, que deixar o prefeito “muito bem na foto”, mas não resolve os problemas de segurança. Logo, do ponto de vista político, é um desafio, mas também uma oportunidade de apresentação de um novo plano de segurança pública à sociedade, o qual se adeque as necessidades de prevenção e repressão de crimes, mas que não se distancie dos princípios das guardas municipais de proteção de direitos humanos, cidadania, liberdades públicas e evolução social.
Nestes tempos em que o tema da segurança vem sendo discutido também a partir diversos casos de abusos por parte das polícias em todo o país, as guardas municipais são um meio de pensar um modo de segurança pública para além da ostensividade que, ao que parece, não vem encontrando a efetividade desejada. É possível que as guardas municipais sejam integrantes do sistema de segurança sem o estigma e os vieses das demais polícias.
É tempo de pensar um equipamento de segurança que esteja próximo à comunidade, que consiga, por exemplo, saber o local de um furto apenas pela indicação de que este aconteceu “na esquina da casa da dona Maria”. Essa sim, contemplaria a decisão do Supremo Tribunal Federal e um sistema de segurança que, até aqui, focou em uma política de guerra que mais levou a vidas perdidas do que à efetiva diminuição dos índices de criminalidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.