E tudo não passou de um carnaval
Nossa quarta-feira de cinzas vai sendo dominada, aqui e acolá, por um governo usurpador, corrupto e golpista, uma grande imprensa cúmplice, um legislativo corrupto é um judiciário complacente
É a minha primeira coluna no Brasil 247 depois do golpe. E ela só veio relativamente tarde porque só agora a ficha vem caindo.
Foi numa festa de aniversário da amiga Lorena, da União da Juventude Socialista, no interior da Bahia, rodeado de jovens como eu, filhos de trabalhadores, ladeado pelos pais dela, que a ficha caiu. Ali, em meio a jovens pobres e negros, eu sendo mais um, olhei para o lado e não encontrava ninguém entre nós que não tivesse origem na senzala. Ali era uma roda de estudantes universitários, alguns acabando a graduação, alguns já quase entrando na pós-graduação e eu no doutorado. Eles não me observavam no meu desconforto, não com a festa ou com seus pais, alegres anfitriões da festa linda de sua jovem filha guerreira. Mas havia um desconforto em olhar para eles, todos militantes de uma esperança muito grande, filhos das transformações dos últimos dez anos de governos de Lula e Dilma.
Tudo não passou de um carnaval. Como naquela festa, em meio a um golpe, sabíamos que depois dali teríamos que enfrentar a realidade. Mas como ali fomos felizes naquela fresta de felicidade, assim foi o Brasil dos últimos dez anos.
Em quinhentos anos parecia que ou o Brasil tinha tomado jeito ou era escandaloso que, surpreendentemente dentro do sistema capitalista, pudéssemos diminuir mais a pobreza do que muitos países centrais no pós-guerra, que pudéssemos ter tirado da extrema pobreza social mais gente do que os habitantes de muitos países europeus. Era uma lua de mel com a democracia comemorada num grande carnaval.
Sou filho do bolsa família, eu já gritava no final da faculdade. Aplaudido efusivamente no final do meu discurso de formatura, onde tinha exaltado a origem de um novo Brasil, um jovem se aproximou de mim em minha festa e perguntou no meu ouvido: "Você vota em Lula e no PT, não é mesmo?". O sorriso no meu rosto respondia por mim, por meu discurso de formatura, por tudo.
Eu, filho da senzala, mas, sobretudo, filho do Bolsa Família, dei todas as alegrias à minha mãe, eleitora de Lula e Dilma. Ela mesma, mais estrela do que eu na minha formatura, enxergou ali um Brasil novo que estava dando certo. Ela chegou ao fim dos seus dias dois anos depois quando seu filho já era mestre e tinha sido aprovado no doutorado. Por todas as humilhações que ela tinha passado na vida até ali eu tinha por obrigação dar um sorriso àquela mulher negra de quase 60 anos, agricultora do cacau, mãe de 10 filhos, enferma de mais de 20 anos de uma doença crônica.
Dali em diante o Brasil não só tinha formado um outro filho, tinha formado uma nova geração de filhos desse Brasil, anticorpos poderosos. Politizados, crentes de que só a política muda o mundo, a nossa geração foi a primeira da família a chegar à universidade hoje está no doutorado, no mercado de trabalho ou concursada. Uma segunda geração já começando, espelhada em nós chegava a dizer, depois das minhas aulas de inglês na escola pública: "que nada, professor, eu quero a federal", dizia um aluno que andava quilômetros para assistir aula na escola pública, referindo-se ao acesso à universidade federal recém-instalada pelo governo Dilma.
Foi um carnaval, na melhor das hipóteses. E eu me dei conta naquele dia, entre os melhores amigos, aqueles que acreditam que só a política muda a vida. E, na melhor das hipóteses, mesmo com o boom mágico do Brasil varguista, que criou um passo civilizatório na história deste país com a Petrobras e os direitos trabalhistas, nosso momento foi diferente. Tecnologias que demoravam séculos para chegar ao Brasil eram apropriadas pela juventude de baixa renda cotidianamente. A juventude negra que conseguia fugir do genocídio de 29 mil jovens ao ano batia no peito o orgulho de entrar na federal ou na estadual, de fazer um curso técnico e pensar no emprego futuro. Sou da época que geladeira e TV a cores eram novidade e relógio simples de pulso era um objeto de poder. E olha que sou um jovem de 25 anos. Isso só significa que o Brasil mudou muito em pouco tempo. Chegamos ao nível de sonhar em ser um cientista de sucesso, um professor reconhecido, um escritor conhecido e um político de verdade, mas tudo não passou de um carnaval.
Confesso para vocês a minha desesperança. Aquele dia 31 de agosto passei na cama chorando. Poucas pessoas próximas sabiam como eu estava sofrendo tanto. No mesmo ano que sua mãe faleceu, um golpe é dado na democracia, e só restam desesperanças.
A nossa quarta-feira de cinzas vai sendo dominada, aqui e acolá, por um governo usurpador, corrupto e golpista, uma grande imprensa cúmplice, um legislativo corrupto e um judiciário complacente. Mas a história também dá o recado: por mais que pareça demorar, vem aí o carnaval de novo, e ninguém vai poder impedir. E eles vão tentar prender o maior motivo desse carnaval, e vão fazer péssimas apresentações de PowerPoint, mas a caravana vai passar.
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