Em um com o impulso
Filósofo Vladimir Safatle apresenta trecho do livro recém-lançado
Por Vladimir Safatle
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Nota introdutória
Esse livro é só um bloco. Há ainda mais dois blocos. Então, são três blocos. O que os une é a procura em pensar a relação entre experiência estética e emancipação social. Quis a tendência de contar de trás para a frente, adquirida desde a infância, que o autor desse livro fosse levado a tentar começar do começo. As partes do todo ficaram assim divididas cronologicamente. Aqui, é questão de um processo de constituição da autonomia estética que vai do que seria seu começo (ou um deles) até o século XIX.
Um livro sobre o romantismo, então. Sobre o romantismo e seu desejo de sublime e de expressão liberada das amarras da convenção. Mas como o autor reconhece nunca ter sido capaz de seguir até o fim as regras que ele próprio inventa, há vários momentos em que as discussões concernidas avançam os limites temporais e chegam até o que se chama, por alguma razão obscura, de “hoje”.
A segunda parte será sobre o modernismo, ou melhor, sobre a capacidade modernista de construir espaços, de construir povos, com todo o misto de redenção e violência que isso possa significar. Haverá dois casos privilegiados a serem analisados, dois países que, por razões diversas, serviram-se do modernismo para realizar o projeto de construção estética de um povo: o Brasil e a União Soviética dos primeiros anos de sua Revolução. O sentido dessa associação, dessa contraposição, será defendido no próximo bloco.
Já o terceiro bloco será sobre a produção estética em uma espécie de “contemporaneidade estendida” (porque, afinal, não se vive totalmente no presente, ou melhor, porque o “presente” é uma espécie de ilusão inefetiva) e sobre algumas de suas estratégias de produção de modelos de emancipação. O autor não consegue deixar de acreditar que tais modelos estão lá onde nem todo mundo acredita que eles estejam. Porque tentar colonizar até as formas de nossa emancipação é uma antiga estratégia de preservação dos processos materiais de reprodução da vida, no caso, de uma vida mutilada.
Diz-se de William Turner que, diante de uma tempestade marítima, ele teria pedido para ser amarrado ao mastro do barco a fim de pintar o desequilíbrio de seu interior. O barco, ao que tudo indica, chamava-se Ariel. Um século depois, Ariel voltava, mas agora como título de um poema de Sylvia Plath. Nele, lê-se ao final: “E agora eu/ Espuma de trigo, uma cintilância de mares/ O choro da criança/ Escorre pela parede/ E eu/ Eu sou a flecha/ Orvalho que voa/ Suicida, em um com o impulso/ Dentro do olho/ Vermelho, o caldeirão da manhã”.
Seria possível muito dizer a respeito desse ponto de desabamento no qual a cintilância de mares encontra o choro que escorre pelas paredes. Mas talvez fosse o caso de parar, ao menos por um momento. Parar diante dessa flecha, suicida por querer ser em um com o impulso. Em um com o impulso. Isso, bem, como todo mundo sabe, isso era todo um programa estético.
Dar a sombra
“O poema se afirma à borda de si mesmo” (Paul Celan).
Este livro prefere terminar com um salto, o que não é estranho, levando-se em conta o conteúdo do qual ele trata. Trata-se de um salto em direção ao poema. De forma mais específica, a uma figura contemporânea do poema que guarda e coloca em operação muito do horizonte de questões que se desdobrou nesta reflexão sobre a experiência estética como modelo de emancipação social. De forma ainda mais específica, um salto em direção à poética de Paul Celan. De certo modo, o livro termina em um esboço de horizonte de produção que ultrapassa o limite que acabou por se impor a este volume, a saber, o século XIX.
Como foi anunciado na nota introdutória, este é apenas o primeiro bloco de um livro composto de mais dois blocos. Os outros dois devem versar sobre o modernismo e sobre a produção contemporânea. Mas esse despedaçamento consentido pede também saltos para a frente e para trás. Pois se trata de insistir em operar com dinâmicas de continuidade e descontinuidade no interior da produção artística. Nesse caso, o salto para a frente é uma indagação sobre as possibilidades do poema. Uma indagação através de Paul Celan.
Em limiar
De limiar em limiar é o título de um dos livros de Paul Celan. Um título que expressa a consciência do lugar social que a poesia poderia ocupar a partir de então (estávamos em 1955). Caminhar de limiar em limiar, ir em direção ao limiar, porque não há mais lugar algum no qual a linguagem poderia realmente habitar a não ser o limite. São vários os poemas nos quais a consciência desse movimento entre limiares emerge. Um deles é “Fala também você”:
“Fala –\ Mas não separa o não do sim. Dá a seu dizer também o sentido: dá-lhe a sombra.\ Dá-lhe sombra suficiente, dá-lhe tanta,\ quanta sabes repartida em torno de ti entre Meio-dia e meia-noite e meio-dia.\ Olha em volta:\ vê, como isso ganha vida ao redor Na morte! Vivo!\ Quem fala sombras fala a verdade”.
O sentido só emerge nesse limiar que não separa o não do sim, que desmente a transparência da linguagem, como uma sombra. Em outro poema, Celan dirá: “Falar com becos sem saída/ sobre o defronte/ sobre seu/ expatriado/ significado”. Se há que falar com becos sem saída, falar sobre o que se coloca em oposição (em “gegenüber” ouve-se o “gegen” que indica o que está contra), é porque há um significado, há uma palavra sem pátria, sem bandeira, que se torna possível só quando as saídas se esgotaram.
Pois há um sentido que é a sombra que faz desabar o meio-dia e a meia-noite, que está em ambas as horas, que leva ao ponto de esgotamento as divisões que nos orientam na organização do tempo, entre o dia e a noite, entre a vida e a morte. Ou seja, longe de aparecer como um fundamento que nos permitiria operar partilhas, o sentido mais se assemelha a um abismo do qual trazemos, muitas vezes, poemas sem verso, palavras sem conectivos, palavras ainda em estado bruto de condensação.
Essa sombra é a forma de enunciação da verdade (o que implica uma aceitação da relação entre poesia e verdade), enunciação da qual o poema não se desespera, mas caminha até o limiar para enunciá-la. Uma enunciação que, para se sustentar, precisa preservar apenas o ritmo e a repetição, e nada mais. Esse ritmo de evocação lenta e prece seca que marcará sempre a poesia de Celan, tão evidente quando ouvimos sua própria fala, sua própria forma de recitar. Esse ritmo de repetição insistente, como quem sabe necessário continuar, mesmo sem clareza, como quem confia na pulsação própria à palavra que mais se aproxima da respiração.
Não será por acaso que o título de outro livro de Celan será Atemwende, que pode ser traduzido por Mudança de respiração. Como se tratasse de procurar esse ponto no qual a enunciação do poema exige e produz uma mudança de respiração que não é outra coisa senão a possibilidade de enfim ouvir a respiração que sustenta a fala, seu ritmo, seu não parar de forma alguma, mesmo que à custa de transformar a ausência de fôlego em respiração renovada.
Da recusa da integração à inumanidade redimida
Essa experiência literária com seu confrontar irrefreável com os limiares foi imediatamente associada à catástrofe do Holocausto, ao qual Celan deu sua forma poética mais brutal em “Fuga da morte”. Catástrofe que marcou sua vida, ele que teve seus pais mortos em campos de extermínio, enquanto fora enviado a um campo de trabalhos forçados. E não seria o caso de negar a consciência, em seus poemas, da violência da destruição a perpassar cada segundo da vida. Não poderia ser diferente para quem entra no mundo da poesia afirmando: “A morte é a mestra da Alemanha”.
Mas a catástrofe não seria completa sem o esforço social sistemático por seu esquecimento. Por levar isso em conta, é mais correto afirmar que a poesia de Celan traz as marcas não apenas do Holocausto, mas também da recusa vigorosa das promessas de “integração”, de “parceria”, de “cooperação” que embalavam a reconstrução da Alemanha e seu “milagre” pós-guerra produzido pela dita economia social de mercado. Economia que trazia as marcas da continuidade entre assassinato, apagamento e integração. Economia que era a continuação do esquecimento por outros meios.
Esses poemas foram escritos, em sua maioria, entre os anos 1950 e 1960. O milagre alemão, com seus cânticos de crescimento e reconciliação, é seu pano de fundo. Pois as forças que haviam sido postas em mobilização total na guerra são novamente chamadas, mas agora para reconstruir o país, para apagar as ruínas, tal como O casamento de Maria Braun, de Rainer Werner Fassbinder, em que, a partir de certo momento, ouve-se de todos os lados o barulho de britadeiras e esmeril. O último capítulo da violência é agora escrito ao som de britadeira e esmeril.
O horizonte social desses poemas é a mobilização total, a guerra total, a reconstrução total. Em todos os casos, a mesma totalidade sem resto e desperdício, sem sombra e sentido. A mesma totalidade que, para um leitor precoce dos anarquistas Kropotkin e Landauer, equivalia à perpetuação da morte. Pois essa totalidade não é apenas o horizonte do fascismo, ela é também o nome de nossa real catástrofe. Uma catástrofe que está entre nós, que habita nossa linguagem como sua “comunicação” pretensamente cristalina, sem restos e sombras, como nossa figura histórica e antropológica do “homem” com seu “desenvolvimento” e o uso funcional de suas forças e potências. É contra isso que devemos dizer, como em Fiapossóis [Fadensonnen]:
“Sobre o terreno baldio cinzanegro
Um altoárvore pensamento se agarra à luzsom: há ainda canções e cantar para além dos homens”
O pensamento que encontra a certeza de que, para além dos homens, para além da humanidade atual do homem, há música e canto é um pensamento que emerge sobre o terreno baldio, sobre esses espaços que recusam todo habitar, pois portam as marcas de onde tudo se abandona. Espaços nos quais não se constrói nada, que permanece vago, inocupado entre uma construção e outra. É deles que vêm, no entanto, as cores que se confundem [grauschwarzen], é colocando-se nesses lugares que se pode ouvir luz e ver som, como se aqui não houvesse mais distinção possível entre ondas de toda natureza (transversais, longitudinais).
Espaços nos quais as posições sintáticas se desorganizaram, permitindo que um substantivo se acople a um adjetivo para adjetivar um segundo substantivo [baumhoher Gedanke]. Principalmente, espaço no qual as coisas podem se mostrar em seu devir contínuo (“É tempo que a pedra se conforte em florescer/ que ao desassossego palpite um coração/ É tempo do tempo vir a ser/ É tempo”). É tempo de a pedra tornar-se florescimento, devir o que não é sequer um possível de si. Uma linguagem que fala dessas passagens é a única capaz de forçar seus limiares.
Daqui para frente, será apenas desses espaços que virá a poesia, será desses espaços que virá a procura de canções que não foram feitas para serem cantadas pelos que portam a figura atual do humano. Por isso, essa poesia deverá ter uma singular inumanidade redimida. São canções inumanas, é verdade, mas de uma inumanidade redimida. Elas falam do que o “homem” teima em desconhecer e esquecer. Pois ela canta, como no poema “Onde há gelo”:
Onde há gelo, há frieza para dois.
“Para dois: assim eu te deixei aproximar.\ Um halo como de fogo havia ao seu redor\ Você vem lá da rosa”.
Não há por que procurar salvar o humano, preservar seus lugares de acolhimento. Há, ao contrário, que procurar de maneira obstinada a inumanidade dos lugares onde há gelo, para que ele se transfigure em uma “frieza para dois”, que não é, como podíamos esperar, uma distância que se reparte entre dois, mas encontro possível no qual enfim irrompe uma aproximação real. No universo de Celan, anda-se de cabeça para baixo. Pois: “quem anda de cabeça para baixo tem o céu como abismo”. Em Celan, como em Mallarmé, poeta ao qual ele deve tanto e que traduziu, céu não é apenas o lugar no qual brilham as estrelas, mas também onde o firmamento se confunde com o mar, com seu fundo de correntezas invisíveis, de caminhos nunca totalmente claros.
Da recusa da integração à inumanidade redimida
Como se vê, não seria correto ver nessa poesia a declinação infinita de uma elegia, da elevação moral do irreconciliável, como várias vezes se disse. Passa ao largo de sua potência de criação quem declina a ontologia da inadequação diante dessas palavras arrancadas a fórceps do silêncio. Pois isso seria ir contra as próprias palavras de Celan, para quem a poesia portava uma obscuridade que era, na verdade, a única condição possível para “um encontro, a partir de uma distância ou estranheza”.
Em uma troca de sinais, a obscuridade é condição de um encontro que só ocorre quando “todos os tropos e metáforas querem ser levados ad absurdum”. E, de fato, toda a sua poesia é atravessada por processos nos quais amantes se escavam até encontrarem um anel que nasce em seus dedos, anéis que são os próprios dedos (“Você escava e eu escavo, e eu me escavo rumo a ti/ E do dedo desperta-nos o anel”). Processos nos quais nomes que fracassam acabam por tocar o que é nomeado em um último esgar, no instante onde tudo parecia esgotado (“No azul/ ela diz uma sombrapromissora palavrárvore/ e o nome de teu amor/ acrescenta suas sílabas”). Volta aqui a sombra que permite ao nome do teu amor acrescentar suas sílabas.
Isso nos permite melhor compreender essa descrição que Celan fornece da poética: “Mas ao mesmo tempo são também, em tantos outros caminhos, caminhos nos quais a língua se torna sonora, são encontros, encontros de uma voz com um Tu perceptível, caminhos de criaturas, esboços de existência talvez, um antecipar-se para si mesmo, à procura de si mesmo […]. Uma espécie de volta à casa”.[i]
A poética de uma língua que, ao se tornar sonora e potência significante, não cai em mero “formalismo” (como alguns teimam em nos fazer acreditar), mas expressa a experiência de um encontro que parece nos dizer algo sobre uma “espécie de volta à casa”.
Como bem percebeu Alain Badiou, talvez nenhum poema tenha deixado isso tão claro quanto “Anábase”, título de uma peça de Xenofonte sobre uma tropa de gregos mercenários contratados para guerrear na Pérsia que, depois de perder seu general, procura voltar para casa:
Esse
Acima e de volta no futuro brilhantecoração intransitável-verdadeiro escrito estreito entre muros
Lá
Sílabastoupeiras, cormar, longe no não navegado
Então:
Boias
Treliças de boias-tristeza, com os
saltitantes belos por segundos reflexos respiratórios: Luminosos sons de sinos (dum, dum, un, unde suspirat cor), provocado, revogado, nosso.
Visível, audível, a
Palavratenda que Se liberta:
Juntos
O poema, que, ao final, enuncia o que se diz com essa palavratenda impossível, “juntos”, só pode começar com uma escrita que procurará o espaço estreito entre muros, que se tornará sonora (pois o poema descreverá, em onomatopeias, os sons dos sinos, ele se lembrará do fim de um moteto de Mozart, Exsultate, jubilate, ele se tornará música), que assumirá a conjunção entre “verdadeiro” e “intransitável”. Porque ele procura o que é sempre expulso da história, o que é intransitável. Só assim a junção que liberta, que liberta o futuro, pode ocorrer. Pois lembremos o início desse poema tão belamente analisado por Derrida e cujo título é, sintomaticamente, “Em um”:
“Treze de fevereiro. Na bocacoração\ Desperta o Schibboleth.\ Com você, Peuple de Paris.\ No pasarán”.
Treze de fevereiro de 1962 foi o dia de massivas manifestações em Paris em decorrência do assassinato de oito manifestantes, dias antes, pela polícia de Maurice Papon. Quinhentas mil pessoas foram velar os mortos que protestavam contra a Guerra da Argélia e o Estado colonial francês. Celan começa com uma data para terminar a estrofe em outro tempo, em outra língua, a saber, esse grito dos republicanos e anarquistas espanhóis dos anos 1930 contra o fascismo de Franco.
Entre eles, a palavra hebraica que define a passagem e a partilha dos inimigos e esse “peuple de Paris” que ressoa a Comuna de 1871. Sobreposição de línguas, sobreposição de tempos, sobreposição de lutas em uma contração benjaminiana da história que nos lembra que a única origem possível é o destino que se cria através da explosão do tempo, do espaço e das línguas em uma passagem contínua. Assim começa esse poema que nos diz o que é estar “em um”. Pois a poesia que insiste nas sombras que trazem sentidos é a mesma que sabe que encontros reais são a projeção, para fora do representável, de um destino no qual as datas ressoam as tentativas nunca esquecidas do que ainda não existiu.
Conclusão
Como foi dito no início, a maioria dos livros contemporâneos sobre estética prefere desdobrar-se em dois grupos. Em um, temos livros que acreditam ser possível falar sobre arte sem adentrar a análise de obras de arte. Já no outro grupo temos análises estruturais sobre obras, mas dispostas em um campo de tamanha autossuficiência que as obras parecem poder ser objeto de reflexões ontológicas, longe de qualquer consideração sobre contextos sociais.
De fato, essa questão de método levou o autor deste livro a procurar estabelecer certa escrita bipolar. Ela partia da compreensão de que a forma estética é um setor privilegiado da história da razão. Por isso, este livro partiu da pressuposição de que a forma musical é produzida a partir de decisões sobre os protocolos de identidade e diferença entre elementos (consonância e dissonância), sobre os problemas de partilha entre o que é racional e o que é irracional (som e ruído), sobre o que é necessário e o que é contingente (desenvolvimento e acontecimento).
Ela se produz ainda a partir de decisões sobre a relação entre razão e natureza (a música como mímesis das leis naturais ou como plano autônomo do que se afirma contra toda ilusão de naturalidade) e sobre os regimes de intuição no espaço e no tempo. É essa gama de dispositivos que nos permite afirmar que a forma musical nasce de uma decisão sobre os critérios válidos de racionalidade. Ela nos fornece algo como uma imagem do pensamento. Por isso, Schönberg poderá dizer: “uma mente bem treinada em lógica musical pode funcionar logicamente sob quaisquer circunstâncias”.[ii]
Tais considerações não valem apenas para a música, mas também para toda e qualquer forma estética. Estabelecendo protocolos construtivos de organização, de unidade, de relação e de síntese, a obra de arte fornece uma imagem de forte teor crítico em relação à ordem que vigora na vida social, assim como em relação à maneira de pensar o espaço, a identidade, o tempo.
Quando a obra de arte critica a noção naturalizada de harmonia, quando ela abre espaço para uma multiplicidade de vozes em conflito e sem hierarquia, quando ela deixa entrar o que até então aparecia como irracional e bárbaro, ela faz necessariamente mais do que simplesmente mudar os padrões de fruição estética. Ela modifica a sensibilidade social para processos que podem ter fortes consequências políticas.
Mas, para que tal produção possa efetivamente ser compreendida em sua potencialidade imanente, há que explicitar o campo de obras que lhe induz. Por isso, este livro é atravessado pela bipolaridade de quem se vê entre a reflexão sobre o processo de criação interno às obras e a configuração estético-política de seu horizonte. Os próximos dois volumes seguirão esse movimento.
No entanto, alguém poderia se perguntar: Por que foi o caso, neste bloco, de contar a “mesma história” mais uma vez, com os mesmos personagens, essa história do desenvolvimento da forma autônoma no interior da tradição musical hegemônica? A pergunta é relevante, e seria então o caso de dizer que os mesmos personagens não são os mesmos personagens.
Pois talvez essa história, de fato, nunca tenha sido contada. O que se contou foi a história da constituição de nossas formas de autolegislação, da pretensa força de nossa autonomia em ascensão. O que se contou foi como pretensamente teríamos nos tornado modernos. Mas não era isso o que estava acontecendo. O que aconteceu foi a emergência de uma práxis social, a saber, certa experiência estética, que preservou exigências de emancipação que a vida social não foi capaz de realizar, ou foi capaz de realizar apenas em momentos de insurreição revolucionária.
Momentos que, mesmo breves, nunca se apagam. As obras de arte, a despeito da intenção e do horizonte político de seus autores e autoras, é um sistema de cicatrizes de promessas ainda não realizadas. Elas guardam as promessas que a vida social procura nos fazer esquecer ou acreditar que não podemos senti-las e pensá-las.
Mas, mesmo assim, talvez se quisesse continuar o questionamento lembrando que, de toda forma, o que se vê são as mesmas referências clássicas e suas posições paradigmáticas no interior de certa tradição que se elevou a algo que, confusamente, chama-se “nossa cultura”. Diante disso, seria então o caso de continuar insistindo e lembrando que há várias maneiras de decompor mundos, e uma delas, talvez uma das mais necessárias, consiste em mostrar que a história que sempre nos contaram de fato nunca existiu dessa maneira, que ela escondia outra história. Maneira de mostrar como nossas figuras familiares guardam aquilo que temos de mais estranho e desestabilizador.
Novamente, alguém poderia levantar um “mas” e insistir que essa história poderia ter sido contada a partir de outros horizontes, com outros personagens. No que talvez a melhor resposta seria que sim, que isso poderia ser feito. Contada de várias perspectivas, em uma espécie de perspectivismo de combate. Mas isso não elimina o fato da subversão das categorias estabelecidas, a erosão de tais categorias por uma reversão interna é um dos movimentos mais necessários do pensamento crítico.
Cada um luta com as armas que tem. Várias histórias simultâneas não nos obrigam a recusar que todas elas tenham conteúdo de verdade. É uma questão apenas de mudar de nível, e as incompatibilidades desaparecem.
Mesmo depois disso tudo se poderia, por fim, flexionar o questionamento em tom mais pessoal a fim de perguntar por que, no caso, eu quis particularmente essa história. Por que particularmente essa? Nesse caso, só me restaria ser obrigado a usar a primeira pessoa do singular e dizer que eu precisava acertar contas com aquilo que me faz desabar para cima desde que comecei a existir.
Referência
Vladimir Safatle. Em um com o impulso. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 240 págs.
O lançamento em São Paulo será no dia 07 de dezembro no Sesc Pinheiros, às 20 horas, com a participação de Arrigo Barnabé e José Miguel Wisnick.
Notas
[i] CELAN. O meridiano. In: Cristal, p. 179.
[ii] SCHÖENBERG. Style and Idea, p. 86.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: