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    Marcelo Zero

    É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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    Empresa dá bofetada na soberania do Brasil

    O colunista Marcelo Zero fez referência à Vibra, ex-BR Distribuidora, que não garantiu combustível para um avião russo. 'Foi um impedimento ilegal'

    Vibra e Sergio Lavrov (Foto: Reprodução / Tass (chancelaria russa) )

    Esse caso da empresa brasileira de combustíveis que se recusou a reabastecer o avião do chanceler russo Lavrov é muito grave.

    Lavrov não veio ao Brasil como cidadão comum, para fazer turismo.

    Não. Veio, como convidado oficial, representando a Rússia, país com o qual o Brasil mantém estratégicas relações bilaterais, para participar da reunião do G-20, sob presidência do nosso país.

    Somos os anfitriões dessa reunião.

    Um país anfitrião tem de tratar bem seus convidados. Prover segurança, facilitar deslocamentos, assegurar hospedagem etc.

    Lavrov é diplomata em missão oficial. Por homologia, teria de aplicar-se a ele o artigo 29 da Convenção Viena sobre Relações Diplomáticas, qual seja:

    Artigo 29

    A pessoa do agente diplomático é inviolável. Não poderá ser objeto de nenhuma forma de detenção ou prisão. O Estado acreditado tratá-lo-á com o devido respeito e adotará todas as medidas adequadas para impedir qualquer ofensa à sua pessoa, liberdade ou dignidade.

    Assim, a recusa dessa empresa em reabastecer pode ser vista um impedimento ilegal para que o Estado brasileiro pudesse cumprir o disposto nessa importante convenção.

    Afinal, trata-se de uma empresa brasileira, atuando em solo brasileiro, que tem de obedecer apenas às nossas leis.

    O Brasil, frise-se, não aderiu às sanções impostas pelos EUA e alguns aliados à Rússia.

    E não o fez por uma razão muito simples. As únicas sanções consideradas legais são aquelas aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU.

    Por conseguinte, ante o direito internacional público e a ordem internacional, essas sanções contra a Rússia são ilegais.

    Em 2019, tivemos um problema semelhante com dois navios iranianos no porto de Paranaguá, que estavam carregando milho brasileiro para o Irã. A Petrobras se recusou, durante algum tempo, a reabastecê-los, com medo de sanções dos EUA. O Irã, maior importador de milho do Brasil, ameaçou não importar mais.

    O Brasil, tradicionalmente, se opõe a sanções econômicas, comerciais e financeiras que não tenham sido aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, mas utilizadas à larga por EUA e aliados.

    Muito embora elas não tenham a dramaticidade de bombardeios e tiroteios, as sanções são mecanismos bastante eficientes para causar sofrimento e mesmo para eliminar a população civil de um determinado país ou países.

    Estudo publicado na prestigiada revista Lancet, em 20 de agosto de 2018, (Economic sanction: a weapon of mass destruction- “Sanções Econômicas: uma arma de destruição em massa”) mostra que, somente no Iraque, as sanções, combinadas com os efeitos da guerra de vários anos, mataram cerca de 1,5 milhão de iraquianos.

    No caso das sanções contra a Rússia, elas tiveram e têm, combinadas com a guerra, um forte efeito disruptivo sobre o mercado mundial de energia, fertilizantes e alimentos, que prejudica quase todo o mundo.

    A Europa, em particular, vem sendo bastante afetada,

    No ano passado, os Serviços Científicos (Wissenschaftliche Dienste) do Parlamento Alemão publicaram um relatório sobre os efeitos dessas sanções na Europa e Alemanha.

    As conclusões foram inquietantes:

    - Os países da UE não são capazes de compensar as perdas econômicas causadas pelas sanções contra a Federação Russa.

    - Em primeiro lugar, isto diz respeito aos sectores da energia e das matérias-primas. O enorme aumento dos preços destes recursos está a causar sérios danos à indústria. A indústria europeia está cada vez mais atrás da concorrência global.

    - Com a introdução de sanções contra a Rússia, o processo de desindustrialização da Europa está a acelerar. Os elevados subsídios governamentais na UE começaram durante a pandemia e continuam durante o período de sanções. No entanto, estes elevados subsídios contribuíram para o crescimento da dívida pública e alimentaram ainda mais a inflação.

    - Esta combinação de inflação e recessão está a conduzir a uma crise económica na Europa que continuará por muitos anos. Isto resultará numa perda permanente de riqueza para as sociedades ocidentais.

    Em contrapartida, a economia russa cresceu 3,6%, em 2023. Para este ano, as previsões mais pessimistas indicam que ela crescerá 2,5%. O sacrifício europeu e mundial é inútil, portanto.

    Tudo isso torna ainda mais grave esse constrangimento e essa ofensa à Lavrov e à Rússia, em território brasileiro. Como é possível que sanções unilaterais tenham efeitos extraterritoriais, em um país que a elas não aderiu? Como pode uma empresa constituída legalmente no Brasil se portar dessa forma?

    Isso expõe uma grande fragilidade, em nossa soberania.

    Amanhã, poderemos ser nós as vítimas dessas sanções unilaterais e ilegais. Nesse caso, ficaremos à mercê dessas empresas? É por essas e outras que a governança global precisa de profunda e urgente reformulação, como clama o Brasil.

    Lavrov, cordato, eximiu o Brasil, os anfitriões, de qualquer culpa no episódio. É óbvio, o governo brasileiro não tem culpa.

    Mas essa recusa dessa empresa em abastecer o avião de um convidado oficial do Brasil foi uma bofetada em nossa soberania. Uma bofetada que serve de advertência.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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